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O (inexistente) requisito de propriedade contemporânea no art. 246
Entendimento de que é preciso ser acionista no momento em que o ato ilícito do controlador é cometido não tem base legal, contraria a lógica da Lei das S.As. e é danoso ao direito societário e ao desenvolvimento do mercado de capitais
artigo 246 da Lei das S.As, O (inexistente) requisito de propriedade contemporânea no art. 246, Capital Aberto
Recentemente, passou-se a discutir se o acionista que ajuíza a ação deveria ser sócio no momento em que ocorreu o ato ilícito praticado pelo controlador | Imagem: Freepik

É quase um lugar-comum afirmar que economias e mercados de capitais maduros dependem da existência de mecanismos efetivos de cumprimento (enforcement) das regras legais, nelas incluídas as regras societárias. Essa afirmativa é feita com frequência por economistas e juristas que se dedicaram a estudar a importância do Direito e das instituições para a criação de um ambiente de negócios confiável e seguro. A conclusão é intuitiva: nenhum investidor direcionará sua poupança para comprar ações ou outros valores mobiliários se as companhias emissoras, seus acionistas controladores ou administradores puderem praticar atos ilícitos e sair impunes. 


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É nesse contexto que se insere a ação de responsabilidade contra o acionista controlador, prevista pelo art. 246 da Lei das S.As. O dispositivo prevê a possibilidade de o acionista, agindo em nome próprio, ajuizar uma ação contra o controlador, objetivando o pagamento de uma indenização em favor da própria companhia, em razão de danos que ela tenha sofrido por atos de abuso de poder de controle.  

Nas palavras dos próprios autores da Lei das S.As., os professores Alfredo Lamy Filho e José Luiz Bulhões Pedreira, as regras que preveem a responsabilização do acionista controlador são “a pedra angular do conjunto de normas que regem as sociedades por ações”. Essa afirmativa, feita na Exposição de Motivos da Lei das S.As, é sintomática da importância absolutamente central que a ação de responsabilização contra o acionista controlador apresenta no sistema societário brasileiro. 

Ordem legal 

Recentemente, passou-se a discutir se o acionista que ajuíza essa ação deveria ser acionista no momento em que ocorreu o ato ilícito praticado pelo controlador. Trata-se do chamado requisito da propriedade contemporânea. Me parece claramente que a resposta é negativa, por alguns motivos. 

O primeiro é de ordem legal. O art. 246 estabelece alguns requisitos ao ajuizamento da ação de responsabilidade contra o controlador, como um percentual mínimo de titularidade do capital social ou a prestação de caução. Ao exigir tais requisitos a lei teve a clara e correta intenção de limitar abusos e separar o joio do trigo, ao filtrar demandas frívolas e temerárias.  

Nenhum desses requisitos, entretanto, é o da propriedade contemporânea. Leia-se e releia-se o art. 246 da Lei das S.As. e não se verá qualquer exigência de que o autor da ação seja titular de ações no momento em que é praticado o ato ilícito. A lei exige apenas que ele seja acionista. E só. De maneira ainda mais explícita, o § 1º, “b” do artigo 246 da Lei das S.As utiliza a expressa “qualquer acionista”, o que reforça ainda mais a conclusão aqui defendida.  

A bem da verdade, o mero fato de que a lei não exige a propriedade contemporânea bastaria para rechaçar o requisito, sobretudo porque o direito de ação é uma garantia fundamental, com previsão constitucional (Constituição Federal, art. 5º, XXXV), e restrições ao seu exercício devem ser interpretadas de maneira estrita. Se a Lei das S.As. não estabelece esse requisito, portanto, tampouco poderia ser ele fruto de construções doutrinárias ou interpretações que procurem se fundamentar nas entrelinhas do texto legal. 

O segundo motivo também é de ordem legal. As ações conferem ao seu titular direitos, que se vinculam às ações. Por isso, quando alguém adquire ações e ingressa na companhia, tal pessoa assume todos os direitos decorrentes das ações.  

O terceiro motivo consiste na circunstância de que a ação do artigo 246 da lei das S.As tutela o patrimônio da companhia, e não do acionista, o que torna absolutamente irrelevante se o autor da ação era ou não acionista no momento em que ocorreu o dano, pois o que se discutirá na demanda não diz respeito à esfera jurídica do acionista.  

Patrimônio social 

A intenção da lei com a ação de responsabilidade contra o acionista controlador é criar uma teia de requisitos e incentivos para que o acionista tome a iniciativa de, correndo risco em nome próprio (pois ele é o autor da ação e arca com os custos processuais, inclusive os chamados honorários sucumbenciais), defender o patrimônio da companhia. Daí porque essas ações são chamadas de “ações sociais”: elas protegem o patrimônio social, isto é, a esfera jurídica da própria companhia. Por isso, pouco importa se o acionista era ou não acionista no momento em que praticado o ato ilícito, pois o que está em jogo em uma ação desse tipo não é o dano ao patrimônio do acionista, mas sim ao patrimônio da companhia. 

É por todos esses motivos que já tive a oportunidade de escrever, em trabalho realizado junto à OCDE em 2020, que “no direito brasileiro não existe o requisito de propriedade contemporânea (…) das ações da companhia lesada no momento em que o ato ilícito foi cometido” (OCDE, “Private Enforcement of Shareholder Rights: a comparison of selected jurisdictions and policy alternatives for Brazil”, 2020, p. 123).1 Nesse mesmo estudo o Prof. Martin Gelter entendeu, após analisar as legislações de inúmeros países, ser questionável exigir tal requisito,.2 

A ação de responsabilidade contra o acionista controlador tem importância absolutamente central no regime das sociedades anônimas e na construção do mercado de capitais brasileiro, como mostra a própria Exposição de Motivos da Lei das S.As. E, há muito tempo, estudiosos apontam a absoluta falta de responsabilização de acionistas controladores e a existência de inúmeros empecilhos à aplicação dessa ação no Brasil, como já tive a oportunidade de expor.  

O entendimento do (inexistente) requisito da propriedade contemporânea, além de não ter base legal e contrariar toda a lógica que os autores da Lei das S.As. pensaram para a ação do art. 246, é extremamente danoso ao direito societário e ao mercado de capitais brasileiro. Se prevalecer, será mais um motivo para crer que no Brasil a máxima popular de que “o crime compensa” é verdadeira. 

Guilherme Setoguti é professor do Insper, doutor e mestre pela Faculdade de Direito da USP. Consultor da OCDE no projeto “Private Enforcement of Shareholder Rights: a comparison of selected jurisdictions and policy alternatives for Brazil”. 


1 “There is no requirement under Brazilian law regarding contemporaneous and continuous ownership of stock of the harmed company at the time when the wrongdoing was committed or when the court decision is rendered” (https://www.oecd.org/corporate/ca/Shareholder-Rights-Brazil.pdf, p. 123). 

2 https://www.oecd.org/corporate/ca/Shareholder-Rights-Brazil.pdf, p. 44. 

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