Que as epidemias ao longo dos séculos de civilização sempre tiveram força para disparar ou intensificar transformações pouco se discute. Do ponto de vista histórico, no entanto, nem todas tiveram peso suficiente para demolir estruturas econômicas e estabelecer novas relações de troca entre indivíduos, grupos sociais ou organizações — o que parece ser o caso da atual pandemia. Sob esse aspecto, a disseminação do novo coronavírus se assemelha mais ao que aconteceu no período em que a Europa medieval foi devastada pela peste bubônica, no século 14, do que à gripe espanhola do início do século 20, inserida no contexto bem mais amplo do entreguerras. Assim, estamos testemunhando um processo que tende a ter importantes implicações durante décadas, um verdadeiro rito de passagem para uma era diferente — melhor ou pior, ainda é difícil dizer.
Essas são algumas das reflexões do debate “História econômica das pandemias”, promovido pela Conexão Capital com a participação de Alexandre Saes, professor do departamento de Economia da FEA-USP e do programa de pós-graduação em História econômica da FFLCH-USP, e de Michel Alcoforado, antropólogo especializado em consumo e comportamento.
Uma interpretação histórica e econômica da atual pandemia requer sua comparação a outras crises de grande magnitude, como as de caráter financeiro. Nesse cotejo, primeiro surgem as diferenças: enquanto a crise de 2008, por exemplo, foi desencadeada por uma repentina queda de liquidez, logo espalhada dos bancos para os vários setores econômicos, desta vez o problema se concentrou também numa brusca contração, mas de trocas econômicas.
Mas, curiosamente, essas duas situações têm mais semelhanças do que pode sugerir um primeiro olhar. “Embora os gatilhos tenham sido distintos, tanto a crise de 2008 quanto a atual se parecem no impacto extremamente desigual nas sociedades. Agora, como 12 anos atrás, se ‘seguraram’ melhor as grandes empresas, que tinham condições de enfrentar uma situação atípica”, comenta Saes. Além disso, nos dois contextos o socorro imediato veio do mesmo lugar: o Estado, que nessas circunstâncias “têm o papel de recoordenação, de reconstrução das relações entre os indivíduos”. Em 2008 e em 2020 as reações imediatas de grande parte dos governos giraram em torno da negociação e da liberação de pacotes vultosos de ajuda para a sobrevivência das suas economias, com a diferença de que antes os recursos foram canalizados para os bancos e não diretamente para as empresas e as pessoas físicas, como acontece na atual crise.
Na opinião de Alcoforado, a pandemia é um turning point, uma mudança radical das estruturas para um modelo que seja capaz de dar conta dos desafios do século 21. “A pandemia evidenciou as contradições do modelo neoliberal que prevalece já há algumas décadas”, afirma o antropólogo. De acordo com ele, esse modelo vem desde os anos 1980, quando as economias passaram a priorizar a maximização da produtividade combinada com cortes agressivos de custos, tendo como pano de fundo a evolução das tecnologias até a era da digitalização. “Historicamente, cada epidemia coloca na mesa a necessidade de resolução de problemas da era anterior, das tensões sociais que já existiam”, comenta.
Seguindo esse raciocínio, a epidemia de peste bubônica na Europa do século 14 serviu como ingrediente para o fim do modelo feudal, abrindo espaço para a ampliação das conexões econômicas entre regiões próximas — e distantes. Segundo Alcoforado, há uma tese que atribui também à disseminação da peste o impulso ao desenvolvimento das navegações portuguesas. Com medo de se relacionar com o restante do continente contaminado, Portugal teria se aproveitado de sua posição geográfica peculiar para se lançar ao mar e fomentar as grandes navegações. Saes observa que na mesma época a Inglaterra estabeleceu um novo sistema de propriedade, integrando um contexto de mudanças que foram fundamentais para o crescimento do comércio no século seguinte. “A peste foi um dos fatores para o abalo estrutural do modelo medieval, mas não foi a causa”, diz o professor.
Ele explica que no caso da gripe espanhola (1918-1919) as mudanças econômicas diretamente relacionadas à epidemia não foram tão significativas ou evidentes. “O ambiente era diferente. A epidemia aconteceu já em meio a um cenário de população enfraquecida pela Primeira Guerra Mundial (1914-1918) e logo as economias se recuperaram com as políticas de reconstrução da Europa e de reintegração, para uma década depois colapsarem”, ressalta, referindo-se ao período da Grande Depressão dos anos 1930.
A epidemia de influenza daquele período, entretanto, teve um papel muito importante sob o aspecto social, à medida que ajudou a estabelecer os primeiros sistemas amplos de saúde — durante a crise havia ficado claro que a falta de assistência adequada contribuiu para a ampliação da tragédia (estima-se que morreram cerca de 50 milhões de pessoas, tendo sido infectado um quarto da população mundial). Não por acaso, datam desta época no Brasil (também marcada pela febre amarela) as atuações de médicos e cientistas que hoje dão nome a importantes instituições, como Oswaldo Cruz, Emílio Ribas, Adolfo Lutz e Vital Brasil.
As epidemias, afirma Alcoforado, tendem a acirrar os nacionalismos. Num contraponto ao multilateralismo predominante depois da Segunda Guerra — vale lembrar que organismos como a ONU, o Fundo Monetário Internacional (FMI), a Organização Mundial do Comércio (OMC) e a própria Organização Mundial da Saúde (OMS) nasceram dessa ideia —, hoje ficou claro o enfraquecimento dessa agenda, combatida por vários governantes de inclinação mais nacionalista. Um caso emblemático está nas ameaças de corte de financiamento feitas por Donald Trump à OMS.
A questão, diz Saes, é que muitas das dificuldades atuais, como as mudanças climáticas e o próprio coronavírus, não são delimitadas. “Existem espaços nacionais, mas muitos problemas são globais”, avalia o professor. “Me parece que os países vão tentar saídas individuais num mundo que precisa de multilateralismo. Como diz o ditado, ‘farinha pouca meu pirão primeiro’”, acrescenta Alcoforado, destacando que esse individualismo nacionalista aparece desde o início da pandemia, com as disputas pela compra de equipamentos de proteção, pela primazia na distribuição de vacinas que ainda nem foram aprovadas e até a briga em torno do aplicativo TikTok, que virou tema da guerra comercial entre Estados Unidos e China. O equacionamento desse descompasso deve ser um dos maiores desafios das próximas décadas. Se não for enfrentado, é provável que os prejuízos não respeitem fronteiras, como os vírus e as bactérias.
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