O mercado de capitais em 2020
O que esperar das captações de recursos e dos investimentos em bolsa com a desconstrução do muro alto da Selic
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Ilustração: Beto Nejme

A desconstrução, tijolo a tijolo, do muro de dois dígitos simbolicamente representado pela taxa Selic durante a maior parte do Plano Real finalmente fez a luz entrar no mercado de capitais brasileiro. O ano de 2020 deve começar com uma pequena, mas firme mureta de cerca de 5%, por cima da qual governo, investidores e companhias conseguem enxergar muitas oportunidades. Esse novo horizonte, na verdade, já apareceu em 2019, como mostram as estatísticas recentes de ofertas de ações, emissões de renda fixa, operações estruturadas, fusões e aquisições e gestão de recursos. Além de propiciar aumentos nos volumes das ofertas, a redução da taxa Selic vem provocando mudanças qualitativas: há maior diversificação de investimentos, paulatino acesso de empresas de porte médio a recursos fora do sistema bancário, aumento da presença das pessoas físicas nas ofertas de ações e desvinculação das emissões de renda fixa ao certificado de depósito interfinanceiro (CDI).

Em 2019, até o fim de outubro, foram captados 311,2 bilhões de reais por meio do mercado de capitais, 54% mais do que em igual período de 2018, de acordo com dados da Associação Brasileira das Entidades dos Mercados Financeiro e de Capitais (Anbima). Diante do contexto de acomodação da economia e do cenário político (na medida do possível), a expectativa do mercado é de que 2020 também será um ano bastante positivo para as operações — não só pelos juros baixos, mas também pela redução do papel do Estado e dos bancos públicos na economia, amplamente propagandeada pelo Ministério da Economia, e pela esperança de um crescimento do Produto Interno Bruto (PIB) mais robusto. Espera-se um aumento em torno de 2,2% da atividade econômica em 2020, de acordo com as últimas edições do boletim Focus, compilação semanal do Banco Central.

Salto na bolsa

Braço mais emblemático do mercado de capitais, a bolsa dá bem a medida da efervescência das captações que movimentaram os últimos meses e que devem persistir nos próximos. De janeiro a outubro de 2019 as ofertas de ações totalizaram 71,3 bilhões de reais, também de acordo com a Anbima. O salto é impressionante, considerando que em todo o ano de 2018 as operações somaram apenas 7,2 bilhões de reais.

Puxaram a retomada as ofertas subsequentes (follow-ons) de companhias já listadas, categoria que envolveu 61 bilhões de reais nos dez primeiros meses de 2019. As ofertas iniciais (IPOs) foram um pouco mais tímidas, mas ainda assim somaram um volume maior que o registrado em 2018. Em 2019, cinco empresas ofertaram suas ações pela primeira vez no mercado: Neoenergia, Vivara, banco BMG, C&A Modas e Grupo SBF. Juntas, elas captaram 10,2 bilhões de reais.

Os profissionais do mercado reforçam um ponto importante: 2018 foi marcado por avanços muito mais que circunstanciais, diferentemente do que havia acontecido em anos anteriores. “Percebemos uma mudança estrutural no mercado, marcada principalmente pelo aumento da participação do investidor local, de varejo, nas ofertas de ações. Diante da consistente queda dos juros, os investidores estão buscando mais ganhos na renda variável”, afirma o advogado Jean Arakawa, sócio do escritório Mattos Filho. Os estrangeiros, que haviam comprado 63,7% das ofertas de ações de 2018, viram sua participação no bolo cair para 42,7% em 2019. Já os investidores institucionais, em especial fundos de investimento, aumentaram sua fatia de 27,9% para 49,2%, enquanto a presença da pessoa física, via compra direta, ficou estacionada em torno de 8%.

Arakawa considera que, mantido o cenário benéfico, a maior participação dos investidores locais abre espaço para ofertas de ações de menor vulto — o que é extremamente importante para a consolidação do mercado de capitais brasileiro. “Nunca se configurou um cenário tão bom para IPOs de empresas menores”, afirma. Normalmente, os bolsos dos investidores institucionais estrangeiros são mais “profundos” — por isso, eles costumam apenas entrar em ofertas de pelo menos 500 milhões de dólares, de papéis com boa liquidez depois da listagem. Em muitos casos, esse valor é o piso informal requerido pelos bancos que coordenam ofertas, mas essa prática está caindo em desuso. Os investidores nacionais, entretanto, avaliam o tamanho da emissão em reais, o que significa que consideram líquidas operações de menor valor. Diante disso, Arakawa espera um 2020 forte em ofertas e enxerga mais potencial nas empresas dos setores de varejo e consumo, produtos e serviços financeiros (bancos digitais e fintechs) e utilities (notadamente de saneamento, dada a possibilidade de privatização de companhias estaduais).

Menos Estado

A esperada — e agora aparentemente mais palpável — melhora da economia impulsiona o tom alvissareiro. “A retomada é lenta e gradual, mas já está contratada”, afirma Alexandre Silverio, CIO da AZ Quest, que projeta avanço de 2,5% do PIB em 2020. Para ele, em meio a um ambiente que combina juros estruturalmente mais baixos e medidas para arrumação da casa, como o teto dos gastos do governo e a nova taxa de longo prazo (TLP), o Estado está reduzindo sua presença na economia, espaço que tende a ser ocupado pelo setor privado. Na avaliação de Silverio, outro impulso virá das concessões de infraestrutura e privatizações, que diante do encolhimento da participação do BNDES devem se financiar via mercado de capitais.

Especificamente no caso das empresas, a visão do CIO da AZ Quest é bastante positiva. “Acredito que os lucros vão crescer em ritmo mais acelerado que o do PIB”, comenta. O argumento de Silverio está calcado no fato de, ao longo da crise, as companhias foram obrigadas a lidar com aumento de custos e redução das vendas, o que levou à compressão das margens. Em 2015, a margem líquida média das companhias listadas na B3 (excluindo as de setores cíclicos globais, como de mineração, siderurgia e papel e celulose) era de 16%. O indicador caiu para 15% no ano seguinte, mas, em 2018, já começou a se recuperar (para 17%). Em 2019, pelos cálculos do gestor, ela deve ficar em 18,5%. Ao mesmo tempo, a alavancagem financeira medida pelo indicador dívida líquida/Ebitda, que estava em 2 em 2015, pelos cálculos da casa de gestão, deve chegar a 1,2 em 2020 (indicando tendência à redução do endividamento). “Agora as receitas vão começar a aumentar, impulsionando os lucros”, aposta, acrescentando que as empresas que passaram por esse ajuste devem ser capazes de consolidar seus mercados, um indicativo de avanço de fusões e aquisições — especialmente em setores ainda fragmentados como educação, saúde e locação de veículos.

A propósito, ao longo de 2019 as fusões e aquisições estiveram ativas, mas num ritmo mais calmo que o do mercado de capitais. De acordo com dados da Anbima, as operações anunciadas movimentaram 108 bilhões de reais de janeiro a junho, 20% a mais do que no primeiro semestre de 2018. “A queda de juros demora a ter impacto efetivo na geração de caixa das empresas. Por isso, o aquecimento foi mais forte no mercado de capitais e nos mercados líquidos do que na economia real”, explica Guilherme Stuart, sócio da assessoria em fusões e aquisições RGS Partners. A volta dos investimentos das companhias, considera, ocorrerá de forma lenta, e o mesmo pode acontecer com as transações entre empresas. “Nada indica que 2020 será pior do que 2019, mas nada também sugere que será muito melhor quando se trata de M&As”, observa. Em sua opinião, as empresas brasileiras ainda penam para crescer acima do PIB e enfrentam o desafio adicional das manchetes desabonadoras em relação ao País, que prejudicam uma análise mais aprofundada da situação das companhias. A exceção está, afirma, no setor de tecnologia. Não à toa, a atividade de venture capital voltada para esse segmento foi destaque no ano, consolidando-se como fonte de recursos importante para as empresas.


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Trocas de dívidas

Embora não no ritmo frenético da renda variável, a renda fixa também teve um 2019 bem positivo. Para se ter uma ideia, as ofertas de debêntures movimentaram 138,5 bilhões de reais, 8,8% acima dos 127,2 bilhões de reais dos dez primeiros meses de 2018, segundo a Anbima. O impulso, nesse caso, veio das trocas de dívidas — tanto externas por internas quanto apenas internas, em estratégias montadas pelas empresas para aproveitarem as taxas de juros mais baixas. Prova disso é que o refinanciamento foi a motivação da maior parte das emissões (42,1%), seguido pelo financiamento do capital de giro, com 29,2%.

Além de favorecer o mercado no aspecto quantitativo, com a expansão do volume captado, os juros baixos estão ajudando a mudar a estrutura de remuneração das emissões de debêntures. “O rendimento atrelado ao CDI é uma jabuticaba que deixará de existir à medida que o mercado amadurecer”, destaca Bruno Eiras, CEO da Devant Asset Management, casa especializada em renda fixa. Nos mercados desenvolvidos, os títulos de renda fixa pagam a taxa livre de risco (como a Libor) acrescida de um prêmio de crédito, dado conforme o risco do emissor. Ou seja, o spread de crédito é prefixado. Aqui, as emissões costumavam pagar um percentual do CDI — a remuneração pós-fixada é uma herança dos tempos inflacionários. Mas hoje os títulos já estão oferecendo ao investidor CDI mais uma taxa prefixada, calculada com base no risco de crédito da empresa. O próximo passo na jornada da maturidade é o abandono desse indicador.

Se um título de uma empresa pagava 110% do CDI quando os juros básicos estavam em 10% ao ano, por exemplo, ele pagava 11% ao ano. Atualmente, com a Selic em 5% ao ano, se o título da mesma empresa pagar 110% do CDI, ele oferece um rendimento de 5,5% ao ano. O spread de crédito da mesma empresa, nesse exemplo, teria caído de 1% para 0,5%. Essa redução no prêmio, no entanto, só faz sentido, segundo Eiras, quando os fundamentos da empresa realmente melhoram e o risco de calote dela diminui. Os juros baixos, portanto, tornaram evidentes as distorções existentes no mercado. Agora, o spread passa a refletir melhor o risco da emissão — assim como funcionam os mercados evoluídos.

Dados da Anbima mostram que, em 2018, 49% das emissões de debêntures foram feitas com a oferta de um percentual do CDI de rendimento e 31% contavam com CDI mais um spread. Em 2019, até o fim de outubro, a situação se inverteu: a primeira modalidade representou 28,3% das emissões e a segunda, 53,8%. Como a expectativa era de queda de juros, o investidor preferiu travar uma taxa prefixada (dada pelo spread) para garantir o rendimento, já que projetava novas reduções da meta da Selic.

Outro sinal de amadurecimento rumo a um mercado pós-CDI é a gradativa chegada de empresas menores no mercado de títulos de dívida. Eiras relata que já há empresas de porte médio emitindo debêntures; segundo ele, esses papéis podem representar boas oportunidades de compra, desde que as emissoras sejam submetidas a um processo de análise que leve em conta não só a capacidade de pagamento, mas também a governança. “Há empresas com ótimos indicadores acessando o mercado de capitais pela primeira vez, e que por isso oferecem prêmios maiores”, diz. Entre as emissões desse tipo, feitas em 2019, estão Celulose Irani (captação de 505 milhões de reais), Vix Logística (373 milhões de reais) e Vamos (800 milhões de reais).

CRIs, CRAs e FIIs

O horizonte visto da nova mureta da Selic baixa também está mais claro para produtos estruturados do mercado de capitais, casos de certificados de recebíveis imobiliários (CRIs), certificados de recebíveis do agronegócio (CRAs) e fundos imobiliários: do início de 2019 até outubro passado, todos haviam superado os volumes verificados em 2018. Os fundos imobiliários, por exemplo, passaram de uma captação de 15 bilhões de reais em 2018 para 26,3 bilhões de reais nos dez primeiros meses de 2019. “Já dá para dizer que está em curso uma corrida desenfreada pelos fundos imobiliários. A demanda está muito forte, o que leva a rateios nas ofertas”, afirma Eduardo Malheiros, sócio da Habitat Capital, gestora especializada em fundos imobiliários que compram CRIs. Em junho passado, a gestora ofertou ao público um fundo de 200 milhões de reais, mas ampliou a oferta para 240 milhões de reais em função da forte procura — foi uma forma de evitar um rateio muito grande, o que sempre decepciona os investidores. De acordo com Malheiros, a tendência é de que novos tipos de FIIs cheguem ao mercado, como os fundos voltados a imóveis residenciais, ainda incomuns.

Mais um efeito do desmonte da barreira da Selic para o mercado de capitais brasileiro — que já vinha forte, mas ganhou ainda mais expressividade em 2019 com os juros menores e a disseminação das plataformas de investimento — é o surgimento de gestoras de recursos. Uma das casas abertas em 2019 foi a Hieron, capitaneada por Robert van Dijk e Reinaldo Lacerda, executivos com décadas de experiência na área de gestão de recursos e passagens por grandes instituições. A gestora iniciou sua atuação no fim de junho e já tem patrimônio sob gestão de 1 bilhão de reais. “O ciclo do rentismo no Brasil está se encerrando, e com isso será necessária uma busca por mais retornos, assumindo mais riscos e alongando os prazos”, afirma van Dijk.

A Hieron é um misto de family office e gestora de recursos, de forma a ofertar, para além da gestão, os serviços de consultoria em governança corporativa, sucessão, planejamento e gestão do patrimônio líquido e ilíquido das famílias. A ideia é aproveitar a sinergia entre as duas atividades, já que os grupos familiares costumam ter grandes patrimônios imobilizados, participações em outras empresas e conhecem seus fornecedores — assim, podem contribuir para a estruturação de fundos de recebíveis, comprando cotas subordinadas. “O momento é propício à monetização dos patrimônios imobiliários e empresariais”, afirma Lacerda. Na opinião de Marina Procknor, sócia do escritório Mattos Filho, as estreias de assets tendem a continuar ao longo de 2020. “Há muitas conversas de pessoas interessadas em montar gestoras de recursos no Brasil ou de estrangeiros que desejam fazer parcerias comerciais”, afirma. Procknor vê interesse tanto em casas com fundos líquidos quanto em outras que atuam com ativos estressados (distressed assets) ou private equity.

Como resultado da queda da taxa de juros e do aumento da competição entre as assets, muitos gestores de recursos estão reduzindo as taxas de administração dos fundos. Isso é especialmente verdadeiro na categoria renda fixa e para fundos com aplicação mínima de até mil reais. Essas taxas vêm em trajetória de queda: na média, eram de 3,65% em 2010, caíram para 2,41% em 2018 e para 1,93% em setembro passado, de acordo com a Anbima. Mas vale dizer que a taxa para fundos que exigem “mais gestão”, como os multimercados e os de ações, estão estáveis. Nos fundos de ações, elas subiram de 2,09% em dezembro de 2018, na média, para 2,18% em setembro passado. Nos multimercados, foram de 1,84% para 1,82% ao ano no mesmo período.

O cenário é animador — mas tratando-se de um país com o grau sempre elevado de instabilidade como é o Brasil —, o otimismo tem um freio da realidade. Existem riscos à consolidação do quadro esperado para 2020, relacionados à evolução da guerra comercial entre Estados Unidos e China, no campo externo, e às crises políticas frequentes desencadeadas por ações ou declarações pouco ortodoxas do governo Bolsonaro, que, na prática, podem emperrar ou enterrar reformas estruturais com que os agentes de mercado já estão contando. De qualquer maneira, uma coisa é certa: sem o muro alto da Selic, o mercado de capitais brasileiro pode finalmente revelar seu potencial.


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