Desde março de 2014, mês e ano de nascimento da Operação Lava Jato, a sociedade brasileira se vê às voltas com uma enxurrada praticamente ininterrupta de acordos, delações e prisões de antes poderosos políticos e empresários. O marco temporal merece mesmo destaque, até porque não é comum, no mundo, que operações desse tipo resultem em prisões de dois ex-comandantes da nação — no caso brasileiro, Luiz Inácio Lula da Silva (condenado em segunda instância e detido em regime fechado há um ano) e Michel Temer (preso preventivamente por quatro dias).
Dedicada a investigar superfaturamento de contratos em obras públicas e pagamento de propinas a agentes do Estado, a Lava Jato avança de forma tão acelerada e complexa que é difícil, até para os mais atentos, acompanhar todos os seus desdobramentos. Hoje já está em sua 60ª fase. Nesses cinco anos, as diligências da Polícia Federal e as atuações do Ministério Público e do Judiciário causaram um terremoto nas empresas em geral (obrigadas a incrementar as áreas de conformidade) e no setor de infraestrutura em particular. Na prática, a combinação da Lava Jato com uma recessão inédita paralisou os projetos, congelando investimentos e obras. Somente no primeiro ano da operação, os impactos diretos e indiretos da Lava Jato corroeram em 2,5% o PIB, segundo um estudo da GO Associados.
Para fazer um balanço desses cinco anos da mais afamada operação da Polícia Federal, a CAPITAL ABERTO conversou com Adriana Marques, sócia da BF Capital; Bruno Werneck, sócio do escritório Tauil & Chequer; Jason Vieira, economista-chefe da Infinity Asset; e Victor Rufino, sócio do escritório Mudrovitsch e ex-procurador-geral do Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade). A seguir, os principais trechos do encontro.
CAPITAL ABERTO: De maneira geral, qual é o balanço desses cinco anos de Operação Lava Jato?
Victor Rufino: A Lava Jato estruturou de forma significativa os órgãos de combate aos ilícitos de colarinho branco no Brasil. Sua popularidade vem do fato de as pessoas reconhecerem que, ao longo do tempo, sempre houve graves problemas de conformidade na maneira como as grandes empresas se relacionavam com o Estado brasileiro. A operação representou uma grande catarse e inovou com o uso de modernos mecanismos de combate a ilícitos e de acordos [de delação premiada]. Mas a Lava Jato ainda tem questões para resolver. O setor de infraestrutura está penando muito, mais do que se imaginava quando os acordos começaram a ser fechados, em 2015. O grande debate é como separar o lado positivo do negativo, aperfeiçoando os mecanismos.
Bruno Werneck: A Lava Jato mostrou a grande promiscuidade existente entre os setores público e privado. É inegável seu efeito destruidor sobre o setor de infraestrutura e a cadeia de produção. Ao mesmo tempo, a operação gerou efeitos benéficos, representados pela tentativa de se criar um ambiente mais sério de negócios no País. Só vejo com preocupação uma possível involução daqui para a frente, pois já pagamos um preço muito alto pela Lava Jato [OAS, Mendes Júnior, Galvão Engenharia, UTC, Sete Brasil, Lupatech e Grupo Ecovix entraram em recuperação judicial e o Grupo Schahin faliu]. Em contrapartida, quando falamos de alguns projetos no âmbito de estados e municípios, por exemplo, às vezes parece que nem houve Lava Jato.
Adriana Marques: A operação deu um sinal positivo à sociedade e aos investidores de que o relacionamento entre as empresas e governo precisa ocorrer com mais seriedade. Dentro das estruturas financeiras, definitivamente, gerou uma catalepsia nos bancos. As construtoras e a Petrobras, que estavam na vitrine, foram as primeiras atingidas. Depois, todo o universo de empresas no entorno delas foi afetado. Elas concentravam os recebíveis das construtoras e da Petrobras e agonizaram, dando início a uma indústria da recuperação judicial. Era mais fácil partir para uma recuperação judicial do que tentar uma negociação amigável com os bancos. Esse sim foi um desdobramento negativo da Lava Jato.
Jason Vieira: As empresas envolvidas na Lava Jato sempre praticaram atos de corrupção. Só que os ilícitos eram de um nível menor. O que aconteceu foi que, a partir de 2006, a quantidade de recursos nas mãos do governo se multiplicou, por causa do pré-sal e de muitos outros projetos que se avolumaram. Era muito dinheiro girando, num volume nunca antes visto. No meio de tudo isso, os donos das grandes empresas aproveitaram para fazer o jogo do poder. A Lava Jato foi benéfica porque tirou a impressão equivocada de que o crime do colarinho branco era menos ofensivo. Definitivamente, ele não é, uma vez que reduz os recursos que o Estado tem para atender as necessidades básicas da população.
CA: Já é perceptível uma mudança na forma de se fazer negócios no País?
Marques: Acredito que sim. Existe uma mudança, não só por causa da Lava Jato, mas também por toda a movimentação política e econômica em torno do novo governo. O primeiro trimestre de 2019 foi um dos mais agitados dos últimos anos. Investidores querem ampliar sua presença no mercado nacional ou ingressar no Brasil. A vontade de diminuir o tamanho do Estado [manifestada pelo ministro da Economia, Paulo Guedes] é uma sinalização importante para os investidores.
Werneck: O modelo de Estado grande definitivamente não funciona. Temos falado apenas das perdas com a corrupção, mas se calcularmos também os prejuízos com a ineficiência os gastos são ainda maiores. Precisamos ter uma agenda obsessiva de redução do tamanho do Estado.
Rufino: Já vemos a retomada das licitações, com o governo lançando um robusto plano de concessões. A questão é ficarmos atentos a como as empresas que assumirão esses projetos irão se comportar.
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CA: Em que medida Sérgio Moro no comando do Ministério da Justiça ajuda no avanço da Lava Jato?
Rufino: No plano simbólico é importante, mas o que interessa é que ocorra um esforço legislativo para a construção de um pacote, seja do Moro ou do Alexandre de Moraes [ministro da Justiça no governo Temer e hoje ministro do Supremo Tribunal Federal]. Precisamos abandonar certas noções de presunção de inocência e evitar que provas sejam enfraquecidas ao longo do caminho. É necessário um balanceamento entre as garantias dos pontos de vista jurídico e processual, mas sem que isso se torne um escudo para ilícitos. Também temos que caminhar para uma estrutura em que os acordos de leniência sejam respeitados e evitar a recorrência dos ilícitos. Muitos dos envolvidos na Lava Jato já tinham aparecido em outros esquemas antes.
Werneck: O Brasil tem uma tradição jurídica muito formalista, o que leva os envolvidos em irregularidades a escapar de efetivas condenações. Há uma série de casos, de várias operações, em que as provas foram invalidadas no Supremo Tribunal Federal por meros detalhes. Acho que uma visão formalista nesse contexto é muito negativa. A substância deveria prevalecer sobre a forma.
Rufino: O que o pacote anticorrupção [em tramitação no Congresso] precisa é encontrar uma estabilidade para os processos, de forma a garantir início, meio e fim. As legislações [leis 12.846 e 12.850] que justificaram a Lava Jato são de 2013 e a operação começou em 2014, então há pontos que precisam ser revistos. Há um sistema “U”: TCU, AGU e CGU, além do Ministério Público, que não é só um. O Brasil precisa encontrar um órgão de controle forte, que não sofra interferência de cima para baixo. A competição entre os órgãos é importante, mas a partir do momento em que um deles encontra o ilícito deve conduzir o processo. Atualmente há uma competição para ver quem arranca o maior pedaço do “corpo”. Esse problema precisa ser resolvido, já que o Congresso está aberto à discussão do pacote. Hoje, se eu quiser explicar a um estrangeiro, por exemplo, os caminhos disponíveis para a leniência e quais são as garantias será uma tarefa praticamente impossível. Explicar o papel de cada órgão, que tipo de penalidades pode sofrer…
CA: A partir do processo de capitalização da Petrobras, em 2010, se criou uma grande euforia em torno do desenvolvimento da indústria naval brasileira, com a constituição, por exemplo, da Sete Brasil, empresa investigada por corrupção na Lava Jato. Esse modelo naufragou pela corrupção ou era de fato inviável?
Vieira: A corrupção foi um problema, mas a história que foi vendida também não era tudo aquilo. O desenvolvimento do setor dependia do processo de exploração do pré-sal e os primeiros resultados foram decepcionantes. E nem a política de conteúdo nacional foi capaz de impedir o naufrágio do setor — as empresas locais do setor naval não tinham expertise suficiente para fornecer na quantidade e na qualidade necessárias para a Petrobras. Ou seja, o modelo tinha uma casca bonita que escondia graves problemas. A política de conteúdo nacional foi um erro.
CA: Vocês concordam que o modelo de reserva de mercado foi um equívoco?
Vieira: Como forma de desenvolvimento se mostrou falho no passado, com a reserva de para bens de informática, nos anos 1980, e agora com a Petrobras. Deixamos de extrair [do pré-sal] de forma mais rápida e eficiente por causa dessa modelagem.
Marques: Sem querer fazer apologia política, acredito que o conteúdo local era uma forma de fomentar a empregabilidade, ainda mais numa indústria intensiva em mão de obra qualificada como a naval, em que um soldador pode receber um salário equivalente ao de um engenheiro recém-formado. Na China, por exemplo, existem estaleiros fantásticos, mesmo que amparados por subsídios do governo. Mas por aqui temos o problema da competitividade, pela pesada carga tributária, além do problema da corrupção. Não sei se foi uma ingenuidade a questão do conteúdo local, mas o que a Sete Brasil almejava era impraticável: pretendia ter mais sondas operando do que uma empresa do porte de uma Transocean [líder global em perfuração offshore].
CA: A Lava Jato gerou uma mudança de fato no comportamento das empresas?
Marques: Vejo o mercado ainda muito desconfiado nesse sentido. A corrupção é endêmica no Brasil, e meu medo é que tenhamos que conviver eternamente num processo de Lava Jato. A insegurança gerada pela operação prejudica os investimentos, uma vez que o investidor precisa de tranquilidade para aplicar seu capital. Me parece que há uma maior preocupação entre as empresas com a governança e o compliance, mas ainda sinto falta da criação de mecanismos realmente efetivos. As empresas precisam se preocupar mais com esse aspecto, pois os danos provocados pelo envolvimento com corrupção são imensos. Empresas investigadas pela Lava Jato, que tinham relacionamento com o governo, passaram a encontrar problemas na obtenção de crédito e na venda de seus ativos. Mesmo que tivessem um excelente faturamento, baixo endividamento e uma alta margem Ebitda, criou-se uma barreira ao recebimento de propostas.
Vieira: As empresas precisam fortalecer seu compliance. Há mudanças ocorrendo, mas os mecanismos de controle precisam ser mais ativos e respeitados. É como no caso da sustentabilidade. Ter só por ter não basta.
Lava Jato em números
Em cinco anos de operação foram deflagradas, somente no Paraná, 60 fases, em que foram oferecidas 91 acusações criminais contra 426 pessoas. Em 50 processos já houve sentença, totalizando 242 condenações contra 155 pessoas. Até o momento, a soma das penas atinge 2.242 anos e 5 dias.
Foram impetradas 10 ações de improbidade administrativa contra 63 pessoas físicas, 18 empresas e 3 partidos políticos (PP, MDB e PSB), pedindo o pagamento de R$ 18,3 bilhões. Além disso, foram celebrados 12 acordos de leniência, 1 Termo de Ajustamento de Conduta (TAC), e 183 acordos de colaboração com pessoas físicas (acordos celebrados pela força tarefa em Curitiba e pelo grupo de trabalho da Procuradoria Geral da República). São alvo de recuperação por meio das leniências, acordos e TAC, 13 bilhões de reais.
O volume de informações e apurações em andamento na operação é outro destaque. De 2014 até 2018, a média anual de trabalho da força-tarefa cresceu 623,60%, passando de 4.978 para 36.021 atos no ano passado.
Fonte: Ministério Público Federal no Paraná
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