Os deveres e responsabilidades de quem está à frente de uma empresa de capital aberto são amplamente conhecidos há quase 50 anos. Desde 1976, a Lei 6.404, das sociedades por ações, define que é obrigação do administrador deliberar e fiscalizar de forma diligente, com lealdade, dentro dos limites de seus poderes e sem conflito de interesse. Ele também não pode ser responsabilizado pessoalmente por prejuízos ou danos a terceiros, a não ser quando age com culpa, dolo ou se violou, de alguma forma, o estatuto da companhia.
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As regras não mudaram desde que a lei foi redigida, mas isso não significa que elas estejam defasadas. Em princípio, a aplicação da lei deve se adequar aos valores e comportamentos de cada época, acompanhando a evolução da sociedade e das próprias técnicas de administração. “Ser diligente no passado não é a mesma coisa que ser diligente hoje”, explicou Richard Blanchet, sócio do escritório Blanchet Advogados, no mais recente encontro da Conexão Capital.
O evento tratou, justamente, sobre a responsabilidade dos administradores no século 21. “A letra da lei não muda, mas o tempo gasto para fiscalizar e deliberar é muito maior do que no passado”, disse Blanchet. Segundo ele, essa mudança é reflexo da ampliação dos temas tratados nos conselhos de administração e de uma cobrança para que os assuntos sejam analisados com mais intensidade. “Os conselhos se reuniam uma vez por trimestre. Hoje, isso é impossível”.
Ambiente de litigância
A pauta discutida ficou mais complexa. Até porque aquilo que se entende como o interesse da companhia, a ser defendido pelos administradores, também é novo. Até pouco tempo atrás, o objetivo era tão somente lucrar e dar retorno aos acionistas, interesses conectados aos princípios do capitalismo de shareholders. A agenda ESG, contudo, trouxe a necessidade de que as empresas busquem lucros de forma sustentável, levando em conta os impactos ao meio ambiente e à sociedade, cada vez mais ativista. Assim, os administradores se viram obrigados a atuar em conformidade com um modelo diferente de capitalismo.
Um novo ambiente de litigância se formou, em que administradores podem ser (e têm sido) responsabilizados por não darem a devida atenção a esses temas e seus impactos nos negócios da companhia. No mês passado, por exemplo, a ONG ClientEarth entrou com uma ação judicial inédita contra 11 membros do board da petroleira Shell, alegando negligência na gestão de riscos climáticos. O processo, apoiado por investidores institucionais da companhia, se ampara no argumento de que o conselho não estaria atuando de forma adequada para que a Shell implemente metas tangíveis de descarbonização.
A responsabilização já não recai apenas em quem comete o dolo diretamente. Aqueles que não atuam na construção de uma cultura para prevenir o dano também podem ser penalizados. “Em relação ao ESG, a expectativa é de que haja mais vocalização. A parte de moldura, de narrativa, até que está bastante avançada. Já a entrega e a mensuração permanecem desafios e estão sob construção”, afirmou Deborah Wright, conselheira de empresas e também do Instituto Brasileiro de Governança Corporativa (IBGC)
Nos iludimos?
Escândalos corporativos recentes, como o rombo bilionário das Lojas Americanas, são vistos como um desserviço para o mercado de capitais, por se tratarem de companhias que carregavam selos de alta governança. O episódio da varejista suscitou questionamentos sobre a diligência de diferentes atores, incluindo, além dos conselheiros, acionistas de referência, auditores internos, investidores institucionais e até do próprio regulador. “Vamos ter que colocar foco renovado em controles, compliance, transparência e accountability. Me pergunto se nos iludimos achando que essas questões já estavam mais avançadas”, disse Deborah.
Para a advogada Gabriela Blanchet, adaptar a cultura organizacional para que ela responda mais rapidamente às transformações das bases do capitalismo é um fator crítico. “O conselho e a diretoria têm um papel fundamental para a criação e a perpetuação de uma cultura organizacional, seja liderando pelo exemplo ou pela omissão”, afirmou. “Não há empresa ética com líderes que estimulem um modelo de cultura tóxica em que as pessoas deixem de dar importância a normas e leis”.
Olhar para frente
Ainda que os escândalos em companhias com os melhores selos de governança sirvam de munição para um movimento emergente que ataca o ESG, os aliados das boas práticas acreditam que essas crises podem gerar oportunidades de avanço legislativo e de mentalidade. Casos de fraude como o da companhia de energia norte-americana Enron e da empresa de telecomunicações WorldCom, no início dos anos 2000, impulsionaram a evolução da governança de maneira definitiva. “Os escândalos recentes vão nos fazer olhar para frente”, afirmou Blanchet.
Fábio Coelho, presidente-executivo da Associação de Investidores no Mercado de Capitais (Amec), acredita que os recentes imbróglios corporativos já tenham deixado lições para reguladores e instâncias de governança. “Na temporada de assembleias que começa agora, em março, já temos um olhar diferente dos itens da pauta de deliberação, sobre aprovação de contas e remuneração dos administradores”, afirmou. E a partir daí, diz o dirigente, certamente vão surgir outras lições.
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