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O metódico desmonte das investigações de crimes financeiros no Brasil
O apagar das luzes promovido pelo governo Bolsonaro produz, a um só tempo, mais liberdade para os criminosos e mais riscos para os que agem honestamente
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Há um abrandamento sensível nos sistemas de combate à lavagem de capitais, o que tem feito o Brasil piorar sua imagem no plano internacional | Imagem: Freepik

Ocultar ou dissimular a origem, natureza, localização ou qualquer tipo de uso ou disposição de bens, direitos ou valores obtidos ilegalmente é crime no Brasil desde a Lei 9.613/98 (Lei de Lavagem de Capitais). Porém, seus contornos mais rígidos surgiram com a Lei 12.683/2012, a partir da qual as definições, as formas de controle e a extensão do delito foram ampliadas.  


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As mudanças mais marcantes foram duas. Na primeira, o rol de crimes aptos a gerar capitais ilícitos deixou de ser uma lista fixa e fechada, de modo que qualquer crime passou a ser potencial produtor de ilícitos passíveis de serem lavados. Na segunda, foram ampliados os mecanismos de controle públicos e privados de comportamentos que se encaixam em modelos tidos por agências fiscalizatórias como suspeitos ou, de alguma forma, inusuais. Impôs-se a várias profissões e atividades econômicas o dever de reportar a órgãos públicos de controle quem participou e a operação tida como suspeita, segundo as regras estabelecidas. 

Depois de mais de duas décadas de avanços e aprimoramentos no controle das atividades ilícitas de escamoteamento de bens ou valores originários do crime, o histórico de efetivo controle, averiguação e punição vem sofrendo brutal retrocesso. Por razões insólitas e sem qualquer fundamento técnico, guiadas por indisfarçável metodologia de desmonte, assistimos nos últimos três anos a um verdadeiro apagar das luzes e das câmeras de vigilância de uma das formas mais clássicas e evidentes de lavagem de capitais: o uso do dinheiro em espécie para operações no mercado imobiliário.  

A propósito, alguém, por meio de atitude honesta e conforme a lei, lembra-se de ter comprado ou vendido algum imóvel com uso de dinheiro vivo? Faria algum sentido essa prática num país de ampla insegurança e, ao mesmo tempo, eficientíssimo sistema financeiro? 


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Uma escolha política 

Destacam-se na estrutura de controle e apuração, basicamente, a tríade composta pelo Conselho de Controle de Atividades Financeiras (Coaf), pelas polícias (civil e federal) e pelos ministérios públicos (estadual e federal). Porém, a partir de 2019, observamos uma metódica série de alterações que, de modo claro, têm o objetivo de desativar, ainda que momentaneamente, a capacidade de descoberta e investigação das práticas ilícitas que, frise-se, continuam sendo tratadas como crime pela lei. O bom e livre funcionamento daquelas agências é que permitiu as intensas e profundas investigações que vimos, especialmente entre 2005 e 2018, culminarem nas inúmeras “operações” fiscais e investigativas, nas centenas de processos e nas dezenas de condenações, tais como os famosos mensalão e petrolão.   

O Coaf é (ou deveria ser) o ponto básico de controle. É ele que recebe os chamados “sinais” de alerta enviados pelos agentes econômicos nas mais diversas atividades e tipos de operações. Criado desde a Lei 9.613/98, o Coaf foi, ao menos até 2019, progressivamente ganhando estrutura operacional e regulamentações amplas e eficazes, a fim de atingir os principais mercados — inclusive o imobiliário, internacionalmente tido como um dos principais meios utilizados pela criminalidade para ocultação e lavagem dos capitais ilicitamente obtidos1. Após 2019, sua limitação e suas restrições estruturais e funcionais são evidentes. E todas foram provocadas por opções políticas.  

São várias as situações e operações que ocorrem no cotidiano das atividades e dos negócios do setor imobiliário que podem configurar indícios de crimes da Lei de Lavagem de Capitais: 1) recebimento de parte relevante do pagamento em dinheiro vivo, sem a efetiva demonstração de origem; 2) pagamentos oriundos de terceiros, por conta e ordem; 3) formalização por valores diferentes daqueles efetivamente negociados; 4) uso de sociedades em conta de participação (SCPs) sem conteúdo econômico; 5) incompatibilidade de capacidade econômica para a transação; 6) transações envolvendo, direta ou indiretamente, pessoas politicamente expostas. Por isso, a atenção das empresas e das pessoas deve ser continuada, a fim de garantirem sua licitude operacional e sua imagem junto às agências e à população.  

Importante lembrar que não é proibido ou ilícito realizar qualquer compra ou negócio com dinheiro em espécie. Porém, é absolutamente inafastável a obrigação de se comprovar sua origem, tanto em termos fiscais (demonstrando que veio de uma atividade lícita e devidamente informada na contabilidade, seja da pessoa física ou jurídica, até chegar à condição de receita declarada pela pessoa física beneficiária), como físicos (comprovando quando e de que forma foi obtido, recebido ou sacado o montante em espécie).  

Essa obrigação é ainda mais relevante quando se trata de negociação envolvendo pessoa politicamente exposta. Nesses casos, soma-se um “sinal” de potencial indício de irregularidade. Tais anomalias são assim classificadas por agências da comunidade econômica internacional há décadas.  

Pois foi exatamente esse o alvo do desmonte que, sistemática e politicamente, foi iniciado no Coaf a partir de 2019. Primeiramente com o Decreto 9.663/19 e a MP 870 (parcialmente convertida na Lei 13.974/20), que reduziram a estrutura do Conselho, retiraram-lhe poderes e o transferiram do Ministério da Fazenda para o Ministério da Justiça e, depois, para o Banco Central. Esse processo continuou com a Resolução 34/2020 do Coaf, que simplesmente revogou a anterior Resolução 24/2013, exatamente aquela que tinha espectro mais amplo e geral para exigir que as empresas e demais pessoas envolvidas numa transação imobiliária informassem eventuais sinais de potencial ocorrência de lavagem de capitais nas operações.  

Câmera desligada 

A inexplicável revogação teve como único argumento a suficiência dos demais mecanismos de controle, em especial daqueles já existentes no mercado financeiro. Para transações usuais e regulares, por meio de TEDs e cheques administrativos — as formas normalmente utilizadas para negócios de valores mais expressivos e por quem nada tem a esconder —, de fato, já há um rígido sistema de informação via Bacen. Mas, e os negócios em dinheiro vivo? Para esses, estamos no escuro e com a câmera desligada. 

Esse metódico desmonte, como era de se esperar, tem feito com que o fluxo de dinheiro ilícito se dirija às negociações imobiliárias. Notícias e suspeitas têm recaído até mesmo sobre familiares, mais ou menos próximos, do atual presidente da República, que conta com vários outros familiares considerados “pessoas politicamente expostas”. Mas, para além dessa situação específica, o que cabe ressaltar é a existência de todo um mercado imobiliário que, em regra e em sua enorme maioria, atua de forma lícita. Este mercado deve proteger a sua imagem contra uma minoria que atua em conluio ou se beneficiando do dinheiro originário de crime, seja ele organizado ou não. 

Se antes havia regramento que permitia a proteção das responsabilidades para aqueles agentes econômicos que, envolvidos em transações com potencial risco, fizessem a informação chegar ao Coaf, agora, sem essa obrigação e com a continuidade dos crimes de lavagem, resta o risco para o profissional e demais camadas do mercado imobiliário. Isto porque, todos os atualmente envolvidos, mesmo agindo licitamente, poderão ser futuramente investigados e até responsabilizados por lavagem de capitais se configurada a sua conivência, intencional ou tolerada, com o crime praticado. Engana-se quem interpreta que a retirada da obrigação de informar permite ao agente fechar os olhos para o delito cometido. 

Um dos cuidados que esses profissionais tinham de adotar era a prestação obrigatória de informes. O fato, contudo, é que as atividades não deixaram de ser suspeitas porque os informes deixarem de ser exigidos. Em outras palavras, o crime não foi revogado, e o risco de atuação pessoal e empresarial está sendo incrementado por não se saber o que deve ser informado e quais proteções podem assegurar os agentes de mercado.  

Atualmente, dentre as atividades ligadas ao setor imobiliário, apenas as instituições financeiras, os corretores e os notários estão obrigados a enviar informes ao Coaf. Foi extinta a obrigação das demais empresas do setor (incorporadoras, construtoras, loteadoras etc.) e de outros profissionais envolvidos na negociação de fazerem o mesmo.  

Um exemplo de furo nessa teia — agora precária — de controle é uma compra financiada parcialmente em banco e com a outra parte do valor paga em dinheiro vivo. Nesse caso não há escritura (o que deixa a transação fora do radar dos notários), pois o contrato particular de financiamento tem essa força. Da mesma forma, o banco não tem obrigação de informar, porque a parte da operação que lhe cabe já está sob o compliance do financiamento. Como resultado, a negociação passa ao largo do Coaf.  

Essa é apenas uma das situações que a imprensa vem noticiando e que produz suspeitas sobre familiares do presidente Jair Bolsonaro. Se a imagem da pessoa pública mais importante de uma nação está desgastada dessa forma, o que dizer da imagem de uma empresa ou de um profissional do mercado imobiliário se igual suspeita recair sobre eles?  Nem todos podem contar com 100 anos de sigilo, como o decretado pelo atual presidente. 

Seletividade investigativa 

Para completar o quadro, vimos o simultâneo acanhamento da Polícia Federal. As subsequentes trocas de comando (foram quatro, desde 2019), além das remoções dos superintendentes mais efetivos e da realocação de delegados, somada à redução significativa do ritmo das investigações sobre os crimes de lavagem de capitais, induzem a uma seletividade investigativa.  

No mesmo diapasão seletivo e redutor de ações investigativas e acusatórias está a cúpula do Ministério Público Federal. Verdade ou não, a situação posta é que nomeações fora da lista tríplice formada pela própria instituição gera legítimas desconfianças nas formações de juízos subjetivos para investigar e acusar quem lhe indicou ao cargo, no caso, o presidente da República — além de seus consectários familiares e amigos. Se fosse outra a forma de escolha, já não teríamos um “Secretão”2 e várias “Rachadonas”? 

O resultado é um abrandamento sensível nos sistemas de combate à lavagem de capitais, o que tem feito o Brasil piorar sua imagem no plano internacional, especialmente perante os organismos bilaterais destinados ao assunto, como a Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE). A própria permanência do Grupo de Ação Financeira contra a Lavagem de Dinheiro e o Financiamento do Terrorismo (GAFI/FATF) foi colocada em risco.  

Recentíssimo relatório anual da Transparência Internacional3 expõe com clareza o retrocesso que estamos vivendo quanto aos sistemas e órgãos de controle. O Brasil caiu no ranking mundial sobre combate à corrupção de 20214. Aliás, importante ficar claro que o crime de lavagem por um agente público tem nítida correspondência com a corrupção e é dela indistinguível. Péssimo cenário para nosso País e para nossas empresas em suas captações de recursos e relações no mercado internacional. O setor imobiliário tampouco está imune a esse contexto. 

Ao contrário do que se imagina, esse momento de (aparente) “escuridão” em que se encontram os órgãos de fiscalização e investigação não se refletiu em mudanças legais quanto à potencial criminalização dos atos. Apenas criou um panorama de insegurança jurídica para todos os agentes econômicos que trabalham licitamente. A cortina de fumaça ou o apagar das luzes produzem, a um só tempo, mais liberdade para os criminosos (produtores ou lavadores de dinheiro) e mais riscos para os agentes econômicos honestos. A obrigação de informar não é ruim; ao contrário, é a forma de diferenciar honestos de desonestos. Ruim é ser confundido com o desonesto graças à sombra que beneficia o crime. 

Está aí, portanto, um desafio para o novo governo. É altamente recomendável e necessária uma rápida e objetiva reorganização das instituições, restabelecendo as regras e os sistemas de controles e posicionando-os, no mínimo, nos patamares anteriores ao desmonte. Da mesma forma, é preciso conduzir aos respectivos cargos pessoas técnica e moralmente comprometidas com o efetivo combate às diversas formas de crime estimuladas pela metodologia de ocultação aqui descrita. Tal qual na área ambiental, também nesta é fundamental que o Brasil volte a se alinhar com as boas práticas e as exigências dos organismos internacionais. Afastemos a pecha de pária que atualmente nos macula e espanta os investidores sérios. 

*Maurício Zanoide de Moraes é professor titular de direito processual penal da Faculdade de Direito da USP e sócio fundador de Zanoide, Braun & Castilho Advogados; Alexandre Tadeu Navarro P. Gonçalves é sócio fundador da Navarro Advogados.  

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