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Os obstáculos à herança de bens digitais
Sem uma regulação que discipline o tema, herdeiros sofrem com insegurança jurídica e ficam à mercê de regras privadas
Sem uma regulação que discipline o tema, herdeiros sofrem com insegurança jurídica e ficam à mercê de regras privadas
Os desafios que cercam a transferência de bens digitais para herdeiros são inúmeros — Imagem: freepik

Em novembro do ano passado, um iate foi vendido no metaverso — ambiente futurístico de realidade virtual — por 3,1 milhões de reais, em uma transação com criptomoedas. Itens para games usados para customizar avatares — conhecidos como skins — podem ser negociados por somas ainda maiores. Para se ter ideia, uma faca para o jogo Counter Strike: Global Offensive chegou a ser avaliada em 5 milhões de reais. Ganhou, assim, o status de skin mais cara do mundo. Extravagantes, esses números evidenciam uma realidade incontestável: os bens digitais têm hoje um enorme valor. E como outros ativos não-palpáveis, enfrentam obstáculos relativos à sua tributação e na transferência para herdeiros.  

“A digitalização muda o panorama econômico, as negociações e traz reflexos jurídicos sobre as regras que aplicávamos até então”, resume Juliana Abrusio, sócia do Machado Meyer. Na sua opinião, vivemos um momento em que uma quantidade maior de “não-coisas” assume valor econômico, passa a fazer parte do patrimônio de uma pessoa e, consequentemente, de uma trilha de sucessão. Abrusio participou junto com Fernando Colucci e Rafael Stuppiello, também advogados do Machado Meyer, e Gabriel Campoy, wealth planner da XP Private, de um debate patrocinado pelo escritório na Conexão Capital

Os desafios que cercam a transferência de bens digitais para herdeiros são inúmeros. Como o tema é novo e não conta com arcabouço regulatório específico no Brasil, há mais dúvidas do que respostas. Um desses questionamentos diz respeito a como deve ser feita a tributação de ativos digitais no caso de doações e heranças. De acordo com a regulamentação, esses bens devem pagar Imposto sobre Doações e Heranças (ITCMD), que incide sobre o seu valor de mercado. O problema é que a definição desse montante não é trivial — situação que tem gerado complicações, por exemplo, num segmento que não para de crescer: o das criptomoedas.  

Hoje, até mesmo pequenos investidores têm exposição a ativos digitais por meio de fundos que exigem aportes mínimos irrisórios. No Brasil, o volume de negócios com bitcoins alcançou 64,3 bilhões de reais no ano passado, de acordo com dados da Receita Federal. O valor representa um crescimento de 73,3% em relação a 2020. E isso levando em conta apenas os volumes negociados nas exchanges. “Muitas vezes, essas transações acontecem fora de ambientes que podem ser controlados, o que dificulta o trabalho do fisco de capturar esses eventos e exigir o recolhimento de tributo”, observa Colucci, sócio do Machado Meyer. 

Ele explica que, como as criptomoedas não têm uma cotação oficial reconhecida por um órgão regulador e seus preços variam 24 horas por dia (diferentemente das ações, por exemplo, cujos valores oscilam dentro do horário de funcionamento do pregão), é difícil determinar o valor de mercado que deve servir como base para cálculo do ITCMD. Tarefa que se torna ainda mais complexa caso envolva criptoativos com baixa liquidez ou negociados apenas no exterior. “Faz falta, no País, uma regulamentação que discipline a valoração desses ativos”, ressalta Campoy, da XP.  

Segundo ele, na ausência de regras sobre o assunto, é frequente que, em comum acordo com as famílias, os profissionais que cuidam dos planejamentos sucessórios utilizem parâmetros próprios para estabelecer a base de cálculo para pagamento de imposto. “Por conservadorismo, consideramos razoável definir como valor de mercado o preço médio da criptomoeda nas últimas 24 horas”, afirma Campoy. “Mas como isso não está escrito em nenhuma regulamentação ou lei, cria-se uma insegurança jurídica”, acrescenta. 

E não são apenas as complexidades tributárias que atrapalham o processo de sucessão dos criptoativos. Quando o proprietário das moedas digitais morre, seus herdeiros podem assumir o controle desses ativos, mas desde que conheçam suas chaves criptográficas. Por questões de segurança, raramente elas são compartilhadas ou ficam registradas em algum lugar a que os familiares tenham acesso. “Se a pessoa que veio a falecer não usava um intermediário para custodiar sua conta de criptomoedas, e não indicou para ninguém essa chave, os herdeiros simplesmente não vão conseguir acessá-la”, afirma Abrusio. 

Testamento vs. privacidade 

A discussão ganha contornos ainda mais complexos quando o foco sai das criptomoedas — que claramente tem um valor econômico — e vai para elementos mais intangíveis, como páginas pessoais nas redes sociais. Muitos desses perfis possuem milhões de seguidores e, dado o seu alcance e influência, acabam sendo monetizados pelos seus donos. Alguns influenciadores chegam a cobrar por publicidade de produtos e serviços valores superiores aos de uma inserção comercial em um grande canal de televisão. Mas o que acontece com essas páginas quando os seus donos morrem? Elas podem ser consideradas um bem ao qual os herdeiros deveriam ter acesso?  

As respostas passam por caminhos intricados. “Muitos doutrinadores criticam a sucessão desses legados digitais, sob o argumento de que se estaria transformando algo personalíssimo [no caso, o perfil de uma pessoa numa rede social] em um bem patrimonial. E a rigor, pela legislação civil, todos os direitos personalíssimos são extintos com o falecimento do indivíduo”, explica Rafael Stuppiello, advogado sênior do Machado Meyer. Ele pondera, no entanto, que, apesar desse entendimento, é inegável que muitos perfis têm enorme valor econômico e, portanto, deveriam fazer parte do planejamento sucessório.  


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Mas ainda que a Justiça autorize a sucessão desse tipo de bem — e que o usuário defina em testamento que os herdeiros têm direito a usar seu perfil após sua morte —, o acesso a essas páginas não está garantido. As plataformas de redes sociais, com base nos respectivos termos e condições de uso, podem barrar o acesso. Muitas delas têm feito isso, inclusive, sob a alegação de que precisam proteger a privacidade de seus usuários. “Essa situação lembra imbróglio envolvendo as milhas aéreas, no qual empresas gestoras desses programas, com bases em regras unilaterais, diziam que elas não podiam ser objeto de sucessão. Mas, desde 2014, o Judiciário brasileiro vem decidindo que essas regras não prevalecem sobre o direito sucessório”, comenta Stuppiello. Em outras palavras, os juízes têm entendido que a vontade expressa no testamento é hierarquicamente superior às regras próprias das redes sociais. 

E a boa notícia é que, tanto no Brasil como no exterior, já existem casos em que a Justiça deu ganho de causa a famílias que pleitearam o acesso a perfis de usuários após a morte. Atenta a essas situações, a Apple incluiu recentemente em suas políticas que o usuário pode determinar quem terá acesso ao seu ID Apple caso venha a morrer. Abrusio observa, no entanto, que essa prerrogativa pode ser alvo de contestação no País. “A nossa lei não permite que eu passe o acesso do meu perfil a uma amiga, por exemplo, no lugar dos meus herdeiros legais. O que a Apple fez foi uma regulação paralela”, esclarece.  

Diante de tantas dúvidas envolvendo o tema, uma legislação que trouxesse clareza sobre o assunto seria muito bem-vinda. Por ora, entretanto, são poucos os países que possuem um regramento específico para a sucessão de bens digitais. No Brasil, há projetos de lei que tentam alterar o código civil e o marco civil da internet para endereçar a questão, mas estão paralisados no momento. E ainda que eles venham a ser aprovados, Stuppiello ressalta que é pouco provável que consigam oferecer a segurança jurídica que o mercado precisa. “Os legisladores vão ter que fazer uma escolha, pois não conseguirão resolver questões de privacidade, fiscal e de sucessão ao mesmo tempo”, afirma. Independentemente disso, é bom que não demorem a se debruçar sobre o tema. Com o avanço das finanças descentralizadas e de novidades como o metaverso, a tendência é que a sucessão de bens digitais se torne a cada dia mais presente — e complexa.  

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