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Um furacão chamado MiFID II
Em vigor desde janeiro, diretriz da União Europeia gera mudanças profundas no setor de análise
Um furacão chamado MiFID II

Ilustração: Rodrigo Auada

A norma é praticamente recém-nascida, mas já chegou como um furacão. Em vigor desde janeiro deste ano, a MiFID II — sigla, em inglês, para a segunda diretiva da União Europeia para instrumentos financeiros — provoca transformações significativas na dinâmica do trabalho de análise de empresas listadas. A nova regra proíbe uma prática antiga: a distribuição gratuita a clientes de relatórios sobre companhias feitos por profissionais de bancos e corretoras (sell side), em troca da utilização de serviços de corretagem de títulos e valores, como numa venda casada. Os clientes terão que pagar pelas avaliações, e a esses agentes de sell side restará cobrar pelo serviço, encarando a concorrência de casas independentes de análise. O objetivo da norma é intensificar a transparência das informações e evitar conflitos de interesses.

A MiFID II reforça as transformações pelas quais o sell side vem passando nos últimos anos. Quando a diretiva foi aprovada pelo Parlamento Europeu, em 2014, os valores empenhados por bancos de investimento no trabalho de análise já vinham caindo na Europa desde a crise financeira de 2008 — tendência que se aprofundou a partir de então. Entre 2009 e 2017, os orçamentos de bancos de investimento para análise na Europa caíram cerca de 60%, de 8 bilhões de dólares para pouco mais de 3 bilhões de dólares, de acordo com levantamento da britânica Frost Consulting. Meses antes de a diretiva começar a vigorar, um estudo feito com 88 investidores institucionais baseados na Europa e nos Estados Unidos, conduzido pela consultoria em inteligência de mercado americana Greenwich Associates, mostrou que, entre os 39 europeus respondentes, o orçamento previsto com research cairia cerca de 20% ano a ano — o que corresponderia a uma redução de cerca de 300 milhões de dólares gastos nessa área em 2018.

O enxugamento ocorre simultaneamente à queda nas comissões pagas pelos clientes aos bancos de investimento e corretoras por causa da MiFID II — sem poder oferecer o research como um “bônus”, esses agentes tiveram que diminuir os valores cobrados pelos serviços de corretagem. E, para piorar, não tem sido fácil atribuir um preço aos relatórios que agrade o investidor. “Como esse serviço não era pago separadamente, é difícil estipular um valor justo que os clientes considerem pagar”, observa Emerson Leite, diretor de renda variável do Credit Suisse para a América Latina. De acordo com dados da consultoria ITG, que analisou as negociações de 172 assets globais, as comissões pagas para as corretoras de todos os portes caíram 28% no Reino Unido e 30% no restante da Europa no primeiro trimestre deste ano em relação a igual período de 2017. Fatalmente, o impacto é mais agudo para as corretoras menores. A tendência é de que, ao longo dos próximos anos, corretoras de pequeno e médio portes se fundam ou sejam adquiridas por instituições maiores, em um movimento de consolidação de mercado.


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Nos bancos de investimento, o impacto é sentido sobretudo pelos analistas — menos requisitados, eles estão migrando para outros setores ou trabalhando com análise fora de instituições financeiras. O número de analistas atuando nos 12 maiores bancos de investimento do mundo caiu de 6.632 em 2012 para 5.981 em 2016, até chegar ao patamar de cerca de 5,6 mil profissionais no ano passado, verificou a firma de análise de dados Coalition, baseada em Londres. “Costumava ser bastante comum que os profissionais mais jovens entrassem nesse mercado pelos bancos de investimento, mas essas oportunidades devem diminuir cada vez mais”, avalia Sonia Villalobos, membro do conselho da CFA Society Brazil.

Já faz algum tempo que o sell side perde prestígio. As dúvidas em torno de sua pertinência remontam ao início da década passada, quando estourou a bolha das pontocom. Não faltaram na época insinuações de que relatórios enviesados haviam servido de instrumento para bancos de investimento turbinarem seus negócios. Na década seguinte, um novo baque veio com a crise financeira: na tentativa de cortar despesas, os bancos enxugaram seus departamentos de research, considerando que estes não têm relevante contribuição para o lucro. “Já é visível a piora da qualidade dos relatórios de análise. Dificilmente se encontra informações distintas quando se compara o que duas instituições diferentes produziram sobre uma mesma companhia. Isso é sentido inclusive no Brasil”, comenta Luis Fernando Moran, consultor de relações com investidores.

Desafio para as assets

Com o fim da mamata dos relatórios gratuitos, grande parte das gestoras de recursos e dos fundos de investimentos sediados na Europa está optando por incorporar essa despesa, evitando repassá-la aos investidores. Às vésperas de a MiFID II entrar em vigor, o CFA Institute fez um levantamento com uma amostra de 365 profissionais de fundos e assets europeias. Entre os entrevistados, 53% afirmaram que a firma a que eram ligados assumiria os custos com análise, enquanto uma parcela de 15% disse que a empresa os transferiria integralmente aos cotistas. Uma fatia de 21% dos respondentes informou que suas instituições ainda não tinham resolvido o que fazer.

A decisão, de fato, não é simples, já que novos custos não costumam ser aceitos com tranquilidade pelos investidores, como pôde perceber a asset global Fidelity. Em dezembro passado, a gestora de recursos, que tinha 2,25 bilhões de dólares sob gestão na época, anunciou que repassaria a seus clientes os custos com pesquisa e análise — o equivalente a 42 milhões de dólares ou a 0,0228% dos 185 bilhões de dólares das carteiras de seus fundos de ações. Dois meses depois voltou atrás, decidindo tirar do próprio bolso o valor. Para o balanço dos fundos, a decisão deve ser positiva, segundo um levantamento da Frost Consulting divulgado pelo jornal Financial Times em setembro deste ano. O trabalho concluiu que, em um universo de cerca de 3 mil fundos e 350 gestoras de recursos espalhados pelo mundo, as firmas que repassam os custos aos cotistas costumam gastar mais dinheiro — isso porque elas acabam não sendo tão criteriosas com a escolha dos relatórios que vão comprar. Fundos que investem em mercados emergentes e transferem o pagamento aos clientes estão gastando, em média, 7,5 vezes mais do que os que arcam com essa despesa.

Mas não são só as assets que estão tendo que aprender a lidar com os impactos da MiFID II. As empresas também. Algumas perderam cobertura dos bancos, o que era esperado nesse cenário. Afinal, com os relatórios pagos, os analistas das instituições financeiras estão dedicando seu tempo apenas às empresas cujos relatórios têm mais procura — no caso, as blue chips. Importante observar que como os bancos globais costumam adotar a mesma estratégia nos vários mercados onde atuam, os impactos da MiFID II já extrapolam o território europeu, conforme mostra uma pesquisa da Australasian Investor Relations Association (Aira) feita neste ano com 54 companhias da região da Ásia e do Pacífico. De acordo com o levantamento da Aira, 40% das empresas entrevistadas disseram ter menos analistas externos cobrindo seus negócios atualmente em comparação com o período de 6 a 18 meses anteriores.

Outro dado revelador: 47% afirmaram que a qualidade do trabalho de research feito pelos bancos piorou. Uma possível explicação seria a migração dos analistas experientes dessas instituições para casas de análise independentes. O perigo dessa situação é o investidor municiado por bancos não ter informação de qualidade para embasar suas decisões. Não à toa, 54% das companhias pesquisadas pela Aira concordam que precisam aprimorar a forma como se engajam com os investidores e se comunicam. “Os departamentos de RI terão que se aproximar mais dos investidores, e não esperar que oportunidades de negócio sejam alavancadas pelos analistas dos bancos e corretoras, que costumavam fazer um intenso trabalho nesse sentido”, ressalta o consultor Moran.

No Brasil, ainda não há consenso sobre as repercussões da norma. Sócio da consultoria MZ Group, Rafael Rosenberg conta que, ao conversar com profissionais de RI de companhias nacionais dos mais variados setores e diferentes níveis de capitalização de mercado, ouviu relatos diversos. “Alguns disseram que sentiram pouca ou nenhuma diferença no comportamento dos analistas e investidores europeus; outros já têm sentido maior demanda por parte das assets por calls e reuniões”, escreveu Rosenberg, em artigo publicado no site da MZ. “Um dos RIs relatou que os roadshows na Europa, agora restritos, já não conseguem preencher por completo a sua agenda”.

Investidores exigentes

Diante de uma possível deterioração na qualidade do trabalho de análise feito pelos bancos de investimento, um caminho que deve ser trilhado pelo buy side — como também é conhecida a análise feita por quem compra, ou seja, as assets e os fundos — é justamente buscar outras fontes de informação. Na pesquisa do CFA com gestores de recursos, 44% dos respondentes disseram que devem requisitar mais o trabalho de casas de análise independentes. “O efeito imediato da MiFID II é uma redução de demanda. Mas, a longo prazo, com a maior seletividade das assets, a tendência é de que os relatórios ganhem qualidade, para atender aos investidores mais exigentes”, destaca Leite, do Credit Suisse.

Nesse cenário, casas de análises concentradas em determinados nichos e que façam uma cobertura especializada podem se destacar. A tecnologia também abre espaço para que analistas — muitos deles autônomos — exibam seu trabalho nos chamados Online Research Marketplaces (ORMs). Os sites são plataformas que agregam relatórios de analistas e podem representar um terço da carteira de análises até 2025 — o que representa 2,4 bilhões de dólares, conforme estimativa da Quinlan & Associates. “O mercado exige transparência, e também maior pluralidade de perspectivas. Com mais diversidade, surgem análises melhores”, diz Roberto Attuch, CEO da plataforma brasileira Investmind, que começou a operar recentemente e oferece relatórios de análise produzidos por profissionais selecionados, com a possibilidade de serviços customizados. A demanda diminuiu, mas a exigência dos investidores por boas interpretações dos resultados e dos prognósticos das empresas, não. A ruptura chegou aos negócios de research e, como vem sendo habitual na economia guiada pela tecnologia, eles terão de se reinventar.


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