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Caso Ben & Jerry´s: o desafio da independência do conselho de administração
A má compreensão sobre as estruturas de governança adotadas tem resultado em surpresas e frustrações para investidores
Raphael Martins
Raphael Martins é sócio do Faoro Advogados | Ilustração de Julia Padula

Ganhou atenção a decisão do conselho de administração da fábrica de sorvetes Ben & Jerry’s de, após pressão de organizações civis, suspender as vendas para os assentamentos israelenses na Palestina. Por razões que seriam difíceis de reproduzir, o board entendeu que apenas os israelenses localizados fora de assentamentos poderiam desfrutar a iguaria. 


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O esforço da empresa do pequeno estado americano de Vermont de interferir nas grandes questões geopolíticas, entretanto, foi de encontro não apenas aos compromissos previamente assumidos com os parceiros comerciais da região, como aos interesses de sua controladora, a multinacional Unilever. No que virou uma complexa disputa, de um lado, o conselho de administração tem buscado reafirmar sua autonomia para implementar decisões. De outro, a entidade controladora, impedida contratualmente de destituir a maioria independente do órgão de administração, utiliza-se de todo um arsenal para pressionar e intimidar a subsidiária “inconveniente”, incluindo corte de salário dos membros independentes do conselho de administração e até mesmo um spin off das operações de fabricação de sorvete em Israel. 

O caso suscita inúmeras reflexões interessantes. O board de uma subsidiária teria autonomia para implementar políticas com repercussões negativas nas demais empresas do próprio grupo econômico? Qual a responsabilidade dos conselheiros por decisões que, ao mesmo tempo, sejam prejudiciais ao negócio e estejam alinhadas à filosofia da empresa ou, de maneira mais abstrata, com os valores de sua política ESG? Qual a responsabilidade do controlador por impedir a empresa controlada de realizar seus valores não comerciais?  

Por limitações de diversas ordens, chegamos a outra questão, que permeia todas as demais: como garantir que os conselhos de administração tenham efetiva independência

Onde mora o controle 

Não é possível ter fantasias sobre o assunto. A reflexão que se coloca, analisada desapaixonadamente, é apenas onde será exercido o poder de controle: na esfera dos acionistas — seja por um controlador ou não — ou no campo da administração. Estruturas que conferem autonomia e independência à administração apenas deslocam o centro de gravidade desse poder de um dos polos para o outro.  

Curiosamente, as soluções adotadas para garantir independência ao board têm focado apenas na dimensão subjetiva, isto é, nas características pessoais que serviriam de indícios da independência do conselheiro de administração. Nesse sentido, busca-se definir atributos — ausência de relação de parentesco, contratual ou empregatícia, ausência de dependência financeira, etc. — que permitam carimbar alguém como independente ou não. Consequentemente, o percentual de indivíduos assim qualificados indicaria o grau de independência não apenas do board mas também das decisões adotadas por ele. 

Essa solução lembra a da fantasia do Barão de Mänchhausen, que, preso na lama, tenta se levantar puxando a si mesmo pelos próprios cabelos. A experiência evidencia que a independência do conselho de administração está intrinsicamente associada à existência de condições objetivas ou institucionais vinculadas a três conjuntos de prerrogativas. Em primeiro lugar, o político, isto é, as decisões da esfera de competência devem ser adotadas em caráter final e incondicional à vontade de terceiros. Outro aspecto relevante é o formativo, ou seja, a prerrogativa de definir a composição do órgão tanto no momento inicial quanto após as mudanças. Finalmente, há o orçamentário: a definição da estrutura de custeio, que engloba, mas não se limita, à própria remuneração. 

Governança inútil? 

Naturalmente, sobre cada um desses aspectos, não existe uma resposta binária quanto à existência ou não de independência. Há um espectro de possibilidades. Por exemplo, quanto ao aspecto formativo, em uma ponta, está o conselho de administração que não participa do processo de composição ou renovação do próprio órgão; na outra, sem entrar no mérito da legalidade, estruturas que limitam a eleição do conselho de administração àqueles escolhidos ou chancelados pelos atuais conselheiros. Entre um e outro, há estruturas nas quais o órgão influencia ou interfere no processo. 

Entretanto, na experiência brasileira, tão importante quanto compreender em que consiste a independência do órgão é saber avaliar a resiliência dela. Em outras palavras, reconhecer que existem instrumentos institucionais mais ou menos efetivos para assegurar determinado arranjo institucional existente, cada um deles com benefícios e custos.  

De um lado, tem-se as soluções contratuais. Elas envolvem quóruns qualificados para aprovação de determinadas interferências no conselho de administração, acordos de acionistas que limitam essa possibilidade, e mesmo limitações estatutárias ao direito político do acionista. Um arranjo conhecido nesse sentido é aquele que limita o direito político de cada acionista ou grupo de acionistas a um percentual máximo e bastante reduzido em cada assembleia. Nesses casos, a estrutura de governança ganha em resiliência, entretanto, corre-se o risco de engessamento de uma estrutura de poder gerencial que já pode não se mostrar adequada. 

No outro, tem-se os arranjos que envolvem soluções financeiras, em que a interferência no conselho de administração está associada ao pagamento de um “pedágio”, normalmente aos demais acionistas. Em um exemplo, a intervenção precisaria ser precedida de uma oferta de compra de ações em condições previamente definidas. Aqui, ganha-se flexibilidade, mas transforma-se a estrutura de governança em um preço que entra na equação do custo da intervenção no conselho de administração. 

Entretanto, tão ou mais importante que a resiliência da estrutura de governança são os mecanismos de solução de impasse. Considerando que o pior cenário para a companhia é o conflito interno entre administradores e acionistas — ou dos acionistas entre si — devem ser previamente pensados os mecanismos de mediação que permitam a solução dos casos críticos. 

A ausência de uma compreensão adequada sobre esses aspectos (independência objetiva, resiliência estrutural e mecanismo de resolução de impasses) recorrentemente leva investidores a surpresas e frustrações. No caso da fabricante de sorvetes, o que foi anunciado como sendo um board munido dos poderes necessários para uma atuação independente mostrou-se falacioso. Ao que tudo indica, faltaram as prerrogativas políticas e orçamentárias para implementar a pauta definida pelo órgão. Da mesma forma, a estrutura de governança não se mostrou resiliente e tampouco tem se mostrado capaz de superar o impasse criado. 

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