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Regulamentação da lei de ativos virtuais expõe limites da CVM
Seria mais coerente atribuir à autarquia um papel maior na regulação de criptoativos de investimento, mas essa não é a orientação do normativo brasileiro
Dever dos administradores: Pablo Renteria é sócio-fundador do Renteria Advogados e professor de direito civil da PUC-Rio. Foi diretor e superintendente da CVM | Ilustração: Julia Padula
Pablo Renteria é sócio-fundador do Renteria Advogados e professor de direito civil da PUC-Rio. Foi diretor e superintendente da CVM | Ilustração: Julia Padula

No último dia 13 de junho, foi publicado o tão aguardado decreto presidencial 11.563, que regulamenta a Lei 14.478, de 2002, marco legal dos ativos virtuais. Como esperado, o decreto atribui ao Banco Central do Brasil (Bacen) as competências previstas na lei para a regulação dos prestadores de serviços de ativos virtuais, o que compreende, entre outras atividades, a distribuição, intermediação e a custódia desses ativos. Seguindo o que determina o parágrafo único do art. 1º da lei, o decreto resguarda as competências já existentes da Comissão de Valores Mobiliários (CVM), ressaltando que as suas disposições não se aplicam aos ativos representativos de valores mobiliários sujeitos ao regime da Lei 6.385, de 1976.  


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Um regime dualista  

O decreto, portanto, confirma que, à semelhança do que já ocorre na regulação dos mercados tradicionais, haverá também no âmbito dos ativos virtuais um modelo dualista de regulação, baseado na divisão de atribuições (e na cooperação) entre o Bacen e a CVM. Esse dualismo, em alguma medida, justifica-se ante a natureza variada dos objetivos regulatórios a serem alcançados, que ora se aproximam mais do perfil de atuação do Bacen – como, por exemplo, a supervisão dos tokens utilizados para fins de pagamento ou ainda a preservação da solidez do mercado e de seus participantes –, ora se associam à regulação de condutas que é tipicamente desempenhada pela CVM. 

A respeito do tema, a organização internacional de reguladores de valores mobiliários (Iosco) colocou recentemente em audiência pública a sua proposta de recomendações para a regulação dos mercados de ativos digitais, a qual fornece subsídios importantes para a abordagem a ser adotada ao redor do mundo, inclusive no Brasil.  

A proposta destaca, em primeiro lugar, que a regulação dos criptoativos deve ser idêntica ou, ao menos, consistente com aquela aplicável aos mercados financeiros tradicionais, de maneira a evitar assimetrias regulatórias entre ativos que, apesar de terem suportes tecnológicos distintos, desempenham funções econômicas análogas. Assim, por exemplo, ativos virtuais representativos de derivativos devem ser submetidos pela CVM à regulação semelhante à aplicável aos tradicionais contratos derivativos. Aliás, essa recomendação também se mostra pertinente para a regulação do Bacen, que, da mesma forma, deveria assegurar tratamento coerente entre os ativos financeiros tradicionais e os ativos digitais que cumprem funções equivalentes. 

Na sequência, a proposta da Iosco traz diversas recomendações para a regulação dos mercados de criptoativos, que abordam temas bem conhecidos da regulação do mercado de valores mobiliários, como a repressão a fraudes, práticas manipulativas e insider trading. Nessa mesma linha, também apresenta recomendações sobre execução de ordens e a transparência na negociação em mercados organizados, bem como sobre transparência e conflitos de interesses na oferta e na listagem de criptoativos. 

Há outras recomendações que tratam de questões transversais que, na regulação brasileira, encontram-se, em alguma medida, presentes tanto na supervisão do Bacen como na da CVM — por exemplo, o tratamento de riscos operacionais e tecnológicos das instituições atuantes no mercado e a custódia dos ativos dos clientes. Mas, de um modo geral, a proposta da Iosco é voltada à proteção dos investidores de varejo e à promoção de mercados ordenados e eficientes de negociação de ativos digitais. São temas que, no cenário pátrio, se inserem nas atribuições da CVM, o que corrobora a opção da Lei 14.428, de 2022, em resguardar as competências da autarquia no que tange aos ativos virtuais representativos de valores mobiliários. 

Competências limitadas 

No entanto, o sistema regulatório brasileiro tem idiossincrasias que tornam menos racional a divisão de competências entre as duas autoridades. Nesse aspecto, convém ressaltar que a nossa lei não atribui à CVM competência exclusiva para regular todas as oportunidades de investimento que são ofertadas ao público. Ao contrário, diversas modalidades de investimento escapam à sua supervisão — como, por exemplo, os títulos de dívida de responsabilidade bancária —, o que faz com que algumas questões relacionadas à proteção de investidores tenham de ser enfrentadas também no âmbito da regulação do Bacen.  

Essa observação é especialmente importante para a regulação dos criptoativos, uma vez que muitos deles constituem commodities que não se enquadram em nenhuma espécie de valor mobiliário prevista no art. 2º da Lei 6.385. São, assim, ativos virtuais que ficam de fora da atuação da CVM. 

No mais das vezes, um criptoativo é considerado valor mobiliário quando se encaixa no inciso 9 do referido art. 2º, que trata dos títulos ou contratos de investimento que, sendo ofertados publicamente, gerem direito de participação, de parceria ou de remuneração, inclusive resultante de prestação de serviços, cujos rendimentos advêm do esforço do empreendedor ou de terceiros. 

Ocorre que muitos dos tokens oferecidos ao público são adquiridos por investidores em razão da expectativa de que venham a ser valorizar no futuro — algo semelhante ao que ocorre quando alguém compra um imóvel esperando revendê-lo por um preço superior. No entanto, essa expectativa de ganho de capital não constitui um “direito de participação, de parceria ou de remuneração”. O investidor, com efeito, não tem o poder de exigir do emissor do token o pagamento de alguma remuneração ou participação no resultado da sua atividade.   

É verdade que, em algumas decisões, seguindo o exemplo norte-americano, a CVM adotou uma interpretação ampliada, sustentando que a expectativa de ganho com base na valorização do criptoativo poderia, a depender das circunstâncias, fazer com que ele fosse considerado um título de investimento coletivo. No entanto, como já defendi em outra oportunidade nesta coluna, essa interpretação não parece ser compatível com o texto da lei brasileira, que, repita-se, exige um efetivo direito de participação, parceria ou remuneração para a caracterização do investimento coletivo. É pacífico, no direito pátrio, que a mera expectativa não gera direito.  

Inspiração versus identidade 

Nesse ponto, a CVM se mostrou mais acertada na elaboração do Parecer de Orientação 40, de 2022, sobre os criptoativos e o mercado de valores mobiliários. Primeiro por ter ressaltado que, apesar da inegável influência do direito norte-americano na definição brasileira de contrato de investimento coletivo, “o entendimento pátrio pode ser distinto do estrangeiro em casos concretos, uma vez que a origem e a inspiração não determinam identidade conceitual, tampouco interpretativa”. 

Além disso, ao tratar dos requisitos de configuração do contrato de investimento coletivo, o parecer esclarece que a expectativa de benefício econômico a que se referem os precedentes da autarquia deve resultar do “direito a alguma forma de participação, parceria ou remuneração, decorrente do sucesso da atividade”. Ou seja, não basta a mera expectativa de fato, sendo necessária, para que se trate de valor mobiliário, a atribuição de um direito ao investidor.  

Em suma, os ativos virtuais que são adquiridos para fins de investimento, com base na esperança de que se valorizem no futuro, não estão debaixo da regulação da CVM. Tendo em vista o que dispõe o decreto presidencial recém-editado, esses ativos situam-se sob a competência do Bacen, ao qual cabe cuidar, inclusive, dos temas regulatórios que foram apresentados na proposta da Iosco. Certamente, seria mais coerente que essas questões fossem atribuídas à CVM, por serem mais próximas de sua vocação regulatória. Não é essa a diretriz, contudo, do atual arcabouço normativo.  

*Pablo Renteria ([email protected]) é sócio fundador do escritório Renteria Advogados e professor de direito civil da PUC-Rio. Foi diretor e superintendente de processos sancionadores da CVM. 

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