A investida da Marfrig na BRF  
Episódio evidencia fragilidade da Lei da S.As e levanta dúvidas sobre as intenções do fundador do frigorífico
A duvidosa investida da Marfrig na BRF

Imagem: freepik

As expressivas compras de ações da BRF pela Marfrig desde o último dia 21 de maio, para além da surpresa do mercado com a movimentação atípica, reavivam a vulnerabilidade dos investidores de companhias com capital pulverizado: eles correm o risco de ficar à mercê de um “controlador” que se estabelece por meio da maciça aquisição de papéis na bolsa de valores, movimento que tende a se repetir mais vezes no futuro com a ampliação da quantidade de empresas com capital difuso no mercado brasileiro.  

O avanço da Marfrig  sobre a BRF — certamente significativo para a dinâmica do setor de processamento de proteína animal — foi tornado público depois do fechamento do pregão de 21 de maio, quando o frigorífico divulgou fato relevante informando ter adquirido na bolsa de valores o equivalente a 24,23% das ações da BRF. Comandada por Marcos Molina, a compradora voraz logo anunciou, em 3 de junho, o salto da sua participação para 31,66%. O alcance desse exato percentual não foi arbitrário. Se tivesse se tornado titular de 33,33% das ações, a Marfrig teria de engolir a pílula de veneno prevista no estatuto social da BRF. De acordo com o dispositivo, ela estaria obrigada a lançar uma oferta pública de aquisição (OPA) dirigida a todos os demais acionistas. 

Com as compras de maio e junho, a participação da Marfrig na BRF ultrapassa de longe as fatias dos outros quatro maiores acionistas: Petros (7,15%), J.P.Morgan (7,01%), Caixa (6,2%) e Kapitalo (5,02%). A nova configuração deixa clara a posição de controladora minoritária conquistada pelo frigorífico, com poder suficiente para eleger conselheiros e influenciar os rumos do negócio. Porém, como nem a Lei das S.As. nem o regulamento da B3 disciplinam aquisições de poder de controle desse tipo, chamadas no direito societário de aquisições originárias, seja por meio de compras privadas ou de compras sucessivas na bolsa de valores, Molina conseguiu adquirir esse poder sem precisar pagar um sobrepreço, abrir a oferta aos demais acionistas ou dar-lhes, por exemplo, o direito de se retirar da companhia — obrigações que seguramente estariam postas, segundo a Lei das S.As., em outros eventos de impacto sobre a configuração das companhias.  

Brecha legal 

A marca dos 30% do capital vem sendo considerada, em várias discussões societárias e de governança, como o percentual recomendado para a realização de uma OPA obrigatória por participação relevante. A proposta de OPA a partir desse gatilho, inclusive, foi amplamente debatida no âmbito das duas últimas reformas do Novo Mercado da B3 (a ideia, entretanto, foi rejeitada pelas empresas ambas as vezes e não vingou). 

“Nem ao menos se pode classificar o caso de tentativa de aquisição hostil, porque não houve uma OPA”, analisa Erik Oioli, sócio-diretor e fundador do VBSO Advogados, que define a ação da Marfrig como uma escalada acionária na bolsa. Em sua visão, a companhia foi muito pouco transparente ao optar por não fazer uma OPA voluntária para aquisição de controle, além de pouco equitativa ao tirar dos outros acionistas o direito de abrirem mão, ou não, de suas posições na BRF. A OPA voluntária está prevista no artigo 257 da Lei 6404/76 e, por observar procedimentos estabelecidos pela CVM na Instrução 361 e ser negociada com os administradores, representa um processo mais visível e justo para todos os acionistas. “Trata-se de uma brecha na Lei das S.As., que não contempla situações que envolvem aquisição originária de controle por meio de um mecanismo que não seja uma oferta pública”, resume Oioli. 

A falta de transparência da Marfrig na divulgação da operação está sendo investigada pela Comissão de Valores Mobiliários (CVM). A autarquia busca esclarecer qual foi a data de aquisição da primeira parcela de participação na BRF — a companhia não informou se as compras de ações e opções foram todas feitas em 21 de maio (data do primeiro comunicado) ou em transações anteriores. A informação pode conter um detalhe importante. Conforme a Instrução 358 da CVM, em seu artigo 12, a compra ou a venda de participação, direta ou indireta, em uma companhia precisa ser divulgada imediatamente — ou seja, no mesmo dia — cada vez que ultrapassar os patamares de 5%, 10%, 15% do capital, e assim sucessivamente. 

Fusão à vista? 

À parte as questões legais e regulatórias, a investida da Marfrig sobre a BRF foi vista pelo mercado como um sinal do apetite de Molina para uma fusão. Juntas, as empresas têm receita líquida de 27,8 bilhões de reais e Ebitda de 2,9 bilhões de reais. Suas operações são complementares — a Marfrig é forte no setor de bovinos, enquanto a BRF é voltada para frangos e suínos.  

Diante do burburinho sobre uma possível união, a Marfrig manifestou-se dizendo que a aquisição visa diversificar os investimentos da companhia. Assegurou que não pretende eleger membros para o conselho de administração ou exercer influência sobre as atividades operacionais da BRF. A declaração, entretanto, não convenceu o mercado. “Um gasto de bilhões de reais na compra de participação numa companhia não faz sentido se o objetivo não for influenciar os rumos do negócio. Além disso, esse não seria o perfil de Molina”, comenta Pedro Serra, gerente de research da Ativa Investimentos e ex-gerente de portfólio da Petros. A abordagem do fundador, ele destaca, é costumeiramente agressiva. Em sua avaliação, o objetivo final da Marfrig é “abocanhar” o restante da BRF e fundir-se a ela, expandindo os seus negócios tanto em oferta de produtos quanto em mercados.  

O fato de as empresas terem negócios complementares atenua inquietações de que o frigorífico possa querer ter assentos no board da BRF no futuro. Tanto que dentro da produtora de frango o clima não parece de ser preocupação.  Segundo Lauro Jardim, colunista do jornal O Globo responsável por revelar ao mercado a tacada da Marfrig, o conselho de administração da BRF distribuiu um comunicado em que saúda o ingresso da Marfrig no capital e cita uma carta enviada ao conselho pelas famílias Fontana e Furlan, controladoras da antiga Sadia e hoje acionistas da BRF. “Os líderes das famílias fundadoras enviaram hoje para o presidente do conselho uma declaração assinada em apoio à administração e vendo positivamente a entrada da Marfrig como acionista da companhia”, diz o comunicado. As boas-vindas, inclusive, podem sugerir que a empresa alvo esteja interessada numa união com o frigorifico de Molina, o que pode ser uma razão para seus administradores sugerirem a retirada da poison pill na assembleia ordinária de acionistas de 2022. 

Contra-ataque à espera 

Outra ponta da história está relacionada à questão concorrencial. A chegada incisiva da Marfrig à BRF pode representar um desconforto para a JBS, que atua tanto nos setores de bovinos como de frangos. Não por acaso, circularam recentemente no mercado rumores de que a empresa dos irmãos Batista estaria se juntando ao BTG Pactual para contra-atacar e comprar o controle da BRF. 

Sócia do L.O. Baptista e especialista em temas concorrenciais, Patrícia Agra afirma ser “quase impossível” que o Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade) não interceda, seja qual for o cenário. “Para o Cade, não interessa se a Marfrig tem a maior parte das ações da BRF ou não. Se a companhia consegue interferir nas decisões em assembleia, é o suficiente”, destaca. “A CVM talvez fique impotente diante de operações do tipo, mas o Cade pode — e vai — barrar, limitar e interferir no que achar necessário para garantir o equilíbrio do mercado”, completa. O envolvimento em disputas e controvérsias parece mesmo fazer parte do DNA do setor de processamento de proteína animal. Agora é esperar o que os próximos lances da jogada de Molina revelarão sobre seus reais interesses na BRF. 

 


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