O agronegócio é, sem dúvida, uma vocação do Brasil e precisa ser valorizado à altura. Como celeiro do mundo, o país produz alimentos suficientes para suprir as necessidades calóricas de aproximadamente 900 milhões de pessoas, sendo líder nas exportações globais de sete alimentos essenciais[1].
Essa posição de destaque do país na garantia de segurança alimentar à nível global deve ser entendida dentro de um contexto mais amplo, levando em conta três fatores fundamentais em relação à alta demanda de alimentos no mundo no presente e potencial crescimento no futuro:
1) o crescimento populacional contínuo – que aumenta a demanda por alimentos;
2) o crescimento da renda per capita e da urbanização em determinados países – que altera os padrões de consumo dos alimentos. Destaca-se que o aumento da renda populacional leva ao maior consumo de proteína animal, principalmente em países em desenvolvimento[2]; e
3) o combate à fome e à subnutrição – considerando que quase 900 milhões de pessoas ao redor do mundo não têm acesso à alimentação adequada ou suficiente.
Além disso, o Brasil também é um dos países com maior potencial de produção de bioenergia do mundo, segundo dados da Unctad da ONU[3], com destaque para a atratividade dessa alternativa sustentável em detrimento das fontes de energia não renováveis.
Nesse contexto, o protagonismo do país na segurança alimentar e na produção de bioenergia traz consigo uma grande responsabilidade, que vem acompanhada, sim, de muitas oportunidades. É imperativo que o país continue promovendo um agronegócio moderno, tecnológico, produtivo e sustentável.
Em relação ao quesito produtividade, nossa indústria agro é referência mundial em agricultura tropical[4]. Adaptamos culturas e técnicas de cultivo ao clima tropical de forma inovadora, e, por isso, o país é conhecido por ter duas, e em determinadas regiões, três safras por ano. Os dados apontam que a produtividade agrícola brasileira aumentou 58% desde os anos 2000, em comparação com 37% nos países emergentes e 32% nas economias avançadas[5].
Segundo dados do Ministério da Agricultura e Pecuária, as exportações do agronegócio brasileiro bateram recorde no primeiro trimestre de 2024 atingindo o marco de USD37,44 bilhões, o que representa um aumento de 4,4% em relação ao mesmo período de 2023[6]. Esse recorde deve ser contextualizado em um cenário de dificuldade para o agronegócio brasileiro, com preço baixo de commodities e adversidades climáticas atribuídas ao fenômeno El Niño, com quebras de safra em determinadas regiões; o que corrobora a resiliência do setor quando considerado em conjunto.
Fiagros
Antes bastante dependente de subsídios estatais, o agronegócio brasileiro tem diversificado suas fontes de financiamento. Na safra 2023/24, o financiamento privado já alcança 67%, enquanto o financiamento público fica em 33%[7].Nessa seara, vale destacar as formas de complementação de captação de recursos para o agronegócio via mercado de capitais. Além das CPRs, CDCAs e dos CRA, o setor conta desde 2021 com os Fundos de Investimento em Cadeias Agroindustriais (os Fiagro).
Criados pela Lei 14.130, em março de 2021, que alterou a Lei 8.668 que regula os fundos de investimento imobiliário (FII), o Fiagro, que se inspirou nos FIIs, é um veículo de investimento coletivo direcionado ao financiamento privado do agronegócio. O foco de investimento dos Fiagros são imóveis rurais, participações societárias, ativos financeiros, direitos creditórios, títulos de crédito, títulos de securitização, cotas de FIDCs e outros valores mobiliários, desde que ligados às cadeias produtivas agroindustriais e observados os parâmetros da lei.
O Fiagro apresenta vantagens tributárias para determinados investidores, com destaque para a possibilidade de isenção do IR fonte em relação aos rendimentos distribuídos para pessoas físicas, desde que cumpridos determinados requisitos que incluem suficiente dispersão do papel e negociação em mercado de bolsa ou balcão, de forma similar aos FIIs[8]. Também tem outras vantagens relacionadas ao diferimento do pagamento do imposto de renda oriundo do ganho de capital sobre as cotas integralizadas com imóveis rurais para a data da alienação ou a data de resgate dessas cotas em caso de liquidação do Fiagro, assim como à isenção de IR fonte, análoga àquela aplicada às pessoas físicas, que se estende a determinados ativos quando estes compõem a carteira do Fiagro, tais como CDCAs, LCAs e CRAs.
Considerando a competência normativa da CVM para regular os fundos de investimento, positivada pela Lei de Liberdade Econômica, e a demanda do mercado à época da sua criação por uma regulamentação expedita do FIAGRO para poder começar a utilizá-lo, a autarquia editou a Resolução CVM 39, em julho de 2021. Essa norma foi editada em caráter temporário e experimental e não criou uma disciplina específica para o Fiagros, mas admitiu a utilização de regulamentações existentes aplicáveis a outros fundos de investimento, de acordo com os ativos integrantes da carteira dos Fiagros.
Assim surgiram os FIAGROs – Direitos Creditórios (regidos pelas regras aplicáveis aos FIDCs), os FIAGROs – Imobiliários (regidos pelas regras aplicáveis aos FIIs)[9] e os FIAGRO – Participações (regidos pelas regras aplicáveis aos FIPs).
Essa solução temporária foi avaliada pela própria CVM como bem-sucedida com base em aspectos quantitativos e qualitativos[10]. A autarquia já conta inclusive com uma superintendência específica dedicada ao agronegócio, mostrando a importância e o potencial do setor. Segundo o Boletim Agronegócio da CVM, em dezembro de 2023, 97 Fiagros operacionais estavam registrados na CVM, os quais respondiam por um Patrimonio Líquido de R$38 bilhões, o que representa um aumento de volume de 262% em doze meses[11].
Todavia, esse volume ainda pode ser considerado embrionário em relação ao potencial do produto e à necessidade de recursos do agronegócio brasileiro, visto que o setor responde por quase um quarto do PIB do país. Ainda vemos poucos Fiagros com teses de investimento em imóveis rurais por exemplo, sendo necessário que haja mais conhecimento das peculiaridades de tais ativos e dos riscos envolvidos pelos gestores e investidores para que mais produtos como esse saiam do papel.
Nesse sentido, uma tese de investimento recente é a do ‘Fiagro Reorg’, proposta pela Câmara de Modernização do Crédito e Instrumentos de Gestão de Risco do Agronegócio do Ministério da Agricultura (ModerCred). Trata-se de uma alternativa à recuperação judicial para a reestruturação de dívidas de produtores rurais, na qual ocorre a substituição das garantias imobiliárias detidas pelos credores – revendas, fornecedores de insumos, bancos, entre outros – por cotas de um Fiagro que deterá os respectivos imóveis rurais. Dessa forma, os credores passam a ser cotistas do Fiagro, na proporção das suas dívidas, com liquidez para vender as cotas no mercado secundário, e assim podem buscar evitar as demoras e inseguranças jurídicas na execução de garantias que têm ocorrido na recuperação judicial de produtores rurais. O produtor rural, por sua vez, se beneficia de um alongamento e da possibilidade de repactuação de sua dívida, e continua desenvolvendo a atividade produtiva no imóvel na condição de arrendatário, podendo ainda deter direito de preferência para recomprar as cotas do Fundo e, dessa forma, reaver a propriedade dos imóveis conforme consiga se recuperar financeiramente.
Nesse contexto de relevância do setor para o mercado de capitais, considerando o caráter provisório da Resolução CVM 39, após três anos de experimento, a CVM optou por editar uma regulamentação definitiva, com abertura de consulta pública em outubro de 2023 para discutir a proposta de regulação definitiva do Fiagros. A reforma será feita por meio de adição do Anexo Normativo VI à Resolução CVM 175, conhecido como Marco Regulatório dos Fundos de Investimento, que consolida as regras gerais e específicas aplicáveis a todas as categorias de fundos. Os participantes do mercado puderam enviar contribuições até o final de janeiro do corrente ano, as quais estão disponíveis publicamente no site da CVM e, no momento, estão sendo avaliadas pela autarquia para edição da norma definitiva.
Na Consulta Pública CVM SDM 03/2023, que tratou da regulamentação definitiva dos Fiagros, quatro questões principais foram objeto de comentários pelos participantes do mercado.
A primeira questão envolve a definição de imóvel rural, com os participantes apontando que a definição proposta não está adequada. Os participantes contestaram a inclusão do Certificado de Cadastro de Imóvel Rural (CCIR) como elemento essencial do conceito de imóvel rural para a regulamentação dos Fiagros, argumentando que isso poderia restringir excessivamente a utilização do veículo de investimento sem justificativa plausível, considerando que a ausência do CCIR não limita o exercício de qualquer dos elementos do direito de propriedade, inclusive em termos de sua exploração econômica. Nessa linha, também houve menção à necessidade de alinhamento do conceito com normas já consagradas no ordenamento jurídico, como o Estatuto da Terra e o Código Tributário Nacional. Além disso, foi sugerido que a definição abarcasse também outros direitos reais, não obstante a Lei 14.130/21 limite o investimento a “imóveis rurais”.
A segunda questão diz respeito ao mercado de créditos de carbono, em relação a qual os participantes apontaram problemas na definição proposta pela normativa da CVM. Eles pleitearam maior abrangência na definição de “negociação”, de forma a abarcar créditos de carbono “emitidos”, “validados”, “estruturados”, “incorporados”, dentre outras transações, pelos Fiagros, bem como a exclusão do termo “Brasil”, uma vez que a definição restringe a negociação de créditos de carbono ao país. Também ressaltaram a importância de alinhar a definição de crédito de carbono com o Projeto de Lei 2.148/15 em tramitação no Congresso Nacional, que pretende instituir o mercado regulado de créditos de carbono[12], e discutiram os limites da responsabilidade do gestor na seleção desses ativos.
Uma terceira questão é a aplicação de regras subsidiárias de outros anexos quando a política de investimento do Fiagro prever que mais de 1/3 do patrimônio líquido seja investido em ativos que se enquadrem em outra categoria de fundo, sugerida no art. 10° da proposta de Anexo Normativo VI, a qual gerou consenso entre os participantes do mercado de que pode gerar insegurança jurídica e aumentar o risco de arbitragem regulatória. Eles apontaram que essa prática representa um retrocesso a uma forma de regulamentação já superada pela CVM, limitando a flexibilidade para a alteração dos anexos específicos dos outros fundos, já que qualquer alteração poderá gerar um efeito rebote a um outro produto não relacionado.
Por fim, em relação ao quarto tópico, os participantes concordaram com a ampliação do rol de ativos descrito no art. 9° da proposta de Anexo Normativo VI, a fim de evitar que a taxatividade do artigo prejudique o desenvolvimento futuro dos Fiagros. Foi destacada a necessidade de uma maior abrangência nesse aspecto para garantir a evolução e a adaptação dos Fiagros às demandas do mercado, não obstante os limites previstos na Lei 14.130/21.
Além disso, o agronegócio também tem peculiaridades já que os produtores rurais costumam operar como pessoa física e, embora muitos já adotem mecanismos de governança adequados, a regulamentação do mercado de capitais e o mindset dos gestores e investidores ainda precisa se adequar a essa nova realidade, visto que o mercado de capitais está mais adaptado ao investimento em pessoas jurídicas. Esse é um passo considerado importante para que o mercado de capitais possa contribuir de forma mais efetiva para o financiamento do setor.
Avaliamos, enfim, que o país está muito bem posicionado para enfrentar os desafios e aproveitar as oportunidades que se apresentam no setor do agronegócio, tendo conquistado uma posição de referência em produtividade e inovação na agricultura tropical. Não obstante, a necessidade de recursos para o setor não é somente elevada, mas também recorrente, e, deste modo, a diversificação de fontes de financiamento é estratégica. Nesse sentido, o mercado de capitais pode contribuir cada vez mais com o agronegócio brasileiro como fonte complementar de recursos e, em especial, os Fiagros apresentam-se como um produto potencialmente atrativo para o setor, podendo viabilizar financiamento de médio e longo prazo em condições interessantes para o setor. A iniciativa da CVM de modernização regulatória e discussão com os participantes do mercado visando a edição de uma regulamentação definitiva é um passo importante para a segurança jurídica e consolidação dessa modalidade de fundo de investimento. Esperamos em breve contar com um arcabouço regulatório perene, objetivo e seguro para que os Fiagros atinjam todo o seu potencial de uso, seguindo o sucesso que tantos outros fundos de investimento já tiveram em seus respectivos segmentos.
[1] De acordo com levantamento do Banco BTG, o Brasil é líder na exportação mundial de soja (56%), milho (31%), café (27%), açúcar (44%), suco de laranja (76%),carne bovina (24%)e carne de frango (33%) e vice-líder em etanol e algodão. De acordo com levantamento do Banco BTG. CNN. Brasil virou “celeiro do mundo” e já lidera exportações mundiais de sete alimentos, diz BTG. Disponível em: https://encurtador.com.br/cjltM. Acesso em 12.04.2024.
[2] Forbes. Por que o mundo vai continuar consumindo carnes. 05.06.2023. Disponível em: https://forbes.com.br/forbesagro/2023/06/por-que-o-mundo-vai-continuar-consumindo-carnes/. Acesso em 21.04.2024.
Leia mais em: https://forbes.com.br/forbesagro/2023/06/por-que-o-mundo-vai-continuar-consumindo-carnes/
[3] ONU News. Brasil se destaca como referência em bioenergia, aponta Unctad. 16.03.2023. Disponível em https://news.un.org/pt/story/2023/03/1811442. Acesso em 21.04.2024.
[4] Agrosaber. Agricultura tropical é invenção nossa!. 9.03.2020. Disponível em: https://agrosaber.com.br/agricultura-tropical-e-invencao-nossa/. Acesso em 12.04.2024.
[5] De acordo com levantamento do Banco BTG. CNN. Brasil virou “celeiro do mundo” e já lidera exportações mundiais de sete alimentos, diz BTG, op cit…
[6] MAPA. Exportações do agronegócio brasileiro batem recorde no primeiro trimestre de 2024 e atingem US$ 37,44 bilhões. Disponível em: https://encurtador.com.br/pqFJX. Acesso em 12.04.2024.
[7] De acordo com levantamento do Banco BTG. CNN. Brasil virou “celeiro do mundo” e já lidera exportações mundiais de sete alimentos, diz BTG, op cit…
[8] Algumas regras devem ser cumpridas para que as pessoas físicas possam usufruir desse benefício, como (i) cotas admitidas à negociação exclusivamente em bolsas de valores ou no mercado de balcão organizado, (ii) número mínimo de 100 cotistas, e (iii) enquadramento da carteira em até 180 dias, prazo contado a partir da data da primeira integralização de cotas. Ademais, a isenção não se aplica à: (a) Cotista pessoa física titular de cotas que representem 10% ou mais da totalidade das cotas emitidas pelo Fiagro, ou, ainda, cujas cotas lhe deem direito ao recebimento de rendimento superior a 10% do total de rendimentos auferidos pelo fundo em questão, (ii) cotista incorporador, construtor ou sócio de empreendimento imobiliário que integre a carteira do Fiagro, isoladamente ou em conjunto com pessoas a ele ligadas2, desde que tal cotista ou conjunto de cotistas seja titular de cotas que representem 30% ou mais da totalidade das cotas emitidas pelo fundo em questão, ou que tenham direito a receber rendimento superior a 30% do total de rendimentos auferidos pelo fundo.
[9] Poderão investir também em Certificados de Recebíveis do Agronegócio (CRA) e Letras de Crédito do Agronegócio (LCA).
[10] CVM. Edital de Consulta Pública SDM nº 03/23, 31.10.2023. Disponível em: https://conteudo.cvm.gov.br/audiencias_publicas/ap_sdm/2023/sdm0323.html. Acesso em: 21.04.2024, p. 2.
[11] CVM. Boletim CVM Agronegócio: Dashboard interativo (dezembro/23). Atualizado em 01.04.2024. Disponível em: https://www.gov.br/cvm/pt-br/centrais-de-conteudo/publicacoes/boletins/boletim-cvm-agronegocio/boletim-agro.xlsx/view. Acesso em 21.04.2024.
[12] Seguindo padrões internacionais, o agronegócio foi retirado do referido projeto de lei que propõe instituir o mercado regulado de carbono no Brasil, devido em especial à dificuldade na medição das emissões de gases de efeito estufa no setor.
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