É bem provável que um hipotético levantamento dos prognósticos de analistas para a economia global em 2021, feito no início deste ano, encontrasse um ponto de consenso: consolidada a vacinação nos países desenvolvidos e nos emergentes com maior peso para o PIB global, o mundo voltaria a crescer. As indústrias aos poucos retomariam sua produção, oferecendo a consumidores ávidos por retornar às compras a mesma diversidade de bens de antes da pandemia. Nesse círculo virtuoso, impulsionado pelos estímulos fiscais trilionários, os empregos seriam reabertos, a renda permitiria o consumo e os ativos nos mercados financeiro e de capitais garantiriam bons retornos para os investidores. Tudo isso a tempo das celebrações típicas de fim de ano, interrompidas em 2020. É também bastante realista imaginar que, nesses cenários dos economistas, faltasse uma pedra no caminho que agora é bastante evidente: a disrupção (palavra aqui usada no seu sentido negativo) da cadeia global de suprimentos. Talvez o Natal de 2021 seja mesmo é de prateleiras vazias.
Fato é que a superação dos piores momentos da pandemia por meio da vacinação, aliada às atitudes dos governos de provisão de liquidez para as economias, intensificou uma crise múltipla de oferta, energia e logística que se consolida justamente numa circunstância de demanda reprimida. Não por acaso, durante conferências para detalhamento de resultados do terceiro trimestre deste ano de empresas relevantes do S&P 500 a expressão “cadeia de suprimentos” foi mencionada cerca de 3 mil vezes, de acordo com levantamento feito pela Bloomberg com base em sua ferramenta de análise de transcrição desses encontros. Para se ter uma ideia, as menções superaram a soma de referências a outras duas expressões da moda corporativa (“sinergia” e “proposta de valor”).
Efeitos sobre balanços
Muitas empresas listadas nos Estados Unidos já estão divulgando ao mercado alertas sobre a possibilidade de a crise de fornecimento prejudicar os balanços nos próximos trimestres. A Apple está se confrontando com esse cenário em meio ao lançamento do iPhone 13, e já anunciou que vai rever as metas de produção do aparelho. A Eaton Corp., que fornece equipamentos para melhora de gerenciamento de consumo de energia, informou que terá vendas menores que o anteriormente projetado. Já a fabricante de tintas Sherwin-Williams cortou suas projeções de faturamento duas vezes em apenas três semanas. Exemplos não faltam. Na avaliação da estrategista-chefe para mercados globais da gestora de recursos Invesco, Kristina Hooper, que falou em entrevista à CNBC, os setores que operam com margens menores (como transportes, varejo, construção civil e automobilístico) tendem a sofrer mais com o caos na cadeia de suprimentos. Estariam menos expostos (mas não imunes) os segmentos de serviços.
Fim de um ciclo?
O número captado pela Bloomberg com base nas conferências dá uma dimensão da relevância do problema — que, certamente, não tem sua origem na pandemia. A emergência sanitária parece ter funcionado como o estresse que faltava para o tênue equilíbrio da cadeia global de suprimentos se desfazer. Ao longo do tempo, conforme o mundo foi se interconectando — e, nas últimas décadas, transferindo sua produção para a China e países vizinhos sob o impulso de custos menores de mão de obra —, a possibilidade de uma batida de asas de borboleta desencadear um furacão do outro lado do planeta cresceu exponencialmente.
Cabe lembrar que, durante muito tempo, valeu mais a pena para um sem-número de indústrias desenvolver e desenhar produtos em suas regiões de origem e terceirizar a produção para os chineses e outros asiáticos. Inclusive fabricantes brasileiros dos mais variados setores recorreram a esse expediente (sobram por aí etiquetas “desenhado no Brasil, produzido na China”). A estratégia até fazia sentido em termos de investimentos mais imediatos, mas deixou o mundo todo dependente de poucos fornecedores e de uma azeitada rede de transporte, além de intensificar sérias questões sociais, como o choque de culturas que serve de mote para o documentário vencedor do Oscar Indústria Americana, produzido pelo casal Obama e disponível na Netflix. Pois a pandemia “quebrou” esse esquema com a súbita paralisação das operações em 2020. E a retomada deste ano deixou os gargalos evidentes. O problema é que eles não estavam nas contas dos investidores, que agora têm que refazer cenários para incorporar a “nova” situação às suas expectativas de retorno.
Portos, mão de obra e energia
A crise de oferta e logística hoje se apresenta sob diversos aspectos. Há, por exemplo, a crise dos portos. O que as indústrias conseguem produzir para atender a demanda crescente tem grandes chances de ficar parado nos terminais. Levantamento recente da RBC Capital Management com base na movimentação dos 22 portos mais relevantes para o comércio mundial mostra que em 77% há atrasos no despacho de mercadorias acima da média. A situação é particularmente grave nos Estados Unidos, a ponto de o presidente Joe Biden estar às voltas com um programa emergencial para desafogar os portos (no caso dele, especificamente, é importante do ponto de vista político garantir mesa farta para os americanos no primeiro Dia de Ação de Graças depois da pior fase da pandemia até aqui e do início de seu mandato). O desafio é grande, ainda mais porque com menos produtos e demanda em alta os preços inevitavelmente vão subir.
Ainda tratando do transporte marítimo, no Brasil, a problemática reside nas consequências negativas da falta de contêineres para exportações, o que pode afetar produção e novos negócios. O problema foi mapeado em pesquisa da Confederação Nacional da Indústria (CNI), que também constatou aumentos significativos nos preços dos fretes para comércio internacional.
Outros pontos relevantes são o apagão de mão de obra e a escassez de energia. O primeiro deixa clara a precariedade dos sistemas de trabalho no segmento de transporte mundo afora. Essa situação é registrada em vários países, com ruidosos movimentos de caminhoneiros fazendo variadas reinvindicações (no Brasil, cuja matriz de transporte é rodoviária, a pauta recorrente é o preço dos combustíveis), mas sua face mais dramática tem aparecido no Reino Unido. Efeito também do brexit, por lá agora faltam caminhoneiros — grande parte da mão de obra do setor, estrangeira, voltou para seus países de origem durante a pandemia e não parece disposta a enfrentar a burocracia da regularização para voltar a trabalhar em solo britânico. Quanto à energia, a China se vê diante de uma questão de difícil solução: pressionado por demandas para redução de emissão de gases, intensificadas agora às vésperas da conferência do clima (Cop 26, a ser realizada em novembro na Escócia), o país precisa diminuir o uso do carvão, base de sua produção de energia. E não é possível fazer isso sem afetar os níveis de produção industrial. (sobre as mudanças em curso na China, leia mais na coluna de Evandro Buccini)
Se em meio a uma pandemia ainda não completamente superada e às ameaças da crise climática alguém ainda não entendeu o astronômico grau de conexão das economias e das sociedades não foi por falta de dados, exemplos e situações emblemáticas dessa ligação. Lição de casa para governos, empresas e também gestores de recursos é compreender como lidar com o efeito-dominó desse emaranhado, que agora ameaça o crescimento econômico global.
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