Uma das maiores emoções reservadas aos participantes do mercado de capitais era frequentar as reuniões de acionistas da antiga Lojas Americanas. Marcada sempre em datas e horários inconvenientes, o evento era realizado em algo com a aparência de um depósito da varejista. Localizado na Saúde, espécie de subdistrito escondido do centro do Rio de Janeiro, durante muito tempo sequer havia uma rua transitável em frente ao endereço, localizado entre ocupações irregulares e locais de frequência duvidosa.
Curiosamente, o entorno era o aspecto menos desagradável. Abertos os trabalhos, a reunião era invariavelmente secretariada por advogado que atuava como leão de chácara do camarote vip dos administradores da empresa. Até o encerramento, os habitués do encontro já viram de tudo: desde a proibição — ou, no eufemismo assemblear, o indeferimento — de acionistas questionarem a contabilidade da empresa até manobras rasteiras para impedir a eleição de representantes dos minoritários para os órgãos de governança. Os protestos por escrito anexados à ata eram o desfecho melancólico desse enredo que se repetia ano após ano.
Muito provavelmente, o único lenitivo para os participantes dessa experiência foi não ter recebido com surpresa a notícia de que essa mesma empresa “acalentava” suas demonstrações financeiras. Que diretores insatisfeitos com a “política” contábil adotada não tinham ambiente institucional para se expressar. Que a solução para o problema viria na forma deus ex machina peculiar às tragédias gregas.
Interessante que, como em qualquer desastre anunciado, a primeira reação é buscar um culpado pela falha. Analisando o lado daqueles que deveriam ter visto, mas não viram, há os candidatos mais prováveis, como é o caso das auditorias externas, cujas atribuições deveriam envolver a verificação das contas que foram indicadas como sendo problemáticas e apontar eventuais não conformidades aos órgãos de governança. Entretanto, no ambiente irracional que ora se sucede, sobra até para a Comissão de Valores Mobiliários (CVM).
Atribuir-lhe essa responsabilidade seria equivocado de toda forma. Afinal, ela não se coloca, no jargão da gestão empresarial, como uma espécie de quarta linha de defesa do sistema de controles internos — responsável reduzir erros, fraudes e erros do negócio. A função da autarquia insere-se dentro da lógica de supervisão do mercado como um todo, o que envolve, dentre outras ferramentas, o acompanhamento das informações prestadas pelo emissor e a apuração das denúncias dos participantes do mercado. Nesse sentido, a autarquia teria se omitido se, à luz de uma denúncia sobre o tema – a qual não se tem notícia de ter existido –, não tivesse apurado de maneira diligente.
No momento atual, impor algo a mais ao órgão regulador chega a ser leviano. Apenas para contextualizar, o poder público asfixia o orçamento da autarquia há anos, entra governo sai governo. Não apenas impede a necessária modernização da infraestrutura de sistemas e ferramentas de monitoramento — indispensável à atuação preventiva no moderno mercado de capitais — como não realiza concurso de servidores, nem para repor o atual déficit.
Apenas para colocar em números, de acordo com os últimos relatórios disponíveis, há cerca de 300 servidores de nível superior atuando na fiscalização de mais de 70 mil regulados, incluindo mais de 26 mil fundos e 765 companhias abertas. Com essa estrutura, incrível seria se, sem uma governança forte dentro da Americanas, sem uma denúncia específica e com informações públicas que enganaram um mercado especializado, a autarquia tivesse conseguido apurar previamente as irregularidades que foram praticadas.
Ocorre que, uma vez instaurado o escândalo, noticia-se que o Tribunal de Contas da União, ao invés de iniciar procedimentos para indagar por que o poder público não fornece os meios para a autarquia atuar de maneira mais efetiva, resolve apurar por que esse órgão de fiscalização não conseguiu identificar previamente a falha. A única resposta jocosa possível é que a CVM não tinha funcionários disponíveis para ir na Saúde assistir às assembleias gerais das antigas Lojas Americanas…
*Raphael Martins é advogado e sócio de Faoro Advogados
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