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As poison pills e a sua legalidade
Como assegurar que esses dispositivos não representem quebra de deveres fiduciários de acionistas e administradores
Eduardo Salomão Neto é sócio de Levy & Salomão Advogados, bacharel, doutor e livre docente da Universidade de São Paulo
Eduardo Salomão Neto é sócio de Levy & Salomão Advogados, bacharel, doutor e livre docente da Universidade de São Paulo | Ilustração: Julia Padula

“Como no tempo do outono se abate terrível procela 
na terra escura, ao mandar Zeus potente infinito aguaceiro, 
quando irritado se encontra com os homens e quer castigá-los, 
por ver que torcem no foro a justiça e sentenças proferem 
desrespeitando o direito sem medo dos deuses eternos” 
(Homero, A Ilíada, tradução de Carlos Alberto Nunes, São Paulo, Hedra, 2011, canto XVI, versos 384 a 388, p. 344 e 345)

 

Como vários outros dispositivos do direito societário, as poison pills nasceram nos Estados Unidos. Mais especificamente na década de 1980, marcada por ataques hostis a sociedades então controladas por grupos minoritários em capital.   

Muitos desses ataques ocorriam sem aporte significativo de recursos, através de técnicas de alavancagem. Essa possibilidade ampliou consideravelmente a atividade de ofertas hostis na época, bem como o trabalho de advogados criminalistas dedicados à defesa dos mais proeminentes promotores desses negócios.  

Um exemplo de transação desse tipo pode ser encontrado no interessante e realista filme Barbarians at the Gate, de 1993, inspirado em livro do mesmo nome, sobre a batalha de ofertas públicas pela aquisição da RJR Nabisco no final da década de 80.  E o espírito desse período pode ser resumido na frase do presidente do board da empresa-alvo: “Ninguém pode negar que há muita ganância em curso nos dias que correm.  Trata-se, acho, apenas de decidir quanto dessa ganância é justa.” 

O nascimento das poison pills 

Como reação a esse cenário, a criatividade jurídica dos advogados corporativos deu origem às chamadas poison pills.  Nos Estados Unidos, essas “pílulas de veneno” ganharam a forma de direitos equivalentes às nossas debêntures, eventualmente conversíveis, ou de bônus de subscrição.  

Pois no Brasil, com a ampliação do acesso ao mercado de capitais após a virada do milênio, as poison pills também entraram em cena. Por aqui, entretanto, houve certa deficiência de cálculo econômico e aconselhamento jurídico em sua criação. Isso permitiu que, em várias aberturas de capital, as pílulas de veneno estivessem presentes em ofertas nas quais o controlador estava vendendo participação minoritária. Assim, protegiam o empresário de risco inexistente de perda do controle, tendo como principal efeito a redução do valor das ações no mercado. Ou seja, em vez de ajudar, as pílulas só prejudicavam.  

E mais do que isso, a versão brasileira das poison pills nunca, ou raramente, adotou a forma original de emissão de bônus de subscrição ou debêntures. Optou-se pela inserção de cláusula estatutária prevendo que, a partir de certo patamar de participação, o adquirente seria obrigado a fazer uma oferta pública a todos os acionistas, pagando um sobrepreço. Em algumas situações, a partir de certo gatilho, o controlador poderia ainda ser privado de seu direito de voto — situação gravosa o suficiente para afastar qualquer ofertante hostil. 

Pílulas ilegais? 

Essas questões contaram até agora com o silêncio ou com decisões pouco firmes por parte de reguladores e autorreguladores no Brasil. Na seara regulatória, a jurisprudência administrativa da CVM não tem impedido o voto favorável de acionistas majoritários à introdução de cláusulas estatutárias exigindo oferta pública, em decisões escassas e inseguras quanto a seus fundamentos. Já a autorregulação do Novo Mercado permite que o voto seja limitado a qualquer percentual do capital total, a partir do confortável patamar de 5%, tornando ociosas disputas por votos a partir do patamar estabelecido.   

Diante dessa realidade, carrega peso aqui a jurisprudência americana, que em casos como Moran v. Household International (1985) e Unocal v. Mesa Petroleum Co., decisões da Suprema Corte de Delaware em 1985, firmaram o entendimento de que as poison pills seriam ilegais sempre que violassem teste de razoabilidade objetivo: deveriam reagir a ameaça concreta à estabilidade da companhia, de forma proporcional.  Esses princípios são os mesmos vigentes no Brasil, dada a filiação da Lei das S.As. à tradição anglo-saxônica.     

Assim, resistiriam à análise acurada nos tribunais brasileiros, apenas pílulas que comprovadamente fossem um remédio contra ofertas hostis capazes de desestruturar uma companhia. Por exemplo, ofertas financeiramente desinteressantes, ou feitas por concorrente para eliminar a competição ou de autoria de controlador inidôneo ou financeiramente incapacitado para fazer os investimentos necessários aos negócios. Na falta dessas provas, não deveriam as pílulas contar com beneplácito judicial. 

E aqui reside o problema das escolhas estatutárias brasileiras: a cláusula típica impondo o ônus de realização de oferta pública, ou restringindo direitos de voto, é de aplicação incondicional. Ou seja, é válida tanto para ofertas hostis que sejam vantajosas, como para aquelas que, pelas razões elencadas acima, deveriam ser recusadas. Dessa forma, a simples introdução das poison pills para uso potencial ofende direitos dos minoritários, representando quebra de deveres fiduciários dos acionistas que nelas votaram, e de administradores que as ponham em ação.  

Possíveis caminhos 

Mas como corrigir o problema? O primeiro passo seria uma reflexão sobre a necessidade das poison pills — e depois a retirada, dos estatutos, das muitas pílulas que não passam no teste de utilidade no controle majoritário: desvalorizam as ações negociadas sem prevenir risco inexistente de oferta hostil. Sobrariam então as demais, para as quais se podem recomendar os seguintes ajustes: 

1) cláusula permitindo ao conselho de administração cancelá-las, poder esse que poderia ser vinculado a características objetivas da oferta hostil, tais como capacitação dos controladores, idoneidade e, conjuntamente, características econômicas da oferta – feito isso, o uso das pílulas poderia ser aquilatado com base no interesse da companhia e na generalidade dos acionistas na oferta; ou 

2) pílulas sob forma de bônus de subscrição e debêntures poderiam passar a ser adotadas pelas companhias, sendo (a) criadas pelo conselho de administração somente após a ocorrência de oferta negativa para a empresa e (b) dotadas da cláusula de cancelamento descrita no item 1.   

Essas são medidas simples, mas efetivas, para afastar os aguaceiros com que Homero ameaça aqueles “que torcem no foro a justiça e sentenças proferem desrespeitando o direito sem medo dos deuses eternos”. 


Eduardo Salomão Neto ([email protected]) é sócio de Levy & Salomão Advogados, bacharel, doutor e livre docente da Universidade de São Paulo 

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