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A inutilidade da regra de propriedade contemporânea
Não dá para entender como a norma se conciliaria com o único direito realmente essencial do acionista: ser beneficiário de fração de todo o resultado da empresa
propriedade contemporânea, A inutilidade da regra de propriedade contemporânea, Capital Aberto
A regra da propriedade contemporânea foi codificada nos EUA em 1881 — e depois mantida sob o discurso de que evitaria ações derivadas abusivas | Imagem: Freepik

Em colunas recentes publicadas na Capital Aberto, iniciou-se um debate sobre a regra americana da “contemporary ownership” (propriedade contemporânea). Segundo essa norma, para processar terceiros em prol da companhia (ação derivada), a pessoa já tinha que ser acionista quando da transação questionada. 


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Nelson Eizirik propôs que adotemos a regra no Brasil também nas situações em que um minoritário aciona controladores para indenizarem a companhia. Em seguida, Guilherme Setoguti mostrou como e por que a lei brasileira não tem essa exigência. 

O objetivo de quem defende a regra é legítimo: evitar ações abusivas, em prejuízo de um controlador que nada fez de errado, ou dos demais minoritários, que poderiam não ser compensados quando devido. Daí, convém a reflexão: será que a regra tem méritos?  

Três afirmações expõem bem a lógica da exigência de contemporaneidade: 

1. Comprar ações de uma companhia dá ao comprador o direito a receber fração dos resultados apenas de seus novos negócios, nunca de créditos já existentes na compra das ações. Não tem por que ser diferente para o direito à indenização. Coerência é fundamental. 

2. Ninguém contrata advogado para atuar em ação indenizatória com percentual do êxito, a não ser que o próprio advogado também tenha sofrido pessoalmente com o dano. Da mesma forma, os minoritários não aceitariam que um novo acionista surgisse do nada só para trazer para a empresa valores dela subtraídos. Levar parte da indenização só porque trouxe resultados positivos, com capital e esforço próprios? E o drama espiritual, a honra íntima ferida? Não pode ser só por dinheiro. 

3. A lei proíbe negociar direitos litigiosos com quem não integra a disputa. Por exemplo, ninguém pode pagar os custos de um autor num litígio em troca de parte dos possíveis ganhos. Essa proibição reforça a eficácia da exigência da propriedade contemporânea. Não fosse assim, quem quisesse investir numa ação derivada sem ser acionista desde o dano alegado o faria por simples contrato com algum acionista antigo. O investidor custearia o processo e ficaria com a maior parte do resultado. 

O problema é que, como o leitor já deve ter notado, essas três afirmações são falsas. 

“Mal” com o fim de litigar 

Criada pelas cortes americanas com outro objetivo (impedir que companhias forçassem a jurisdição federal fazendo um residente de outro estado comprar ações), a regra da propriedade contemporânea foi codificada nos EUA em 1881 — e depois mantida sob o discurso de que evitaria ações derivadas abusivas. A reforma legislativa de 1944 diz que a regra combateria o “mal” da compra de participação com o fim de litigar. Mas não mostrou a dificuldade que oportunistas teriam para achar acionistas dispostos a se associar ao abuso, nem explicou por que comprar ações para litigar seria um “mal” quando o processo fosse meritório. 

Não dá para entender como a regra se conciliaria com o único direito realmente essencial do acionista: ser beneficiário de fração de todo o resultado da empresa. Assim como recebem lucros gerados por negócios anteriores à sua entrada, novos acionistas não são excluídos do benefício indireto da indenização. Com a exigência de contemporaneidade, apesar de terem o direito, não podem defendê-lo em juízo. Faz sentido? 

Inútil para todos 

Dado seu objetivo autodeclarado, são mais comuns as críticas à regra pelo viés de proteção a minoritários. Injusto. Se ela tem alguma virtude, é a imparcialidade de ser inútil para todos os polos interessados. Sob sua vigência, causas meritórias são tão facilmente propostas quanto as oportunistas. Ainda sobrevive porque é tão banal contorná-la que não atrapalha a ponto de justificar o custo político de a defenestrar. 

Críticas à regra, porém, não se estendem a seu objetivo. A ideia de abuso de minoria por vezes é menosprezada, como se só controladores cometessem abusos. Minoritários não vêm do pó de outras estrelas. Cometem abusos pela mesma razão que controladores: são humanos, deparam-se com condições de se beneficiarem às custas de terceiros, e às vezes falham na ética. Por isso, é crucial que mecanismos voltados a evitar abusos não possam ser eles mesmos abusados.  

Por outro lado, não temos o problema dos EUA com strike suits. Lá, basta a corte decidir no início que a ação não é um total disparate e quem a moveu nada terá de pagar a quem foi processado, mesmo se perder. É um convite ao oportunismo. Pintar absurdos com cores de eloquência é uma das facetas da arte da advocacia.  

No Brasil não há esses incentivos perversos. A regra é que se a ação for improcedente, o autor deve pagar honorários ao outro lado, usualmente em torno de 10% da indenização pedida, e esse é, em geral, um excelente desestímulo à litigância abusiva. Nas ações derivadas, entretanto, o desestímulo é excessivo: como o minoritário é remunerado por fração da indenização, há um desequilíbrio entre os resultados, sendo possível ele ter de pagar, se derrotado, até mais do que ganharia se vitorioso. Em vez do excesso de ações infundadas, como nos EUA, é provável que o Brasil tenha falta de ações meritórias. 

Mudanças legislativas ou interpretativas são bem-vindas para reduzir os abusos, de quem quer que seja. Só devemos ter todo o cuidado para não importar o que é disfuncional. 

*João Accioly é diretor da Comissão de Valores Mobiliários (CVM) 

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