
Ainda é cedo para entendermos o que realmente viabilizou as alegadas “inconsistências contábeis” na Lojas Americanas. Entraremos em um longo período de especulações, investigações, ações judiciais, processos administrativos, defesas, julgamentos, recursos infindáveis, até que tenhamos mapeadas e consolidadas as responsabilidades, sejam de administradores, auditores, acionistas de referência e membros de comitês, entre outros agentes da governança corporativa.
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Há, todavia, uma sensação de “déjà vu” no ar. Assim como em outros escândalos corporativos relacionados a fraudes contábeis, a Lojas Americanas contava com uma estrutura de governança corporativa1 que a credenciava a ter suas ações listadas no Novo Mercado da B3 e a fazer parte de diversos índices de governança e sustentabilidade (ISE, IGCX, IGNM, DJSI, MSCI, ICO2, GPTW, CDP, S&P Global, para ficar só em alguns).
Embora não seja possível aferir desde já o que realmente falhou, o caso joga luz a alguns temas que deveriam fazer parte de uma consciência maior e estar na agenda dos administradores, inclusive para efeito de cumprimento de seus deveres fiduciários: 1) zelo por uma cultura de ética e integridade, 2) compreensão da governança corporativa como uma jornada evolutiva, 3) novas aplicações dos conceitos de diligência e interesse social em consonância com pautas atuais da nova economia, especialmente relacionadas a questões ambientais, sociais e de governança (“ESG” na sigla em inglês); 4) ambiente de crescente litigância contra administradores, organizações, governos e, mais atualmente, reguladores no mundo inteiro.
Cultura de ética e integridade
Por mais sofisticadas que sejam as estruturas de governança corporativa de uma empresa, elas são sempre dependentes do elemento humano. E sem uma cultura ética não há como fazer prosperar qualquer regra de governança.
Não foi por outra razão que o IBGC inseriu a ética como fundamento da governança corporativa na proposta da 6ª edição de seu Código de Melhores Práticas, desdobrando-a em cinco princípios de governança corporativa (integridade, transparência, equidade, responsabilidade e sustentabilidade) e nas melhores práticas recomendadas ao longo da publicação.
O art. 155 da Lei das S.As., por sua vez, já impõe ao administrador o dever de servir com lealdade à companhia e manter reserva sobre os seus negócios, mas a responsabilidade do administrador em relação a desvios éticos não se resume à sua própria conduta ética, mas engloba também o dever de zelar pela implementação e difusão da cultura ética na companhia, tanto pela implementação dos instrumentos clássicos de um programa de integridade, como também, e principalmente, pela adoção de ações concretas que não deixem dúvidas sobre a opção adotada pela empresa. O conselho de administração tem papel (e responsabilidade) fundamental nesta missão.
Governança corporativa como uma jornada evolutiva
Historicamente, escândalos corporativos sempre foram motivo de críticas à suficiência da governança corporativa e, ao mesmo tempo, elementos catalisadores de sua evolução.
A Sarbanes-Oxley americana, editada em resposta aos escândalos Enron e WorldCom, foi um marco na evolução da governança, pelo estabelecimento e propagação de uma série de medidas voltadas a aperfeiçoar as estruturas de governança corporativa, notadamente em relação ao processo de elaboração e divulgação das demonstrações financeiras (membros independentes, comitê de auditoria, canal de denúncia, auditores independentes, controles internos, etc.). A Lei Dodd-Frank, editada na sequência do caso Lehmann Brothers, reforçou a preocupação com os critérios e a transparência na aprovação da remuneração dos administradores.
No Brasil, a Lei Anticorrupção tratou dos programas de integridade. A Lei das S.As. foi seguidamente reforçada para aperfeiçoar os sistemas de proteção aos acionistas minoritários. A LGPD regulou a proteção de dados pessoais. Uma série de outras medidas podem ser elencadas, tais como o aperfeiçoamento do Novo Mercado e do ISE (Índice de Sustentabilidade Empresarial), ambos da B3, a lei das Estatais, a adoção do IFRS, os recentes atos regulatórios do Bacen, CVM e Susep em relação à adoção de práticas ESG, dentre outras.
As medidas acima não foram e não seriam capazes de impedir que novos escândalos ocorressem, mas certamente aperfeiçoaram o ambiente de governança reduzindo o número de ocorrências. Novas regras deverão ser criadas, e os escândalos nos ajudarão a aperfeiçoar o papel de cada agente da governança, incluindo os administradores e os auditores independentes.
Deveres de diligência e a pauta ESG
Os deveres dos administradores elencados na Lei das S.As. representam padrões de conduta que devem ser por eles seguidos, sob pena de serem pessoalmente responsabilizados pelos prejuízos causados à companhia. São normas de tipo aberto, em que a redação do texto legal não muda, mas a interpretação de seu alcance vai se amoldando à evolução do tempo e da sociedade, conferindo mais liberdade ao julgador.
Tome-se como exemplo o dever de diligência. O art. 153 da lei societária apenas prevê que “o administrador da companhia deve empregar, no exercício de suas funções, o cuidado e diligência que todo homem ativo e probo costuma empregar na administração dos seus próprios negócios”. O nível de dedicação e envolvimento dos administradores no exercício de suas funções, todavia, têm se tornado muito mais intenso do que quando da edição da lei em 1976.
Na aprovação das demonstrações financeiras, por exemplo, não basta mais a simples leitura dos números e do relatório da auditoria independente. É preciso que o administrador tenha adotado as medidas necessárias para minimizar as chances de que os dados apresentados não reflitam a situação econômica e financeira da companhia, o que demanda um olhar para os controles internos, a criação de comitês de auditoria, a definição do escopo da auditoria, o acompanhamento de seus trabalhos, a interação com a auditoria interna, a disponibilização de canais de denúncias, a implementação de sistemas de integridade e compliance — dentre outras medidas que sejam compatíveis com o porte da empresa.
Mas talvez a maior mudança, ainda em curso, esteja no alcance do dever do administrador de “exercer as atribuições que a lei e o estatuto lhe conferem para lograr os fins e no interesse da companhia, satisfeitas as exigências do bem público e da função social da empresa” (art. 154 da Lei das SA).
Interessante notar que o dever de atuar no interesse da companhia e o uso da expressão “função social” estiveram por muito tempo associados à busca do objeto social e do lucro, em um contexto de capitalismo de shareholders — de retorno ao acionista. Uma empresa lucrativa paga impostos, contrata empregados, contrata fornecedores, gera benefícios à comunidade, cumprindo sua função social.
A profunda transformação cultural, econômica, tecnológica e socioambiental que vivemos, no entanto, tem transformado esta percepção, acentuando-se a visão de que a busca do lucro (sim, sem ele não há função social que resista) deve ser feita de forma sustentável em um ambiente de migração para o capitalismo de stakeholders, que leva em consideração os interesses de diversas partes interessadas.
E o próprio conceito de sustentabilidade, antes mais voltado para questões ambientais, desdobrou-se em ambiental e climático e abraçou o social, o que inclui a promoção da ética e da integridade, a melhoria no ambiente de trabalho, a diversidade, equidade e inclusão, a redução das desigualdades, cuidado à saúde dos colaboradores (inclusive a mental), equidade no tratamento aos fornecedores e demais stakeholders, oferta de produtos e serviços de qualidade, minimização das externalidades negativas e ampliação das positivas, dentre tantos outros aspectos, que assumem diferentes níveis de importância dependendo da empresa, da região e do contexto.
A pauta ESG, portanto, ainda que sujeita a críticas, é irreversível e muito provavelmente afetará também a avaliação da responsabilidade dos administradores.
Litigância crescente contra os administradores
Já está bem assentada na jurisprudência, notadamente da CVM, a responsabilidade dos administradores pela falha na implementação, manutenção e aperfeiçoamento de controles internos e gestão de riscos compatíveis com o porte da companhia e pela tomada de decisões não informadas, não refletidas ou com conflito de interesses.
Os administradores devem, contudo, estar atentos a um ambiente de crescente litigância decorrente da não observância de aspectos ligados à pauta ESG.
Tome-se, por exemplo, os recentes casos: 1) da Shell2, em que os membros do conselho de administração estão sendo processados pela organização Client Earth por terem falhado na inclusão dos riscos climáticos na estratégia e nas metas da companhia, o que ficou evidenciado pela falta de inclusão do tema nas pautas do calendário temático de reuniões do conselho; 2) da Vale3, que foi acionada judicialmente pela SEC americana por alegada divulgação de informações falsas no relatório de sustentabilidade; 3) do McDonalds4, em que as cortes de Delaware aceitaram o ajuizamento de ações por parte de acionistas da companhia contra o CEO pela alegada “cegueira deliberada” em relação ao caso de assédio sexual praticado pelo ex- diretor global de recursos humanos, o que, segundo a ação, permitia que a prática se espalhasse pela companhia (tone from the top).
Há uma maior vigilância da sociedade em relação à atuação dos administradores e uma cobrança por uma atuação mais ética e em conexão com a pauta ESG.
Portanto, escândalos corporativos não devem ser analisados apenas com a lente dos instrumentos tradicionais de governança corporativa (membros independentes, comitês de assessoramento, controles internos, canais de denúncia, auditorias, dentre outros), mas também sob a ótica das pautas ESG. Elas demandam dos administradores a dedicação de tempo para inclusão do tema na matriz de riscos e na estratégia das companhias, sob pena de serem responsabilizados pelos danos, materiais e reputacionais, causados à companhia.
*Richard Blanchet é sócio sênior do Blanchet Advogados, conselheiro certificado pelo IBGC (CCA+) e membro do comitê de indicação do instituto. Gabriela Alves Mendes Blanchet é sócia sênior do Blanchet Advogados, conselheira certificada ESG pelo Competent Boards (GCB.D), presidente do Instituto Brasileiro de Direito e Ética Empresarial (IBDEE) e Mestre em Direito dos Negócios pela FGV/SP.
1 A Americanas dispunha de conselho de administração com 43% de membros independentes, 06 comitês de assessoramento ao conselho, incluindo um comitê de auditoria 100% independente e um comitê de gente e sustentabilidade, conselho fiscal, metas ESG na política de remuneração dos executivos, auditorias interna e independente, políticas, códigos e regimentos, agenda do conselho baseada nas melhores recomendações de governança corporativa, tag along de 100%, função de compliance, avaliação periódica do conselho de administração, de seus comitês e da diretoria, padrões mínimos de divulgação trimestral de informações, demonstrações financeiras anuais de acordo com normas contábeis internacionais.
2 https://www.clientearth.org/latest/latest-updates/news/we-re-taking-legal-action-against-shell-s-board-for-mismanaging-climate-risk/
3 https://www.cnnbrasil.com.br/business/regulador-dos-eua-processa-vale-por-fraude-a-investidores-em-caso-brumadinho/
4 https://www.reuters.com/legal/shareholders-can-sue-mcdonalds-ex-executive-landmark-ruling-2023-01-25/
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