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Americanas expõe desgraça dos sistemas de governança
Caso reforça enredos nefastos que resultam da agressividade na maximização dos lucros e na remuneração de executivos
Americanas, Americanas expõe desgraça dos sistemas de governança, Capital Aberto
A remuneração na Americanas sempre foi um indicador que deixou os analistas ESG em alerta | Imagem: Freepik

Ainda que 2023 mal tenha começado, provavelmente entrará para a história como o ano de um dos maiores imbróglios corporativos que o Brasil já viu. No centro do episódio, está uma das varejistas mais antigas e tradicionais do País. Pelo menos assim era conhecida a Americanas até pouco mais de uma semana atrás, quando vieram à tona as inconsistências contábeis de extraordinários 20 bilhões de reais. Era apenas a ponta do iceberg. No pedido de recuperação judicial (RJ) feito pela empresa na última quinta-feira (19), e aceito pela Justiça do Rio de Janeiro no mesmo dia, a varejista alegou números ainda mais altos: 43 bilhões de reais em dívidas com mais de 16 mil credores. Assim, passou a ser considerada a quarta maior recuperação judicial do Brasil, depois de Odebrecht, Oi e Samarco. 


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Alguns agentes do mercado afirmam que já percebiam algo de estranho nas movimentações da varejista. Um gestor de recursos, que preferiu não se identificar, lembrou a saída de Luiz Saraiva da diretoria financeira da Americanas em dezembro de 2017. “Na época surgiu um boato de que ele viu alguma coisa nos números da empresa que não quis assinar. O tempo foi passando e, como não surgiu nada que confirmasse isso de bate pronto, o mercado foi esquecendo”, disse o executivo.  

“Fosse eu a CVM [Comissão de Valores Mobiliários], a primeira coisa a fazer seria chamar o Saraiva para entender a saída dele e os números que ele viu”. O executivo, à época, deixou a companhia alegando problemas pessoais, mas a justificativa não convenceu boa parte do mercado. A CVM tem pelo menos 7 processos envolvendo a Americanas e vai apurar, inclusive, a atuação das agências de classificação de risco envolvendo ações da varejista.  

Bilhões fora do balanço 

A Americanas informou que o rombo de 20 bilhões foi resultado de “inconsistências em lançamentos contábeis redutores da conta fornecedores realizados em anos anteriores, incluindo o exercício de 2022“. Em resumo, tratou-se do seguinte: a transação ocorria para que a Americanas pudesse financiar os fornecedores (principalmente os pequenos). Bancos contratados adiantavam os recursos aos fornecedores em uma espécie de desconto de duplicata — uma transação chamada de risco sacado. Pelo que se sabe até agora, a Americanas não deixou de pagar o que devia aos bancos nessas transações. O problema aconteceu no registro contábil dessa triangulação — ou, melhor, na ausência dele. 

Conforme relatado pelo CEO Sérgio Rial em conferência promovida pelo BTG Pactual, que renunciou logo que soube do buraco, apenas nove dias depois de assumir o cargo, houve duas falhas principais na contabilidade: 1) A Americanas não computava o valor que ficava devendo aos bancos nessa transação em seu passivo financeiro; e 2) em vez disso, computava a dívida na conta de fornecedores e, para piorar, em valores muito abaixo do real. Para completar, a companhia subtraía do registrado em “fornecedores” os juros, sob a lógica de que eram eles, no fim das contas, que arcavam com essa despesa. O ponto é que, repassada ou não ao fornecedor, a despesa com juros devia constar da demonstração de resultados da Americanas. E, como toda despesa dessa natureza, ser subtraída dos lucros finais da companhia. Sem esses juros computados, os lucros apareciam inflados para investidores e credores. 

Segundo Rial, as “inconsistências” já existiam havia sete ou nove anos. O BTG, que é credor da companhia em outras transações e se viu lesado por não ter sido informado sobre o real tamanho do passivo, tratou o caso como fraude. E conseguiu, com o aval da Justiça, bloquear 1,2 bilhão de reais da varejista. Dessa forma, rompeu com uma liminar que protegia a Americanas dos credores por um período de 30 dias. Por isso, a empresa se apressou em entrar com um pedido de recuperação judicial.  

“Não viu quem não quis” 

Nas redes sociais, Fabio Alperowitch, sócio-fundador da Fama Investimentos, disse que a gestora zerou a posição em Americanas por falta de transparência nas demonstrações financeiras e dificuldade de acesso à companhia. “Todas as evidências de conduta inadequada estavam lá. Não viu quem não quis”, escreveu. Alperowitch critica o fato de a varejista se descrever como “obcecada por resultados” e avalia a empresa como produto de uma fase mais hostil do capitalismo, focada em gerar valor exclusivamente ao acionista. 

O gestor foi um dos muitos agentes do mercado que ajudaram a viralizar trecho de uma publicação descrita pela própria editora como “livro de cabeceira de Marcel Telles”: Dobre seus lucros, de Bob Fifer, consultor de negócios nos Estados Unidos. Publicado na década de 1990, o livro recomenda empresas a atrasar pagamentos a fornecedores para favorecer seus balanços.  

“Passe a pagar suas contas em 45 dias, depois 60 dias, depois em 3 ou 6 meses, no caso dos fornecedores mais tolerantes. Nunca pague uma conta até que o fornecedor pergunte por ela pelo menos duas vezes. Certos fornecedores chegam a levar até dois anos para reclamar o pagamento de uma conta”, diz o trecho, com milhares de compartilhamentos na internet na última semana. 

Em benefício de quem? 

Marcel Telles é um dos acionistas de referência da Americanas, junto com Jorge Paulo Lemann e Carlos Alberto Sicupira. O trio de bilionários, sócios da 3G, embolsou 100,3 milhões de reais em dividendos da varejista em 2022, até o terceiro trimestre, segundo levantamento da TradeMap. Os controladores estavam dispostos a injetar 6 bilhões de reais na Americanas para dar fôlego à negociação com os credores. Mas o valor foi considerado insuficiente. Os bancos calculavam a necessidade de aporte de pelo menos 15 bilhões de reais pelos acionistas de referência.  

A remuneração na Americanas, aliás, sempre foi um indicador que deixou os analistas ESG em alerta. Em 2021, segundo pesquisa realizada por Renato Chaves, especialista em governança corporativa, junto com a Fundação Getulio Vargas (FGV), o principal executivo ganhava 431 vezes mais que a média da empresa. A disparidade salarial é vista como um grave problema de governança, pois pode estimular que o alto comando de uma empresa atue em benefício próprio.  

Controles precários 

A novela Americanas gera uma crise de reputação que vai muito além da companhia. Coloca em xeque índices e selos que davam chancela de excelência em governança à companhia, como o Novo Mercado, da B3. Qualquer companhia que faça parte desse segmento precisa implementar rigorosos mecanismos de controle de auditoria interna e compliance. Mais grave ainda é pensar na auditoria, agente central no sistema de controles e fiscalização das demonstrações financeiras. A PwC auditava as contas da Americanas e, até 2021, não havia encontrado nenhum problema.  

O caso mostra que ter uma estrutura de governança supostamente adequada não implica, necessariamente, obter os efeitos de contrapeso e de controles esperados. A Americanas não foi a primeira empresa do Novo Mercado a protagonizar um escândalo contábil. E, pelo o que narra a história dos mercados de capitais (e não só no Brasil), dificilmente será a última.  

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