Este artigo visa a apresentar, de maneira sucinta, o arcabouço regulatório recentemente submetido a consulta pública pela diretoria colegiada do Banco Central do Brasil (“BCB”) acerca da recuperação e resolução de instituições financeiras, contextualizando-o no cenário regulatório internacional.
Introdução
Instituições financeiras são essenciais em qualquer sociedade moderna, não somente para o fomento de atividades produtivas via concessão de crédito, mas também pela sua relevante participação nos sistemas de pagamentos das diversas jurisdições, operacionalizando milhões de transações financeiras entre diversos agentes econômicos.[1] Referidas instituições, no entanto, possuem características peculiares que geram potencial de aumentar sua suscetibilidade a crises e eventos de estresse financeiro.[2]
Mas não é só. Além da essencialidade das atividades desempenhadas pelas instituições financeiras, outro aspecto importante é a interconectividade que caracteriza o mercado bancário e as instituições que dele participam (seja, por exemplo, em virtude de operações interbancárias ou exposições em comum), a qual potencializa o risco de uma crise financeira decorrente da quebra de uma instituição financeira, não somente dentro do mercado financeiro per se mas também na economia real, seja pela diminuição de crédito disponível no mercado, pelo eventual prejuízo a depositantes e/ou pelos impactos em transações de pagamento.
Dessa forma, um regime específico e adequado para versar sobre a recuperação e a resolução de instituições financeiras se mostra um tema relevante. Não obstante, até 2008, via de regra, países não possuíam um regramento específico (lex specialis) para lidar com crises bancárias[3] [4].
A crise financeira global de 2008 e as medidas de salvaguarda de instituições financeiras com utilização de recursos públicos (bail-outs) adotadas nos Estados Unidos, União Europeia e Reino Unido fomentaram rediscussões acerca da importância de criação de normas específicas, o que culminou com a edição, dentre outras, do Banking Act 2009 no Reino Unido, do Dodd-Frank Act em 2010 nos Estados Unidos, da European Bank Recovery and Resolution Directive – BRRD, em 2014 e, especialmente relevante para o presente artigo, dos Key Attributes of Effective Resolution Regimes for Financial Institutions, editados pelo Conselho de Estabilidade Financeira (Financial Stability Board – FSB), no ano de 2011 (“KA”).
Os KA estabeleceram regras a serem adotadas pelas diferentes jurisdições no estabelecimento de um regime de resolução bancária efetivo, pautado na ausência de disrupções sistêmicas severas e/ou a utilização de recursos públicos, no asseguramento e na manutenção de funções críticas da instituição a ser resolvida e, ainda, na imposição da absorção de perdas por acionistas e credores, de acordo com a ordem hierárquica de seus créditos.[5] [6]
Mais especificamente, o item 11 dos KA versa sobre o planejamento de recuperação e resolução de instituições financeiras. É nesse contexto que se insere o edital em epígrafe, o qual sugere a edição de duas normas, uma resolução CMN e uma resolução BCB, as quais passamos a sucintamente analisar abaixo.
Proposta de Resolução CMN
Definições Preliminares e Perímetro Regulatório
Em primeiro lugar, a minuta de resolução traça distinção clara entre a recuperação, que envolve as medidas adotadas em resposta a situações adversas com o objetivo de preservar a viabilidade da instituição, mediante o restabelecimento de níveis adequados de capital e liquidez[7], e a resolução, que se refere ao conjunto de medidas adotadas ou determinadas pelo BCB no caso de inviabilidade[8] da instituição, com o objetivo de mitigar danos à estabilidade do SFN, do SPB ou à economia real em decorrência da descontinuidade[9] (ou seja, mitigar repercussões externas adversas, conforme anteriormente explicado).
Logo, ao abranger tanto a recuperação como a resolução, a proposta de resolução amplia o escopo atualmente existente da Resolução CMN nº 4.502/16, que versa sobre os requisitos aplicáveis à elaboração e execução de planos de recuperação por instituições financeiras (e que será revogada caso a proposta de resolução CMN seja aprovada).
A regra, caso editada, estabelece que todas as instituições integrantes do Segmento 1 (S1)[10] devem implementar tanto o planejamento da recuperação e da resolução (PRR) quanto elaborar e enviar ao BCB o denominado Plano de Recuperação e de Saída Organizada (PRSO) (cujo conteúdo, elaboração e remessa são objeto da proposta de Resolução BCB abaixo analisada). Tanto o referido planejamento, quanto o PRSO, devem abranger todas as entidades participantes do respectivo conglomerado prudencial e/ou aquelas que, integrando grupo econômico da instituição financeira, desempenhem linhas de negócios principais, serviços essenciais, funções críticas ou serviços críticos (conforme termos definidos na minuta).[11]
Importante ressaltar também a competência expressamente atribuída ao BCB para exigir, no todo ou em parte, o PRR e/ou a elaboração do PRSO por outras instituições que não aquelas integrantes do S1, caso o regulador entenda que desempenhem funções críticas[12], i.e., atividades executadas por um conglomerado prudencial ou por uma entidade, para terceiros, cuja descontinuidade possa comprometer a estabilidade do SFN, do SPB ou da economia real, devido à dimensão de sua participação na oferta de mercado, às suas interconexões, à sua complexidade ou a outras situações que as impeçam de ser imediatamente substituídas pelo mercado.[13]
Assim, a manutenção de funções críticas é pedra angular da minuta de resolução proposta, em linha com os KA.
Estrutura de Suporte ao PRR: Sistemas de Informações Gerenciais e Programa de Monitoramento
Em resumo, a minuta exige que as instituições a ela sujeitas implementem estrutura de suporte para fins da implementação do PRR, incluindo sistemas de informações gerenciais que sejam capazes de prover informações precisas e de forma tempestiva essenciais para a implementação do PRSO, incluindo, no mínimo: (i) o valuation de unidades de negócio e entidades relevantes cuja alienação (ou transferência parcial de ativos e passivos) tenha sido incluída no PRSO[14]; e (b) a identificação de interconexões operacionais e financeiras entre as entidades do conglomerado prudencial (e.g., operações entre partes relacionadas, compartilhamento de serviços, de pessoal e/ou de infraestrutura etc.).[15]
Adicionalmente, a norma também exige que seja mantido um programa de monitoramento que inclua, pelo menos, indicadores e informações (qualitativas e quantitativas) que: (i) permitam o adequado monitoramento dos riscos incorridos pela instituição; (ii) reflitam a magnitude e a velocidade de mudança da situação econômico-financeira e de liquidez da instituição; (iii) permitam a adoção tempestiva das estratégias de recuperação e de resolução; (iv) considerem o horizonte necessário para que as estratégias de recuperação e de resolução produzam efeitos; e (v) considerem o modelo de negócio, a natureza, a complexidade e o perfil de risco de cada entidade que integra o conglomerado prudencial.[16]
O PRR
A minuta prevê, em detalhes, o regramento aplicável ao PRR, que deverá compreender, em síntese:
- a previsão de cenários de estresse que sejam abrangentes, contemplem eventos que possam ameaçar a continuidade dos negócios/viabilidade da instituição e que se mostrem relevantes para testar a viabilidade e eficácia das estratégias de recuperação e resolução[17];
- a definição de estratégias de recuperação, com o objetivo de preservar a viabilidade da instituição, contendo a avaliação, no mínimo, das seguintes estratégias: (a) fortalecimento da situação de capital e liquidez, (b) alienação de ativos, (c) refinanciamento de dívidas, (d) reestruturação de passivos, (e) acesso a suporte financeiro ofertado por entidades do mesmo grupo econômico, conforme aplicável, (f) acesso a linhas de assistência financeira de liquidez (e.g., atuação do BCB como lender of last resort)[18]; (g) mudanças nas estruturas societária ou organizacional, na estratégia de atuação ou no modelo de negócios da instituição;[19]
- a definição de estratégias de resolução, com o objetivo de garantir a continuidade operacional das funções críticas da instituição (conforme definição acima), incluindo, no mínimo, a análise das seguintes medidas e sua adoção (antes ou durante a resolução), juntamente com a indicação da alternativa preferencial escolhida pela instituição: (a) capitalização, (b) transferência de controle, (c) transferência de ativos e passivos, (d) reorganização societária, e (e) desapropriação;[20] e
- a realização contínua de autoavaliação de capacidade de recuperação e resolubilidade, incluindo certas dimensões obrigatórias, como, por exemplo, a continuidade operacional das funções críticas.
Um aspecto relevante previsto na minuta é o da continuidade de funções críticas desempenhadas por todos os integrantes do respectivo conglomerado prudencial, razão pela qual a minuta exige que a instituição em questão seja capaz de assegurar, nos casos de recuperação ou resolução, a continuidade de serviços críticos, i.e., serviço prestado para uma unidade de negócio ou entidade do conglomerado prudencial cuja paralisação causaria a impossibilidade de execução de funções críticas[21].
Para tanto, a minuta impõe que: (i) acordos de nível de serviço relativos a serviços críticos contenham disposição contratual exigindo a continuidade dos serviços, inclusive após a decretação do respectivo regime de resolução; (ii) os contratos com prestadores de serviços críticos contenham disposições contratuais que (a) impeçam a rescisão por decretação de regimes de resolução, e (b) facilitem a transferência do contrato e a continuidade da prestação do serviço, por prazo não inferior a 12 (doze) meses, para uma instituição de transição ou adquirente definitivo; e (iii) instituições que sejam participantes de arranjos de pagamento mantenham, junto aos respectivos instituidores, mecanismos para que, a qualquer tempo, suas atividades possam ser transferidas (para uma instituição de transição ou adquirente definitivo) em caso de impossibilidade de continuidade na entidade original.
Governança e PRSO
Com relação à governança, de maneira geral, a proposta mantém os requisitos impostos ao conselho de administração e diretoria, com base no quanto já atualmente previsto na Resolução nº 4.502/16, ampliando-os para abarcar também as estratégias de resolução.[22]
Cabe também ressaltar a exigência de nomeação de diretor responsável pelo cumprimento da resolução.[23]
Já o PRSO tem seu conteúdo mínimo expressamente determinado, qual seja: (i) perfil organizacional; (ii) estrutura de suporte; (iii) governança do processo de recuperação e de resolução; (iv) estratégias de recuperação e de resolução; (v) autoavaliação da capacidade de recuperação e da resolubilidade; (vi) plano de ação para eliminação ou mitigação das barreiras e riscos à recuperação e à resolução; (vii) plano de comunicação; e (viii) outras informações exigidas pelo BCB.[24]
Por fim, cabe mencionar que: (i) o conteúdo do PRSO não vincula o BCB no contexto da decretação do regime de resolução[25]; (ii) a implementação do PRSO não impede a adoção de medidas prudenciais preventivas pelo BCB, nos termos da Resolução nº 4.019/11[26]; e (iii) as instituições deverão disponibilizar um resumo do PRSO em seção específica dos seus websites.[27]
Proposta de Resolução BCB
A minuta de resolução BCB sugerida, em síntese, contém o detalhamento dos elementos obrigatórios que devem ser considerados no âmbito de cada um dos itens que o PRSO deve minimamente conter, incluindo com relação ao ponto de entrada da resolução, tema que foi objeto de relevante análise entre acadêmicos, reguladores e entidades internacionais como o FSB, notadamente no contexto do planejamento de resoluções transfronteiriças de entidades consideradas sistemicamente relevantes a nível mundial (em inglês, global systemically important financial institutions – G-SIFIs), i.e., ponto de entrada único (single point of entry – SPE), no qual as medidas relativas à resolução são aplicadas na entidade controladora final do grupo financeiro, ou ponto de entrada múltiplo (multiple point of entry – MPE), caso em que a resolução é aplicada a diversas instituições do grupo[28].
A minuta estabelece ainda, entre outros requisitos, que o PRSO deve ser elaborado bienalmente conforme modelos do BCB, com data-base em 31 de janeiro, devendo ser remetido ao BCB até 30 de junho do ano subsequente (ao da data base).[29]
Em conclusão, a publicação do edital em epígrafe demonstra a preocupação do BCB em alinhar as normas do arcabouço regulatório brasileiro às melhores práticas internacionalmente adotadas e, em que pese ser passível, a nosso ver, de algumas sugestões de melhorias, ela certamente se caracteriza como um avanço importante para o aprimoramento das regras brasileiras de recuperação e resolução de instituições bancárias.
Por fim, vale mencionar que o prazo para envio de sugestões às minutas divulgadas pelo BCB foi prorrogado até o dia 22 de abril de 2024.[30]
[1] Impossível não relembrar, não obstante, o papel fundamental e a verdadeira revolução que as instituições de pagamento impulsionaram no passado recente, notadamente no mercado brasileiro.
[2] Apesar de não ser o foco do presente artigo, mencionamos, a título exemplificativo, a adoção do modelo de fractional reserve banking e os desenquadramentos de vencimento e liquidez (maturity and liquidity mismatches), com o consequente exemplo clássico das corridas bancárias.
[3] Chiu, Iris e Wilson, Joanna. Banking Law and Regulation, Oxford University Press, 2019, p. 603.
[4] O Brasil, com seus regimes de resolução positivados pela Lei n°6.024, de 13 de março de 1974 e posteriormente pelo Decreto-Lei nº 2.321, de 25 de fevereiro de 1987, é uma exceção merecedora de nota.
[5] KA, p. 3 (https://www.fsb.org/wp-content/uploads/r_141015.pdf)
[6] Referida absorção de perdas por acionistas e credores é denominada bail-in (em oposição a bail-outs) e constituiu uma inovação bastante discutida na academia e mercado financeiro ao redor do mundo após a crise financeira global de 2008.
[7] Art. 4º, inciso I.
[8] A minuta define expressamente inviabilidade, incluindo, entre outras hipóteses, a insolvência, iliquidez e/ou a inobservância de regras prudenciais (art. 4º, inciso III).
[9] Art. 4º, inciso II.
[10] A Resolução CMN nº 4.553, de 30 de janeiro de 2017, classifica, com base no seu porte, as instituições financeiras e demais entidades autorizadas a operar pelo BCB em 5 (cinco) segmentos distintos para fins de aplicação proporcional da regulação prudencial, sendo aquelas integrantes do S1 as instituições com porte igual ou superior a 10% (dez por cento) do produto interno bruto (PIB) do Brasil.
[11] Art. 2º.
[12] Art. 3º.
[13] Art. 4º, inciso VII.
[14] O racional dessa exigência é o de que, no caso de resolução da instituição, a disponibilidade de informações atualizadas contribua para a maior celeridade do processo de alienação/transferência parcial da respectiva unidade de negócios ou entidade relevante.
[15] Art. 6.
[16] Art. 7º.
[17] Art. 9º.
[18] Vide Resolução BCB nº 110, de 1º de julho de 2021, que institui as linhas financeiras de liquidez (LFL) do BCB.
[19] Art. 11.
[20] Art. 13.
[21] Art. 14.
[22] Vide Edital, p. 6.
[23] Art. 26.
[24] Art. 20.
[25] Art. 21, §2º
[26] Art. 21, §1º.
[27] Art. 22.
[28] Nesse sentido, vide FSB, Recovery and Resolution Planning for Systemically Important Financial Institutions: Guidance on Developing Effective Resolution Strategies, 2013, disponível em (https://www.fsb.org/wp-content/uploads/r_130716b.pdf), pp. 12-13.
[29] Art. 10, incisos I, II e III.
[30] Vide Edital de Consulta Pública nº 99, de 6 de março de 2024.
Para continuar lendo, cadastre-se!
E ganhe acesso gratuito
a 3 conteúdos mensalmente.
Ou assine a partir de R$ 34,40/mês!
Você terá acesso permanente
e ilimitado ao portal, além de descontos
especiais em cursos e webinars.
User Login!
Você atingiu o limite de {{limit_online}} matérias gratuitas por mês.
Faça agora uma assinatura e tenha acesso ao melhor conteúdo sobre mercado de capitais
Ja é assinante? Clique aqui