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Parece, mas não é: investidor ou intermediário?
Seria o fornecimento habitual de liquidez um elemento caracterizador da atuação dos intermediários? Para o regulador norte-americano, sim, e a partir de agora o investidor que atue dessa forma terá que se submeter a registro
Aline Menezes é General Counsel do Grupo UBS para Brasil e América Latina e integrante do Conselho de Autorregulação da BSM – Supervisão de Mercados (BSM)
Aline Menezes é General Counsel do Grupo UBS para Brasil e América Latina e integrante do Conselho de Autorregulação da BSM – Supervisão de Mercados (BSM)

A Securities and Exchange Commission (SEC) americana acaba de editar uma nova regra exigindo que investidores que atuem provendo liquidez de forma habitual na negociação de valores mobiliários e títulos públicos passem a ter que se registrar como intermediários (dealers). O registro será obrigatório, mais especificamente, para provedores de liquidez que negociem habitualmente inserindo ordens de compra e de venda nos melhores preços disponíveis, ou cuja receita provenha de “spreads” ou de incentivos financeiros recebidos de ambientes de negociação como contrapartida para operar ali.[1]

A obrigação de registro, por seu turno, vem acompanhada de um custo de observância nada desprezível: o cumprimento de toda legislação e regulamentação aplicável aos intermediários de que são exemplos a alocação de limites mínimos de capital, divulgação de demonstrações financeiras periódicas, o vínculo a uma entidade de autorregulação com todas as exigências de supervisão daí resultantes, eleição de diretores responsáveis etc.

Mais um “round” entre varejo e alta frequência

A nova regra é parte do ambicioso conjunto de reformas estruturais que a SEC vem conduzindo nas engrenagens de seus mercados secundários, e resulta de uma audiência pública promovida em junho de 2022. Entre seus benefícios estariam a maior estabilidade em períodos de turbulência de mercado, menos suscetível ao súbito enxugamento de liquidez pela fuga de investidores cuja atuação seja crítica, e o nivelamento das regras do jogo, fator onipresente em todas as minutas submetidas à discussão pública desde que Gary Gensler se tornou Presidente da SEC, no começo de 2021. “O legislador não pretendeu que as exigências regulatórias e de registro fossem aplicáveis apenas a uma categoria de dealer e não a outros”, afirmou Gensler ao anunciar a nova regra, aprovada por maioria, com a habitual oposição dos Commissioners republicanos.

A mudança abala o modelo de negócios de investidores de alta frequência, tais como veículos de investimento privado, carteiras proprietárias e “hedge funds”, cujas estratégias se apoiem em algoritmos programados para funcionar dentro do perfil operacional antes descrito. Segundo a SEC, os avanços tecnológicos verificados nas estratégias de negociação eletrônica tornaram tais investidores indistinguíveis dos intermediários clássicos, ambos provendo liquidez constante “como parte de uma atividade negocial regular“, sendo por isso imperioso que passem a ter que se registrar como integrantes do sistema de distribuição.

A publicação da regra ainda exacerba a perpétua dicotomia entre investidores de varejo e de alta frequência, evidenciando como a repartição de receitas pode variar e favorecer a um ou ao outro grupo de forma heterogênea, dependendo do arranjo de funcionamento dos mercados secundários. Daí porque, enquanto os primeiros se aparelham para judicializar a norma e, de novo, obrigar a SEC a defender os limites de sua competência nas barras dos Tribunais, aqueles a exaltam: “Investidores de alta frequência usuários de tecnologia de computação ultrarrápida começaram a dominar nossos mercados. (…) Essas empresas geralmente negociam contra o varejo, mas seus padrões de negociação nem sempre são justos para os investidores e podem ser os principais causadores de oscilações drásticas de preço e mesmo quebras de mercado”.

Os velhos tempos

O sistema de distribuição de valores mobiliários é composto por um conjunto de agentes que têm por função principal fazer a poupança popular trocar de mãos. Dentre os seus protagonistas estão “as sociedades que exerçam as atividades de mediação na negociação de valores mobiliários, em bolsas de valores ou no mercado de balcão” (art. 15, inc. III da Lei 6.385/76), comumente referidos como “brokers-dealers” em outras jurisdições, ou simplesmente corretoras, aqui no Brasil.

A atividade primária das corretoras consiste na mediação ou comercialização de valores mobiliários, o que por sua vez se desmembra em duas modalidades. Na primeira, mais básica e tradicional, a corretora é o “agente” (broker) que executa ordens em nome e por conta de investidores, tendo por função principal encontrar uma contraparte para as operações por ele desejadas. Trata-se aqui de um comerciante de valores mobiliários. Na segunda, as corretoras atuam por conta própria, na condição de “principal” (dealers), figurando como contraparte direta de seus clientes, com o propósito de fornecer-lhes liquidez. A corretora, nesse caso, atua como um comerciante de liquidez.

Nos velhos tempos, um investidor ganhava dinheiro comprando barato e vendendo por mais, prevendo tendências de preços ou compreendendo o valor fundamental dos ativos. O intermediário, por seu turno, era aquele de quem os investidores compravam e vendiam, seja como agente, seja como principal. O negócio do intermediário era servir os clientes que o procuravam, não ganhar dinheiro prevendo movimentos de preços. Daí porque, via de regra, o corretor não tinha por que se importar com o valor dos ativos, sua receita não vinha daí e sim da cobrança de corretagem ou de “spreads”. Também nos velhos tempos, era possível saber onde encontrar os intermediários, eles estavam fisicamente presentes nos ambientes de bolsa, que funcionavam naturalmente como coordenadoras das regras balizadoras das negociações.

Mas então vieram a internet e os avanços na transmissão de informações à distância, e, com isso, os locais físicos de negociação se tornaram peças de museu, tudo ficou eletrônico e cada vez mais rápido. Agora, quando um investidor quer negociar um ativo, basta inserir sua ordem em uma tela e ela será então roteada para uma bolsa, um mercado de balcão, um sistema alternativo de negociação ou mesmo internalizada pelo próprio intermediário.

As aparências enganam

Um efeito possível dessas mudanças é que os investidores poderiam passar a negociar entre si diretamente, levando à extinção dos intermediários. Apesar de frequente, essa previsão ainda não se concretizou, e mesmo em mercados transparentes e intensamente eletronificados os investidores continuam dispostos a pagar “spreads” aos intermediários para obter liquidez imediata.

Mas outro resultado, talvez mais surpreendentemente, é que os investidores podem agora ser intermediários. Um gestor de hedge fund que entenda bem como funcionam os mercados onde opere cotidianamente consegue detectar oportunidades de curto prazo e, com uso de algoritmos capazes de reconhecer padrões, compra e vende rapidamente, capturando oscilações temporárias de preço. Assim, embora esse investidor opere em nome próprio, não possua clientes como uma corretora, e, na verdade, seja ele mesmo cliente de uma corretora, não estará mais fazendo apostas direcionais de longo prazo como nos velhos tempos. Por isso, não estaria totalmente equivocado descrever seu padrão operacional como idêntico ao de um comerciante de liquidez, ou seja, um “dealer” tradicional. As distinções são menos nítidas porque a tecnologia moderna permite que todos façam um pouco de tudo e mudem suas estratégias à medida que as circunstâncias mudam.

Política regulatória e mercados secundários

Conforme já falamos aqui na Capital Aberto nas colunas “Cercados pelas nossas alternativas” e “Liquidação acelerada de ações é uma questão de (pouco) tempo, o avanço tecnológico transformou de maneira irreversível o funcionamento dos mercados secundários e dos seus principais atores. A não ser que assim o imponha a regulamentação estatal, por deliberada escolha política, já não há mais distinções entre ambientes de negociação, destes para os intermediários que nele operam, tampouco entre intermediários e os investidores, como a nova regra da SEC acaba de corroborar.

Sem que o estado seja intencional nos princípios e resultados que pretenda perseguir, e interfira na arquitetura dos mercados secundários para promovê-los, o ambiente regulamentar tradicional cada vez mais perderá sua força. É a esse caminho muito mais trabalhoso, profundo e filosófico, mas por outro lado bem mais capaz de produzir resultados duradouros e adequados à nossa realidade que a nossa CVM vem se dedicando a trilhar – sem se deixar levar pelas aparências –desde a edição, em 2007, da Instrução 461, bem como com sua sucessora, Resolução 135, promulgada em 2022.

[1] Há exceções, inclusive para bancos centrais, empresas de investimento registradas (fundos mútuos) e pessoas com menos de US$ 50 milhões em ativos


 


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