Os conselhos de administração estão prontos para opinar sobre M&As?
Como os boards podem fazer uma análise diligente e evitar o risco de serem responsabilizados
Fusões e aquisições

Fusões e aquisições | Ilustração: Rodrigo Auada

Não se questiona que está entre as principais atribuições do conselho de administração a elaboração dos planos de longo prazo da empresa. Dada sua relevância para a perenidade da organização, o tratamento estratégico das fusões e aquisições (M&A) naturalmente integra a agenda dos boards. Ocorre que nem sempre se trata de uma tarefa fácil, já que essas transações podem envolver conhecimentos específicos e experiências fora da realidade dos conselheiros individualmente. Ganham força, nesse contexto, as discussões a respeito dos caminhos que os integrantes do colegiado têm para se preparar para a eventualidade de um M&A. Entram na pauta questões como as maneiras de se evitar responsabilização futura por eventuais problemas em operações desse tipo e a abordagem adequada para uma voz dissonante dentro do conselho.

Esses pontos foram o mote do Grupo de Discussão “Fusões e aquisições na mira dos conselhos”, promovido pela CAPITAL ABERTO com o patrocínio do Machado Meyer Advogados. Participaram do debate Mauro Cesar Leschziner, sócio do escritório; Guilherme de Morais Vicente, analista na Onyx Equity Management; Gustavo Moraes Stolagli, coordenador da comissão jurídica do Instituto Brasileiro de Governança Corporativa (IBGC); e Levindo Coelho Santos, sócio da G5 Partners. A seguir, os principais trechos do encontro.

CAPITAL ABERTO: Para começar a discussão, quais são os direitos e os deveres de um conselheiro, segundo a legislação brasileira?

Mauro Leschziner: O conselheiro tem os deveres de diligência e de lealdade, que determina que atue de boa-fé no melhor interesse da companhia. Ele tem a obrigação de se abster ou de não entrar em situações de conflito de interesses com a empresa. Tem ainda o dever de informar, o que significa manter o mercado informado acerca de fatos que sejam relevantes sobre a empresa ou apresentar informações que possam configurar situações de interesses conflitantes. O conselheiro que age de boa-fé, de acordo com o interesse da companhia e com a lei, não vai ser responsabilizado. Isso passa a não ser verdade quando age com culpa ou dolo, mesmo dentro do limite das suas atribuições.

CAPITAL ABERTO: Como o Judiciário analisa questões relacionadas a decisões equivocadas de um conselho de administração?

Leschziner: O “business judgment rule”, princípio americano que trouxemos para o Brasil, diz que o administrador não vai ter a sua atuação revisada pelo Judiciário se agir de boa-fé e com o cuidado que uma pessoa comum e prudente teria em circunstâncias similares ou se essa ação foi entendida de maneira razoável no melhor interesse da companhia. Sendo esses critérios observados, o administrador não será responsabilizado e não terá a sua decisão revisitada pelo Judiciário — salvo em casos de fraude, ilegalidade e se agir em benefício próprio.

Gustavo Stolagli: O exemplo da jurisprudência americana é extremamente importante. Em resumo, ela propõe que o foco do julgador esteja no processo decisório. A ideia por trás do conceito é simples: uma análise do administrador pelo resultado diminui o incentivo para que ele tome risco. Em contrapartida, a avaliação do processo decisório requer basicamente resposta para três questões: a decisão foi informada? (ou seja, toda a informação necessária para a tomada de decisão estava disponível?), foi refletida? (além de a informação estar disponível, alguém se debruçou sobre ela?) e foi desinteressada? (o conselheiro tomou a melhor decisão para companhia em vez de privilegiar interesses próprios ou de algum grupo que o levou ao conselho?). Outro ponto: é preciso levar em consideração o aspecto coletivo do conselho; afinal, trata-se de um órgão de deliberação colegiada. Os conselheiros não têm competências ou poderes individuais, a não ser os de fiscalização, de pedir ou de cobrar informação. Mas a decisão é sempre do órgão. Essa análise começa na reflexão da conduta individual, mas termina no comportamento coletivo.

CAPITAL ABERTO: O que deve ser feito caso o conselheiro não se sinta à vontade para tomar uma decisão relativa a uma transação de M&A?

Levindo Santos: Nossa experiência na assessoria da avaliação de operações de M&A por conselhos mostra ser bem importante a presença de uma fairness opinion, embora ela seja apenas uma entre tantas ferramentas que podem ser usadas por um conselho para tomar uma decisão. É interessante que um conselho busque a opinião de especialistas sobre temas complexos ou que fogem ao conhecimento específico dos conselheiros. Afinal, não se espera que uma operação de fusão ou aquisição faça parte da rotina corporativa, salvo nos casos de empresas de investimentos voltadas para esse fim.

Leschziner: Além disso, o conselheiro não pode ser protocolar. Essa talvez seja a grande regra do M&A e de qualquer outra decisão do conselho. É preciso ir atrás de um assessor que ajude no entendimento dos detalhes da operação e no esclarecimento de dúvidas. Se houver uma discussão lá na frente, o conselho precisa ter feito aquilo que se espera dele: deve ter lido e digerido informações, tirado dúvidas, promovido debates internos, para depois votar. Tendo feito isso, obviamente excluindo-se os elementos de conflitos de interesses, o conselho está protegido.
É muito comum lá fora que o conselho, dependendo da operação, tenha o seu próprio assessor legal e financeiro, para ter certeza de que está ouvindo uma opinião independente.

CAPITAL ABERTO: Quais são os cuidados que o conselho deve ter em um processo de fusão e de aquisição, especificamente?

Stolagli: O conselheiro não precisa ser um especialista em M&A, mas precisa entender como o processo funciona — e, a grosso modo, as operações têm funcionamento parecido. Todos os processos começam com a companhia obtendo um compromisso de confidencialidade do lado que vai receber informação. No primeiro passo de qualquer M&A há trocas de informações sensíveis, ainda em caráter preliminar. O compromisso de confidencialidade protege os interesses de quem está cedendo informação, mas não deve criar restrições muito relevantes, capazes de impactar as operações. Hoje a tendência é de uma análise muito superficial da diligência. No entanto, ela deve no futuro ficar muito mais complexa.

Leschziner: Temos que entender que perder dinheiro numa transação não é o problema. O problema é o efeito reputacional de uma transação mal feita. Às vezes, uma operação pequena no dia seguinte chega com destaque à imprensa por ter uma questão, por exemplo, de corrupção ou de trabalho escravo. Ou seja, mesmo pequena, uma transação pode virar um problema enorme em segundos. É óbvio que, num M&A transformacional de maiores proporções, haverá um time maior envolvido, mas isso não exime o conselho de ter cuidado — se uma questão chegou ao board deve ser olhada; o dever de cuidado é inestimável.


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CAPITAL ABERTO: Guilherme, você é investidor e já participou de diversos conselhos. O que o conselheiro deve fazer para evitar problemas em uma decisão que envolva um M&A?

Guilherme Vicente: Criei alguns modelos mentais para me proteger e tentar fazer as coisas funcionarem. Primeiro: não aceitar a imposição de prazos. Não se deve, em qualquer área da vida, tomar decisões impulsivas. A segunda coisa: criar comitês menores. Geralmente, os conselhos no Brasil têm um número muito exagerado de pessoas. É muito difícil uma discussão com nove ou dez pessoas, mais três assessores, dois advogados… Então, o melhor é reduzir o grupo a três pessoas relevantes para o assunto. Assim a discussão flui muito melhor e mais rápido, além de ficar reduzido o risco de vazamento de informação. Terceiro: as pessoas precisam enxergar o conselho como um trabalho e não como uma honraria. O conselheiro precisa se envolver profundamente, ir a campo, gastar tempo com o assunto. Quarto ponto: se o conselheiro não está participando diretamente dos comitês no dia a dia, sua postura padrão deve ser de ceticismo. Na dúvida, deve ser o chato de plantão — a probabilidade de fazer um bom serviço sendo mais cético é maior. Por último, reforço a importância do exercício do bom senso, função primordial de todo conselheiro.

CAPITAL ABERTO: Em que medida são importantes as opiniões divergentes num conselho quando se trata de M&A?

Vicente: Somos humanos, todos sujeitos às interferências não racionais amplamente estudadas pelo campo das finanças comportamentais. Importante lembrar que estar ciente de um viés não libera uma pessoa de atuar segundo esse viés. Por isso, a melhor recomendação é a diversidade. Se um indivíduo é falho em um ponto, um grupo formado por indivíduos semelhantes a ele seria igualmente falho. Em contrapartida, as diferenças — de backgrounds, de formação, de pontos de vista — melhoram as discussões.

Stolagli: Pessoas com backgrounds diferentes vão sempre olhar para as mesmas coisas com perspectivas diversas. Ao identificar problemas, um grupo de mulheres vai escolher pontos diferentes dos selecionados por um grupo masculino, por exemplo. Para se contornar os vieses inconscientes num conselho é muito melhor investir na diversidade dos integrantes do que insistir em mudar as pessoas individualmente.

CAPITAL ABERTO: Como deve proceder um conselheiro quando divergir da maioria do colegiado?

Vicente: Deve fazer o trabalho como acha que deve ser feito e documentar tudo o que tiver a dizer. O conselheiro precisa fazer constar em ata sua atuação e, para isso, recomendo que “grude” no secretário do conselho, o responsável pela elaboração do documento. O conselheiro precisa ter a certeza de que o que fez está devidamente registrado.

Leschziner: Alguns clientes relatam que na primeira vez em que há um voto em separado ou um voto dissidente ocorre um certo incômodo geral. Mas se um conselheiro tem um voto contrário ao da maioria não está sendo antipático, rude ou grosseiro: apenas exerce um direito. Ele só deve atentar para o fato de que precisa documentar a divergência, para no futuro ter prova de sua posição caso haja algum problema.

Stolagli: Só votar contra não exime o conselheiro de responsabilidade. Da mesma forma como é obrigado a fundamentar um voto a favor, ele tem a obrigação de fundamentar um voto contra. Em relação à documentação, minha sugestão é que cada conselheiro tenha o seu arquivo pessoal. Ele não pode simplesmente confiar que a companhia está criando aquele arquivo para a sua defesa se for preciso. Além disso, deve buscar aconselhamento, para o caso de precisar discutir qualquer tema com que não se sinta confortável.

CAPITAL ABERTO: Em uma fusão de empresas com culturas divergentes, o que o conselho deve avaliar antes de aprovar a operação?

Santos: Do ponto de vista prático, essa é uma variável importante para o processo decisório. Quando um conselho recebe uma proposta de aquisição para avaliar, deve saber principalmente como acontecerá a transição e qual a abordagem sugerida pela administração. Não se pode esquecer que uma operação desse tipo envolve gastos — há sistemas a serem integrados e é necessária uma racionalização da estrutura operacional. Vale lembrar também que existem casos em que se decide não integrar, por exemplo quando a empresa compra uma forma de atuação completamente diferente da sua. A cada dia mais empresas no mundo escolhem esse caminho.

Leschziner: O fracasso de muitas operações de M&A tem a ver com questões culturais. O resultado financeiro pode até ser bom no papel, mas pode faltar integração nos times. Daí a importância de se inserir essa questão no trabalho de auditoria. Há empresas de recursos humanos que verificam se existe uma cultura comum, se há possibilidade de integração ou sobreposição de cargos. Para uma companhia que faz um M&A pode ser péssimo reduzir brutalmente os cargos logo depois de concluída a operação — isso cria um clima ruim para todos. É preciso fazer uma diligência de recursos humanos, porque no fim do dia são as pessoas que carregarão a empresa no futuro.


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