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O dever dos administradores de vigiar em tempos de ESG
Caso McDonald´s denota a crescente importância do tema e o cuidado de Delaware com a responsabilização dos administradores
Pablo Renteria
Pablo Renteria é sócio-fundador do Renteria Advogados e professor de direito civil da PUC-Rio. Foi diretor e superintendente da CVM | Ilustração: Julia Padula

Com o avanço da agenda ESG, tem-se cobrado dos administradores de companhias abertas uma atenção maior para temas que, sob uma perspectiva mais tradicional, poderiam parecer mais distantes do que mais importa na condução dos negócios sociais: a criação de valor para os acionistas. Em particular, tem ganhado força a ideia de que os administradores deveriam dedicar-se ao monitoramento de riscos ambientais e sociais, que no passado poderiam ser relegados a um plano secundário.  


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O caso McDonald’s e o alargamento do dever dos administradores de vigiar

Nos Estados Unidos, tal movimento parece ter ganhado impulso com as decisões proferidas pelo Judiciário de Delaware, em janeiro e março deste ano, no âmbito do processo movido por um grupo de acionistas do McDonald’s com o objetivo de pleitear a responsabilização do ex-diretor global de recursos humanos e de membros do conselho de administração por terem supostamente permitido que se criasse dentro da empresa uma cultura conivente com assédios sexuais, entre outras condutas inapropriadas. De acordo com os acionistas, a companhia teria sofrido danos relevantes em razão do abalo à sua imagem e de inúmeros processos indenizatórios movidos por funcionários, além de ter perdido a confiança de seus empregados.  

As decisões chamaram a atenção por indicarem uma ampliação significativa do dever de monitoramento. Até então, os poucos casos de descumprimento do dever dos administradores de vigiar que não haviam sido arquivados pela Corte tratavam da fiscalização de riscos “críticos” para a continuidade da empresa. Por exemplo, no precedente Marchand vs. Barnhill, envolvendo uma fabricante de sorvetes, a Suprema Corte estadual entendeu inadequada a conduta dos conselheiros que deixaram de vigiar irregularidades sanitárias que acabariam por causar a interrupção de todas as atividades da companhia.  

No entanto, no caso McDonald’s, a Corte ressaltou que o dever dos administradores de monitorar abarca não apenas os riscos de compliance “críticos”, mas todos aqueles considerados “centrais” para a atividade empresarial. Desse modo, neles estariam incluídas — notadamente para companhias que fazem uso intensivo de mão de obra — condutas laborais inadequadas.  

Esse alargamento reflete, em boa medida, a importância maior do combate ao assédio e a outras condutas desrespeitosas no ambiente corporativo. Se no passado essas práticas podiam contar com algum grau de tolerância, hoje elas devem ser firmemente combatidas, até mesmo para evitar que a companhia sofra pesadas consequências adversas, inclusive no que diz respeito à sua imagem e ao seu patrimônio. Definitivamente, tais desvios de conduta se tornaram um importante risco empresarial e, portanto, nada mais natural que, em defesa da companhia, os administradores adotem controles internos para a sua prevenção.       

O cuidado a ser tomado com a responsabilização dos administradores 

No entanto, é bom destacar que esse movimento benfazejo não deve ser acompanhado de um endurecimento da responsabilidade pessoal do administrador, que coloque sobre os seus ombros um ônus exagerado. Isso não contribuiria para o avanço da agenda ESG; ao reverso, muito provavelmente teria por efeito aumentar a resistência a tais temas, além de possivelmente afugentar das companhias abertas profissionais talentosos e bem preparados, mas avessos a riscos de responsabilização.  

Esse cuidado com a apuração de responsabilidades individuais também pode ser observado no caso McDonald’s. Na primeira decisão, de janeiro deste ano, a Corte de Delaware considerou suficientemente fundamentado o pedido de indenização movido em face do antigo diretor de recursos humanos da companhia, porque, enquanto esteve no cargo, ele havia ignorado conscientemente diversos sinais de alerta quanto à ocorrência de assédios sexuais e outras condutas inadequadas. Para piorar as coisas, ele próprio — e logo ele, que era diretor de recursos humanos — havia sido acusado de assédio aos funcionários.        

Sendo esse o caso, a má-fé do diretor seria patente, por deliberadamente fechar os olhos para as evidências de que a companhia estava sendo prejudicada por condutas lesivas à sua força de trabalho. Não causa espanto que, em face dessas circunstâncias, a Corte de Chancelaria tenha decidido pelo prosseguimento da ação de responsabilidade. A maior novidade é que foi a primeira vez que uma corte de Delaware reconheceu que o dever de vigiar também se aplica a diretores, e não apenas a membros do conselho de administração — um entendimento que, do ponto de vista do direito brasileiro, não surpreende, por estar bem sedimentado no sistema da Lei das S.As. e já ter sido expressamente reconhecido em precedentes da CVM.   

Já na segunda decisão, proferida em março deste ano, a Corte encerrou o processo em face dos membros do conselho de administração, por entender que não havia evidências de que agiram contrariamente ao seu dever de monitoramento. Nesse particular, os acionistas requerentes argumentaram que o conselho havia adotado medidas insatisfatórias em resposta aos sinais de que existia dentro da companhia uma cultura permissiva a condutas desrespeitosas. A isso, porém, a Corte afirmou que não basta alegar uma reação fraca ou inadequada. Para que fique comprovada a violação ao dever dos administradores de monitorar, é indispensável demonstrar que os conselheiros agiram de má-fé. 

A discricionariedade dos administradores e o problema do viés retrospectivo 

Essa análise criteriosa — que, à primeira vista, poderia soar demais restritiva — revela, em verdade, o profundo cuidado das cortes de Delaware, já manifestado em precedentes anteriores, para não invadir de forma desmedida a esfera de discricionariedade dos administradores. Afinal, a lei não prescreve o modo pelo qual eles devem monitorar as atividades sociais e reagir a eventuais sinais de alerta. Há diversas maneiras, igualmente razoáveis, de supervisionar a companhia, cabendo-lhes optar por aquela que julguem ser a mais apropriada. E, como não sabem de antemão se essa opção se revelará a melhor no futuro, a adoção de um padrão de julgamento mais intrusivo levaria a um regime de responsabilização injusto, no qual o administrador poderia ser condenado a indenizar a companhia, ainda que tivesse empregado as medidas que, de boa-fé, lhe pareciam as mais adequadas.  

Tal reflexão também é pertinente no contexto brasileiro, em que a eventual violação aos deveres de monitorar e de investigar sinais de alerta pode ensejar ações de responsabilidade civil, bem como a instauração de processos sancionadores na CVM. Não por acaso o Colegiado da autarquia vem adotando um padrão de revisão que reputa o dever dos administradores de vigiar violado apenas quando identificada uma “falha total” ou “sistemática” nos controles internos. Há nisso não apenas o respeito às decisões tomadas de boa-fé pelos administradores, mas também um esforço de autocontenção para evitar o equívoco de julgar-se o comprimento de deveres fiduciários pelo retrovisor do tempo, na posição privilegiada de quem já sabe o resultado das decisões tomadas pelos administradores.  

Há algumas décadas estudos de psicologia apontam para os problemas causados pelo chamado “viés de retrospectiva”. É fácil, porém injusto, concluir que os administradores poderiam ter tomado determinadas providências que, apenas com a passagem do tempo, passaram a ser vistas como intuitivas. Por isso que, mais do que nunca, tendo em vista o atual movimento de alargamento do dever dos administradores de vigiar, vale a máxima de que a conduta deles deve ser examinada desconsiderando-se por completo fatos e informações posteriores, bem como seus resultados e desdobramentos, que, naturalmente, eram desconhecidos à época em que a conduta foi praticada. 

*Pablo Renteria ([email protected]) é sócio fundador do escritório Renteria Advogados e professor de direito civil da PUC-Rio. Foi diretor e superintendente de processos sancionadores da CVM. 

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