Pesquisar
Close this search box.
Onde alocar as obrigações do “risco sacado”?
Em teoria, a dívida do caso Americanas pode ser registrada tanto no passivo bancário quanto na conta de fornecedores. Tudo depende da sua “cara”
Eliseu Martins
Eliseu Martins é professor emérito da FEA-USP e da FEA/RP-USP, consultor e parecerista na área contábil | Ilustração: Julia Padula

A operação de “risco sacado” (ou “forfait”, “confirming”, “securitização de contas a pagar”), que ganhou fama recentemente com o badalado caso Americanas, nada mais é do que uma evolução da velhíssima operação de desconto de duplicata. Comecemos por uma breve explicação do que diferencia os dois. 


A Capital Aberto tem um curso online sobre Tributação e sucessão de bens digitais. Confira!


No caso do desconto de duplicata, o vendedor vai ao banco, recebe o dinheiro, e o comprador sabe que deve pagar sua duplicata diretamente ao banco. Se o comprador não pagar, o vendedor continua com a responsabilidade da liquidação da obrigação com o banco. 

O comprador, na aquisição, reconhece sua obrigação no passivo na conta de “fornecedores”, e a mantém lá até a liquidação. E, como regra, não evidencia nas suas demonstrações financeiras qualquer obrigação de natureza bancária. Seu passivo continua a ser de natureza operacional — a conta de “fornecedores”. Os prazos são os habituais. Seus riscos de ser executado por não eventual pagamento são os de qualquer outra duplicata não descontada pelo vendedor.  

O vendedor, por não haver transferido de forma definitiva todo o risco ao banco, reconhece o dinheiro recebido do banco em contrapartida a uma dívida especial — a “duplicata descontada” – essa, sim, uma dívida de natureza bancária. Essa é a prática brasileira há uns 12 anos. 

Já no risco sacado, a diferença básica é que, como regra, o controle, os riscos e os benefícios relativos ao recebimento da duplicata (ou outro título) são transferidos do vendedor (fornecedor) ao banco — e nada mais tem o vendedor a receber do comprador. Nesse caso, o vendedor dá baixa do recebível e pronto. E também não tem dívida bancária. 

Só que o comprador agora fica com a dúvida: mantém sua obrigação nascida junto ao vendedor na conta de “fornecedores”? Ou a transfere para “dívida bancária”? 

Ora, se o prazo de venda do vendedor para o comprador, que tradicionalmente é de 90 dias, foi nessa operação esticado, por exemplo, para 360 dias; se o preço da mercadoria foi reajustado por conta dessa janela de tempo; se o comprador assume obrigação e risco adicionais porque agora passou não mais a dever ao fornecedor (com os riscos da tradicional compra a prazo), mas, sim, ao banco, com as responsabilidades semelhantes às de um empréstimo, começamos a ter uma operação com todo o jeito de dívida bancária.  

As evidências costumam ser algumas: a empresa vai ter mais juros implícitos ou explícitos contidos no valor final de pagamento do que numa operação de prazo normal; sua dívida oferece mais garantias ao credor do que antes; o prazo é anormal; os juros embutidos são anormais em relação a uma compra a prazo ordinária. Não parece, portanto, haver dúvida: essa obrigação, no comprador, tem que estar junto com as dívidas bancárias, mesmo que devidamente evidenciada de forma separada dos demais empréstimos e financiamentos tomados.  

Evidenciar essa obrigação dentro da conta de “fornecedores” parece-me um misleading, uma forma de enganar o leitor, de não atender à obrigação contábil de representação fidedigna. É necessário segregar as contas pela sua natureza e pelos seus riscos. 

Entretanto, se o prazo de venda do vendedor para o comprador se mantém, por exemplo, dentro dos tradicionais 90 dias; se o preço da mercadoria ou serviço adquiridos não se altera por conta da operação; se o comprador não assume qualquer risco adicional por essa operação — bem, nesta hipótese, parece haver condições diferentes. A operação não teve “a cara” mudada, perante o comprador, de passivo operacional para passivo bancário; o prazo junto ao fornecedor tem a natureza de financiamento normal e corriqueiro de capital de giro, típico da conta de “fornecedores”; o valor do juro embutido no estoque adquirido não se alterou.  

Logo, parece-me que colocar a dívida como bancária é também “misleading”. Da mesma forma, no balanço, ou em nota explicativa, é interessante evidenciar separadamente essa operação dentro da conta de “fornecedores” para conhecimento de terceiros. Mas não me parece fazer sentido chegar ao extremo de mudar a geografia das contas no passivo de operacional para dívida financeira. 

Ou seja, a grande discussão há tempos no Brasil (na CVM, há muitos anos) e no mundo (o IASB tem até agenda decision sobre isso) é de natureza geográfica: o fato de a empresa adquirente comprar de fornecedores que fazem uso da operação de risco sacado deve levar a adquirente a reconhecer a dívida em “fornecedores” ou em “dívida bancária?”  

E há mais uma questão geográfica (neste caso, na demonstração do resultado) que é o de ajustar ou não a valor presente as compras, que nos leva a uma outra questão de linhas: se a compra for ajustada a valor presente, surgirá a despesa financeira; caso contrário, esta estará inserida no custo das mercadorias vendidas no resultado. 

Ou seja, toda essa discussão por conta, exclusivamente, de geografia no balanço e geografia no resultado. 

Com certeza o leitor deve estar chateado; afinal. Provavelmente esperava, desde o início deste texto, pela explicação do caso Americanas. Na verdade, o que ocorre é o seguinte: discussão tão grande de um assunto tão simples não se justifica. Pelo que o reboliço indica, não se trata de um problema de geografia contábil, mas de outro tipo de geografia — talvez esta, sim, inaceitável. Não tenho os elementos para dar o veredito. Quem os tiver, por favor, me informe.  

*Eliseu Martins é professor emérito e professor sênior das FEAs-USP de São Paulo e Ribeirão Preto, além de ex-diretor da Comissão de Valores Mobiliários (CVM) e do Banco Central do Brasil 

Matérias relacionadas 

Os limites da norma contábil para registro da isenção de impostos

Inflação e lucro, de novo

Tributar ou não tributar dividendos?


Para continuar lendo, cadastre-se!
E ganhe acesso gratuito
a 3 conteúdos mensalmente.


Ou assine a partir de R$ 34,40/mês!
Você terá acesso permanente
e ilimitado ao portal, além de descontos
especiais em cursos e webinars.


Você está lendo {{count_online}} de {{limit_online}} matérias gratuitas por mês

Você atingiu o limite de {{limit_online}} matérias gratuitas por mês.

Faça agora uma assinatura e tenha acesso ao melhor conteúdo sobre mercado de capitais


Ja é assinante? Clique aqui

mais
conteúdos

APROVEITE!

Adquira a Assinatura Superior por apenas R$ 0,90 no primeiro mês e tenha acesso ilimitado aos conteúdos no portal e no App.

Use o cupom 90centavos no carrinho.

A partir do 2º mês a parcela será de R$ 48,00.
Você pode cancelar a sua assinatura a qualquer momento.