Depois de conseguir desopilar o fígado, que restava intoxicado pelas minhas duas últimas colunas sobre a tristíssima e abaladora fraude da Americanas, vamos desta vez ser, talvez, excessivamente técnicos. A proposta é discutir formas de apresentação contábil dos tributos calcados sobre o valor adicionado (nada a ver com a reforma tributária em discussão…).
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Algo talvez bastante conhecido pelos usuários das demonstrações contábeis — mas, pela minha experiência pessoal, não tanto quanto deveria ser. Comecemos com um exemplo extremamente simples: admita-se que uma empresa comercial adquira mercadorias por R$ 1.000.000 e as revendas por R$ 1.500.000 (e sem quaisquer outras despesas). E que, tanto na entrada quanto na saída, haja incidência (hoje) de ICMS, PIS e Cofins não cumulativos de 20% (os números efetivos confundem minha cabeça). Valores todos “por dentro”, ou seja, incluídos os dados de compras e vendas nesses valores.
A norma contábil utilizada hoje nos diz que, se na compra temos R$ 200.000 (20% do R$ 1.000.000) de tributos a serem abatidos dos que incidirão na venda, estes devem ser excluídos do custo das mercadorias e tratados como “tributos a recuperar” (conta de ativo) ou algo que o valha. Assim, os “estoques” recebem R$ 800.000 e “tributos a recuperar” recebem R$ 200.000, e a soma — R$ 1.000.000 — é lançada contra “fornecedores” no passivo. O balanço, só considerando essas variáveis, ficaria:
Balanço após compra | ||||
Estoques | R$ 800.000 | Fornecedores | R$ 1.000.000 | |
Tributos a Recuperar | R$ 200.000 | |||
Ativo | R$ 1.000.000 | Passivo | R$ 1.000.000 |
Na hora da venda, os R$ 800.000 dos estoques se transformam na conta de “custo das mercadorias vendidas” na demonstração do resultado (DRE). E a norma determina que a empresa reconheça, nesse momento, primeiramente uma receita bruta de R$ 1.500.000 contra “clientes” e, a seguir, contabilize uma redução dessa receita bruta de R$ 300.000 (20% x R$ 1.500.000) sob o nome “tributos sobre a receita bruta”, contra aquela conta que recebera os tributos na entrada — “tributos a recuperar”. Como esta tinha R$ 200.000 de saldo, zera-se esse saldo e o excedente — R$ 100.000 — transforma-se na conta do passivo de “tributos a recolher”. E surge o lucro de R$ 400.000 (veja abaixo). Após receber R$ 1.500.000 de clientes, pagar fornecedores com R$ 1.000.000 e recolher o tributo líquido de R$ 100.000, teremos:
Balanço após venda | ||||
Caixa | R$ 400.000 | Fornecedores | R$ – | |
Clientes | R$ – | Tributos a Recolher | R$ – | |
Estoques | R$ – | Lucro | R$ 400.000 | |
Tributos a Recuperar | R$ – | |||
Ativo | R$ 400.000 | Passivo + Pat. Líquido | R$ 400.000 |
E o resultado, como fica?
Demonstração do resultado | |
Receita Bruta | R$ 1.500.000 |
(-) Tributos sobre a Rec. Bruta | -R$ 300.000 |
(=) Receita Líquida | R$ 1.200.000 |
(-) Custo das Merc. Vendidas | -R$ 800.000 |
(=) Lucro | R$ 400.000 |
Mas o fluxo de caixa aparece assim:
Fluxo de caixa | |
Recebimento de Clientes | R$ 1.500.000 |
Pagamento a Fornecedores | -R$ 1.000.000 |
Recolhimento Tributos | -R$ 100.000 |
Saldo Final | R$ 400.000 |
Veja-se que o lucro corresponde exatamente ao acréscimo de caixa, mas o fluxo de caixa mostra bem rápida e cartesianamente o que ocorreu com o numerário. Já a demonstração do resultado, apesar de chegar no mesmo valor ao apresentar a conta “tributos sobre a receita bruta” no valor de R$ 300.000, dá a impressão de que esse é o valor do tributo que a empresa recolhe (em outras palavras, de que essa é a forma que a legislação tributária a afeta). Mas, na verdade, o que ocorreu foi que a empresa gerou um valor adicionado (sua parcela no PIB) de R$ 500.000 (porque recebeu R$ 1.500.000 e desembolsou para terceiros R$ 1.000.000) e foi tributada sobre esse valor adicionado em 20% (20% x R$ 500.000 = R$ 100.000).
Ou seja, a demonstração do resultado conforme hoje praticada pode induzir leitores a entenderem de forma errada o efeito da tributação sobre sua atividade. Podem achar que ela tem de recolher R$ 300.000 de tributos. Mas não é verdade: só recolhe R$ 100.000. Tanto que, na demonstração do valor adicionado (DVA, obrigatória para todas as companhias abertas no Brasil), a demonstração do resultado precisa sofrer modificações. Assim, obrigatoriamente, na DVA teremos:
Demonstração do Valor Adicionado
GERAÇÃO DO VALOR ADICIONADO | |
Receita Contra Terceiros | R$ 1.500.000 |
Compra de Terceiros | -R$ 1.000.000 |
VALOR ADICIONADO GERADO | R$ 500.000 |
DESTINAÇÃO DO VALOR ADICIONADO | |
Para o Governo | R$ 100.000 |
Para os Sócios | R$ 400.000 |
VALOR ADICIONADO DISTRIBUÍDO | R$ 500.000 |
Ou seja, a DVA mostra corretamente a parte do PIB do país produzida nessa empresa, além de apresentar a genuína carga tributária dessa empresa (20%) sobre seu valor adicionado. A média brasileira nesse quesito fica perto dos 34%.
Será que não deveríamos pensar na velha demonstração do resultado que fazíamos antigamente? Jogávamos os R$ 100.000 como despesas de venda, assim:
Demonstração do resultado | |
Receita Bruta | R$ 1.500.000 |
(-) Tributos Devidos | -R$ 100.000 |
Receita Líquida | R$ 1.400.000 |
(-) Custo das Merc. Vendidas | -R$ 1.000.000 |
Lucro | R$ 400.000,0 |
Resumindo, a demonstração do resultado de hoje reflete de forma um tanto oblíqua o fluxo de caixa da empresa. Mostra uma tributação que não corresponde à efetiva realidade financeira se vista de forma simples — e tampouco evidencia o verdadeiro valor adicionado gerado pela empresa. Duas distorções que são consertadas nas demonstrações do fluxo de caixa e do valor adicionado.
P.S.: Esqueceram da Americanas? Eu, apesar disto tudo, não. Voltaremos a ela!
*Eliseu Martins é professor emérito e professor sênior das FEAs-USP de São Paulo e Ribeirão Preto. Ex-diretor da Comissão de Valores Mobiliários (CVM) e do Banco Central.
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