A pandemia de Covid-19 parecia estar chegando ao fim. Mais de 60% da população mundial recebeu pelo menos uma dose da vacina contra a doença e as máscaras deixaram de ser item obrigatório na maioria dos países. Porém, um novo surto do vírus na China — segunda maior economia global e uma das nações mais rigorosas no controle do coronavírus — têm tirado o sono de governos, investidores e empresas no mundo todo. E não à toa. Desde o mês passado, cenas vistas no começo da pandemia vêm sendo reprisadas no país liderado por Xi Jinping: barreiras físicas em ruas desertas, bairros isolados e pessoas obrigadas a ficar dentro de casa, caso não queiram correr o risco de serem enviadas a centros de quarentena. E essa realidade não assombra uma província qualquer do gigante asiático, mas Xangai, cidade com mais de 26 milhões de habitantes, centro financeiro e importante área portuária para o comércio com outros países.
A China insiste em manter sua política de tolerância zero à Covid, que estipula o confinamento da população e testes em larga escala, para localizar e isolar os infectados pela variante ômicron, a mais contagiosa. Segundo autoridades locais, a estratégia é fundamental para prevenir um sobrecarregamento do sistema de saúde e uma situação parecida com a da Coreia do Sul, que controlou a pandemia com sucesso até dezembro, mas chegou a registrar dias com mais de 600 mil contaminações em março por causa do avanço da ômicron. Analistas apontam, no entanto, um viés político na manutenção das restrições. Como Xi Jinping planeja assegurar um terceiro mandato como presidente neste ano, ele quer evitar ao máximo instabilidades no país.
Mas se esse é o seu objetivo, a política de “Covid zero” e suas rigorosas restrições parecem ser um passo rumo ao precipício. Além de criticada por parte da população pela forma desajeitada e, em alguns casos, desumana como foi implantada — Xangai chegou a prever a separação de pais e bebês infectados —, ela é prejudicial para a economia chinesa. O país tem a meta de crescer 5,5% em 2022, mas com as restrições atuais — que devem durar pelo menos até o dia 8 de maio — é pouco provável que o PIB alcance esse resultado. E isso apesar das medidas anunciadas pelo governo para amenizar os efeitos dos confinamentos, como apoio a indústrias e pequenas empresas, estabilização dos preços ao consumidor e estímulos aos investimentos em infraestrutura.
Na avaliação da agência de classificação de riscos Fitch Ratings, a China tem pouco espaço de manobra para crescer até o patamar que almeja, e as medidas de incentivo tendem a produzir um impacto modesto. Para piorar, o surto de Covid no país coincide com a guerra na Ucrânia, que tem contribuído para a escalada global de preços. Em março, o índice de preços ao consumidor (CPI) da China aumentou 1,5% em comparação com o mesmo mês do ano passado. O percentual superou a alta registrada em fevereiro e ficou acima da previsão de 1,2% feita pelo mercado. O problema é que uma redução dos juros na China para combater a inflação poderia ter um efeito colateral perverso: o aumento da saída de capital do país, num momento em que o fluxo de dinheiro para o gigante asiático já se encontra debilitado.
E não é só a inflação em alta que ofusca o brilho da China. As vendas do varejo, que haviam aumentado 6,7% nos dois primeiros meses do ano, inverteram a tendência e caíram 3,5% em março, na comparação anual. A produção industrial, que vinha crescendo em um ritmo de 7,5% ao mês, também desacelerou em março, para 5%. Já o índice oficial de gerente de compras (PMI), indicador de atividade fabril e do setor de serviços, recuou por dois meses seguidos e se encontra no nível mais baixo desde 2020. Atualmente, ele marca 47,4 pontos, sendo números abaixo de 50 indicam contração de atividade.
Com base nesse cenário, a Fitch revisou para baixo sua previsão de crescimento do PIB chinês em 2022, de 4,8% para 4,3%. Outras instituições, como UBS e Bank of America, preveem crescimento abaixo disso, de 4,2%. A projeção do Nomura, por sua vez, se distancia ainda mais da meta do governo de Xi Jinping: o prognóstico do banco de investimentos japonês é que a economia chinesa irá crescer 3,9% este ano. “O choque de oferta, especialmente em cidades sob bloqueios totais e parciais, pode enfraquecer ainda mais a demanda por imóveis, bens duráveis e bens de capital, devido à queda da renda e ao aumento de incertezas”, avalia Ting Lu, economista-chefe do Nomura na China.
Impacto global
E se a China vai mal, as perspectivas para outras economias do mundo também se deterioram. Um dos efeitos mais evidentes das restrições impostas no gigante asiático tem sido a paralisação da produção e movimentação de produtos e insumos que o país fornece para seus parceiros comerciais. Ao longo da pandemia, essa situação gerou uma escassez de componentes sentida, sobretudo, pelos fabricantes de automóveis e aparelhos eletrônicos. E agora, com uma nova onda de lockdowns em andamento, a expectativa de que a cadeia produtiva global possa ser restaurada se torna uma realidade ainda mais distante.
Até mesmo os preços de matérias-primas como o petróleo, que vinham disparando por causa da guerra na Ucrânia, desaceleraram com temores de retração da economia chinesa. Em abril, essa preocupação foi um dos motivos que fez os estrangeiros retirarem 7,68 bilhões de reais da bolsa brasileira, onde empresas produtoras e exportadoras de commodities têm maior peso.
Outro setor impactado pelos recentes lockdowns é o de navios cargueiros, que têm se deparado com um aumento no custo do frete. Segundo a Associação Brasileira dos Terminais Portuários (ABTP), no auge da pandemia, o container vindo da China para o Brasil custava em média 6,8 mil dólares, valor que caiu para 6,2 mil dólares com o arrefecimento da pandemia. Porém, desde que o gigante asiático intensificou sua política de confinamento, o valor já voltou ao patamar mais alto. Antes do coronavírus, para se ter uma ideia, o preço de um container girava em torno de 3 mil dólares. Com o aumento, é possível que menos produtos chineses cheguem ao Brasil, o que pode gerar uma inflação de demanda, quando o preço dos produtos sobe por falta de oferta.
Além disso, dependendo de como a situação evoluir na China, outros segmentos também podem ser afetados por aqui, como o de frigoríficos. Desde que o lockdown em Xangai começou, o comércio de carne do país tem diminuído devido a bloqueios logísticos em toda a indústria de alimentos. Cabe destacar que a China é o maior comprador do produto do mundo, e o Brasil, um dos seus principais fornecedores. No ano passado, o gigante asiático adquiriu mais de nove milhões de toneladas de carne, no valor de cerca de 157,3 bilhões de reais, sendo que Xangai foi responsável pela maior parte das importações.
O cenário é nebuloso e ganha contornos ainda mais sombrios, quando até mesmo grandes investidores locais acreditam que a economia chinesa enfrenta uma profunda crise que pode abalar o mundo todo. “Considerando os últimos 30 anos, acredito que a economia chinesa esteja hoje na sua pior forma. Para nós, o país parece com os Estados Unidos e a Europa em 2008”, afirma Weijian Shan, um dos maiores investidores de private equity da Ásia. Em entrevista ao Financial Times, ele ressaltou que o sentimento do mercado em relação às ações chinesas está no ponto mais baixo das últimas três décadas, bem como o descontentamento popular em relação ao governo e sua política “draconiana” de tolerância zero a Covid. Perturbadoras, as declarações dão uma ideia da tormenta que os mercados terão que enfrentar.
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