Recentemente o mercado de capitais brasileiro tem se deparado com uma figura cada vez mais presente, mas ainda pouco discutida e compreendida – o acionista de referência, que começou a despertar mais atenção por conta de recentes episódios, como os da eleição do conselho de administração da Vale (por não haver mais controlador, a regra que garante a eleição em separado de representantes dos minoritários no conselho de administração não foi aplicada) e do escândalo da Lojas Americanas (com várias discussões sobre o verdadeiro papel dos seus principais acionistas).
A Lei 6.404/76, que regula as sociedades anônimas, de capital aberto ou fechado, disciplina de forma bastante abrangente os direitos e deveres dos acionistas (Art. 115), identifica o acionista controlador e sobre ele impõe alguns padrões de conduta (Arts. 116 e 117) e assegura direitos dos minoritários para fazer frente à presença dos controladores (Art. 141, §4º).
O texto, porém, não faz qualquer menção ao acionista de referência. O próprio IBGC não trata da figura em seu prestigiado Código das Melhores Práticas de Governança Corporativa.
Passou da hora, no entanto, da governança corporativa se debruçar sobre o tema, entendendo o significado do acionista de referência e os potenciais riscos e benefícios associados à sua presença nas companhias brasileiras, bem como definindo seus papéis e responsabilidades.
Embora não haja uma definição clara na legislação, pode-se entender o acionista de referência como o acionista, ou conjunto de acionistas, que detém participação societária relevante em uma determinada companhia, capaz de lhe assegurar influência significativa sobre ela, sem, contudo, assegurar-lhe o seu controle.
Sua presença pode ser particularmente importante nas companhias com capital social disperso, movimento ainda incipiente, mas crescente, no mercado de capitais brasileiro. Sem o controlador, essas companhias passam a ter seus destinos traçados e implementados pelos administradores – conselho de administração e diretoria, elevando-se a importância da adoção das melhores práticas de governança corporativa para minimizar o risco de captura da companhia pelos administradores (instabilidade na definição da estratégia, assimetria de informações, controles inadequados, manipulação de resultados, remuneração excessiva e/ou não vinculada aos interesses da companhia, transações entre partes relacionadas, perpetuação no poder, instabilidade na gestão, dentre outros fatores).
É evidente, nesse sentido, que o acionista de referência pode desempenhar um papel importante na evolução do mercado de capitais, já que, ao menos em tese, tem o potencial de influenciar positivamente a gestão das companhias, participando ativamente das assembleias, elegendo membros do conselho de administração e acompanhando os negócios.
Em um mundo ideal, traria para as companhias um pouco da “visão do dono”, sem os conflitos usuais entre controladores e minoritários. Papel semelhante tem sido demandado pelas modernas práticas de governança corporativa dos investidores institucionais (vide o Código Brasileiro de Stewardship da AMEC), que, todavia, muitas vezes não têm estrutura e capacidade para participar de dezenas, centenas e até milhares de assembleias.
É preciso, no entanto, ficar atento a movimentos oportunistas, em que o acionista de referência passe a atuar como verdadeiro acionista controlador, sem que essa característica fique explicitada – sem ela, alguns direitos de minoritários não são aplicáveis (como, por exemplo, o direito de eleger em separado membros para o conselho de administração, nos termos regulados no art. 141, §4º da Lei 6.404/76) e os acionistas de referência não estarão sujeitos às disposições do art. 117 da Lei 6.404/76, que regula e impõe ao acionista controlador o dever de responder por perdas e danos nos casos de abuso do poder de controle.
É certo que a legislação brasileira já contém uma definição bastante flexível de acionista controlador, definindo-o como sendo “a pessoa, natural ou jurídica, ou o grupo de pessoas vinculadas por acordo de voto, ou sob controle comum, que: a) é titular de direitos de sócio que lhe assegurem, de modo permanente, a maioria dos votos nas deliberações da assembleia geral e o poder de eleger a maioria dos administradores da companhia; e b) usa efetivamente seu poder para dirigir as atividades sociais e orientar o funcionamento dos órgãos da companhia”.
Nesse sentido, sempre que esses requisitos estiverem presentes, aplicar-se-ão as regras que regulam o abuso do poder de controle e alguns direitos de minoritários passam a ser aplicáveis. O problema é que, como a lei fala em direitos de sócios que assegurem, de modo permanente, a maioria dos votos nas assembleias, a constatação dos requisitos que caracterizam a presença do controlador demanda tempo e análise fática. E até que isso se confirme, o acionista de referência poderia, ao menos em tese, atuar como se fosse um controlador, mas sem as proteções legais. Nesse contexto, é fundamental a atuação vigilante dos demais acionistas, em especial dos investidores institucionais, da B3 e, principalmente, da CVM.
De qualquer maneira, partindo-se do pressuposto da boa-fé, a presença dos acionistas de referência é bem-vinda ao mercado de capitais, mas demanda uma evolução na forma como são definidos seus papéis e responsabilidades.
A começar por uma definição mais clara do significado da expressão “acionista de referência” e de total transparência em relação à sua presença. Depois por demandar dos acionistas de referência que (i) em linha com o que já é demandado dos investidores institucionais, efetivamente atuem no interesse da companhia, participando das assembleias, elegendo membros(as) independentes para o conselho de administração, interagindo com os demais acionistas e com a companhia para contribuir para a sua sustentabilidade, bem como que (ii) sejam transparentes quando perceberem que efetivamente passaram à condição de acionista controlador.
Por fim, é preciso que se discuta a evolução da legislação e das regras de governança corporativa, para assegurar a representatividade e os direitos de minoritários em situações em que o acionista de referência esteja em papel que o aproxime da figura do controlador.
Não há uma fórmula única sobre como o tema deve ser tratado, mas é importante que se avance nas discussões para a construção de uma governança sólida, que reconheça a figura e a importância do acionista de referência, mas ao mesmo tempo seja capaz de identificar situações em que o grau de influência demande um adequado gerenciamento dos riscos associados a uma eventual atuação similar à de um controlador, sem a adequada proteção dos minoritários e do mercado.
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