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Como aprendi a deixar de me preocupar e passei a gostar do MRP
À luz da decisão da CVM de retomar os estudos para estender o mecanismo de ressarcimento ao investidor, vale refletir sobre o papel deste tipo de arranjo no mercado de capitais
Aline Menezes é General Counsel do Grupo UBS para Brasil e América Latina e integrante do Conselho de Autorregulação da BSM – Supervisão de Mercados (BSM)

No último mês de agosto, o colegiado da Comissão de Valores Mobiliários (CVM) aprovou o aumento para R$ 200.000,00 do teto máximo passível de ser indenizado pelo mecanismo de ressarcimento de prejuízos, o MRP.[1] O novo valor passará a valer a partir de janeiro de 2024, aplicando-se o antigo, de R$ 120.000,00, aos eventos ocorridos até lá. As hipóteses de ressarcimento por enquanto permanecem as mesmas: são indenizáveis perdas decorrentes de ação ou omissão dos intermediários em negócios realizados em bolsa ou relacionadas ao serviço de custódia. Mas a decisão da CVM anuncia a retomada dos estudos para estender o MRP a mercados de balcão organizado e para cobrir, nos casos de liquidação extrajudicial, os saldos financeiros não atribuíveis a operações realizadas em bolsa  — dois temas já discutidos com o mercado durante a audiência pública da Resolução 135.

Os menos iniciados no funcionamento do mercado secundário se surpreendem ao saber que perdas incorridas ao negociar em bolsa são indenizáveis administrativamente pelo MRP. E, talvez mais ainda, ao saber que ele é mantido por uma empresa privada e com fins lucrativos, a B3.[2] A surpresa não chega a espantar. Mecanismos de indenização aos investidores, assim como os seguros de depósito, como é o caso do Fundo Garantidor de Crédito, o FGC, são técnicas tradicionais, apesar de extremas e, por isso, pouco frequentes, de redução de risco.

A elevação do limite máximo é um momento oportuno para refletir sobre as razões desse tipo de arranjo.[3] Apesar de disponível em boa parte das jurisdições reputadas desenvolvidas em mercado de capitais, sua criação não está imune a críticas. A principal delas é a de que haveria um incentivo ao “risco moral” (moral hazard), ou seja, tendência ao comportamento descuidado ou irresponsável pelo indivíduo que sabe que conta com a garantia de indenização. Críticas como essa seriam até mais pertinentes no Brasil, onde as hipóteses de incidência do MRP, hoje previstas no art. 124 da Resolução 135, de 2022, além de exemplificativas, são também mais amplas que as de seus congêneres, que só cobrem perdas no cenário muito particular de insolvência patrimonial.

Para que precisamos de um MRP?

Diariamente, compradores de imóveis, carros ou outros bens passam por situações de prejuízos atribuíveis a terceiros ou se veem desamparados pela falência de uma empresa. Da mesma forma, todos entendemos como um fato da vida a ocorrência de falhas e interrupções — e, com elas, perdas — na prestação de serviços, mesmo naqueles de natureza essencial.

Embora situações como essas sejam corriqueiras, poucos defendem a necessidade de mobilização de uma massa de recursos mutualizada para lidar com a indenização administrativa de prejuízos. Usualmente, a tarefa de ressarcir danos é deixada a cargo dos esquemas clássicos de responsabilidade civil. Exige-se, assim, comprovação de culpa ou dolo, ou o reconhecimento de relação de consumo. Além disso, o direito à indenização deve ser perseguido em juízo contra o próprio causador do dano, não contra um patrimônio segregado e financiado pelos participantes da indústria.

Por que não se segue essa mesma lógica para o mercado de capitais? Os inúmeros estudos econômicos e trabalhos acadêmicos dedicados a responder essa pergunta não conseguem escapar à constatação de que, na prática, trata-se de uma escolha política. Seu objetivo é favorecer institucionalmente grupos que se julguem merecedores de proteção diferenciada.

Percepção de segurança

No Brasil, essa escolha política foi feita em 1966, de forma simultânea à própria disciplina estatal de nosso mercado secundário resultante da Resolução 39, editada pelo Banco Central. Foi criado na época o então chamado fundo de garantia, antecessor do MRP. O desenho original vem sendo aperfeiçoado ao longo dos anos. Inclusive, mais recentemente, sob a competência da CVM, que busca torná-lo mais sustentável e apto a atender às necessidades do crescente número de investidores atraídos pelo mercado de capitais. Por existir desde sempre, e estar operante há tantos anos, pode-se dizer sem medo de errar que o MRP é um dos elementos estruturantes do nosso mercado de bolsa. Ou, nas palavras da CVM, um mecanismo adicional para a proteção do investidor e para a promoção da confiança”, realçado por seu objetivo de fortalecer a percepção de segurança dos investidores quanto ao investimento no mercado de capitais”[4].

Com efeito, em um país que ainda dá seus primeiros passos para desenvolver uma cultura de aplicação em capital de risco, não seria factível que investidores, em especial de varejo, ficassem ao sabor da morosidade e dos custos de se recorrer ao Judiciário para reaver perdas causadas por erros operacionais ou falhas na prestação dos serviços de intermediação.

Deveríamos nos preocupar?

Por mais tradicional que seja, o ressarcimento administrativo foge à lógica dominante na maior parte dos setores da economia. Dessa excepcionalidade resultam desdobramentos que condicionam a interpretação das normas regulamentares que tratam do funcionamento do MRP. Ainda que a imprensa especializada insista em chamá-lo de “seguro da bolsa”[5], ele não pode ser usado como um seguro contra perdas, ou de forma a reduzir desproporcionalmente a autonomia do investidor ou minimizar seu protagonismo. O investimento em mercado de capitais envolve riscos, e a percepção de que esse risco existe é socialmente benéfica e deve ser considerada. Ela é a base para a conscientização dos investidores, sem a qual nenhum mercado consegue evoluir.

Como em todos os demais ramos de atividade, coabitam bons e maus prestadores de serviço. Há incentivos para expelir ou reduzir a relevância dos que trabalham abaixo dos padrões desejáveis ou de forma dissonante daquela estabelecida pelo conjunto dominante das preferências. Por isso, o recurso ao mecanismo de ressarcimento de prejuízos não deve servir de conforto para reduzir a disposição do investidor de escolher criticamente as instituições com as quais deseja se relacionar, nem para enfraquecer a eficiência dos meios de seleção próprios das economias de mercado. Tampouco deve servir de lenitivo para que os intermediários menos diligentes se aproveitem do subsídio indireto proporcionado pelos mais cuidadosos — os quais, em igual proporção, contribuem para o patrimônio do MRP.

Escopo limitado

Consideradas essas premissas, que cautelas existem para minimizar a ocorrência de “moral hazard”? As principais garantias são de natureza processual. O MRP não é meio de atribuir responsabilidade regulatória ao intermediário. Da mesma forma, inclusive pelas limitações procedimentais que lhe são inerentes, não se presta à solução de todo tipo de controvérsia nem é a instância correta para apurar aspectos subjetivos dos deveres de participantes. O mecanismo de ressarcimento de prejuízos tampouco trata de matérias ou comportamentos de avaliação mais complexa.[6] Para tais eventos, existe o processo disciplinar de natureza sancionadora, no qual se examina a culpabilidade da conduta dos acusados à luz da regulamentação vigente.

Tudo isso é feito em benefício do investidor. Os processos de MRP dispensam a assistência de advogado, têm escopo limitado, seguem uma investigação probatória abreviada e não são meios apropriados para discussões potencialmente demoradas ou de viés mais subjetivo. Reconhecendo a assimetria entre investidor e participante, o contraditório que se instala com a reclamação ao MRP privilegia o primeiro. Diferentemente do que ocorre em um processo sancionador, para o qual vale sempre o in dubio pro reo, o rito do MRP não só repele provas complexas e dilatadas como lança mão de presunções relativas para imprimir rapidez à decisão e incentivar o andamento contínuo das etapas processuais.

Investigações demoradas, complexas ou dependentes de ampla dilação probatória não são compatíveis com o MRP. Nas situações submetidas ao mecanismo, a atuação culposa ou negligente do intermediário emerge claramente, seja pelo exame da prova documental, pela constatação da ausência de alguma prova, pela demonstração da quebra do histórico de negociação ou pela reconstrução das condições de mercado vigentes durante o evento causador do ressarcimento. São situações de descumprimento objetivo de comandos legais cuja interpretação não dá grande margem a dúvidas. E, o mais importante: não requerem ampliação extraordinária da instrução.

Indutor de boas práticas

Por fim, muito se censura a extensão das hipóteses de incidência do MRP, mas pouco se comenta sobre o efeito moralizador e indutor de boas práticas que elas produzem sobre as rotinas dos intermediários. É natural que haja maior atenção do intermediário sobre os processos ligados às hipóteses de ressarcimento — registro de ordem e descumprimento do dever de suitability, para ficar em apenas duas —, cuja falha pode logo vir acompanhada da obrigação de recomposição do patrimônio do MRP.

Ainda assim, independentemente do quanto se expanda o perímetro de suas hipóteses de incidência, sempre haverá muito o que o MRP não poderá fazer. O cobertor da indenização administrativa é curto: precisamos dele para mobilizar o investimento em mercado de capitais, mas devemos cuidar para que não estimule comportamentos desleixados ou substitua outras modalidades institucionais de proteção ao investidor.

*Aline Menezes é general counsel do Grupo UBS para Brasil e América Latina e integrante do Conselho de Supervisão da BM&F-Bovespa Supervisão de Mercados (BSM) 


[1]Processo 19957.001770/2023-1, decidido em 15.08.2023. Disponível em: https://conteudo.cvm.gov.br/decisoes/2023/20230815_R1.html. Acesso em 20.10.2023.

[2] A manutenção de um mecanismo de ressarcimento de prejuízos, ou a contratação de instituição que lhe faça as vezes, é compulsória para os mercados organizados como bolsa de valores, como é o caso da B3 (cf. Res. 135, arts. 124 e 125.)

[3] Para uma análise mais completa: SANTOS, Aline de Menezes e AURIEMA, Leonardo Anthero, “Mecanismo de ressarcimento de prejuízos e responsabilidade civil: finalidade, alcance e questões polemicas”, in Revista de Direto das Sociedades e dos Valores Mobiliários, vol.16, maio de 2023.

[4] Relatório de análise das contribuições recebidas durante a audiência pública da minua que veio a se transformar na Resolução 135, de 2022, pp. 210 e 214. Disponível em: https://conteudo.cvm.gov.br/audiencias_publicas/ap_sdm/2019/sdm0919.html. Acesso em 20.10.2023.

[5] “Ressarcimento para ‘seguro da bolsa’ passa para R$ 200 mil e entra em vigência a partir de 2024”. Disponível em: https://valorinveste.globo.com/mercados/renda-variavel/bolsas-e-indices/noticia/2023/08/30/ressarcimento-para-seguro-da-bolsa-passa-para-r-200-mil-e-entra-em-vigencia-a-partir-de-2024.ghtml. Acesso em: 20.10.2023.

[6] Processo nº RJ2010-12838, relatora diretora Luciana Dias, decidido em 22.05.2012. Disponível em: http://www.cvm.gov.br/decisoes/2012/20120522_R1/20120522_D06.html. Acesso em: 20.10.2023.


 


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