A lição do caso Eneva-AES Tietê para estruturas de capital alavancadas
Episódio demonstrou os desequilíbrios e instabilidades provocados pelas estruturas de “alavancagem societária”
Colunista Raphael Martins

*Raphael Martins | Ilustração: Julia Padula

Não é comum a realização ofertas hostis no Brasil, isto é, ofertas de aquisição de controle ou reestruturação societária promovidas sem um acordo prévio com os acionistas ou administradores da sociedadealvo. Afinal, sendo poucas as empresas locais sem controle definido ou, ao menos, um acionista de referênciao ofertante sabe com quem precisa conversar antes de lançar sua proposta ao público.  

Nesse sentido, caso EnevaAES Tietê parece ser um ponto fora da curva, na medida em que a empresa ofertada, a AES Tietê, tem um acionista que, titular de 61% das ações ordinárias, preenche, sob todos os aspectos formais, os requisitos para qualificá-lo como acionista controlador.   

Ocorre que a oferta evidenciou um desequilíbrio na estrutura societária da empresaalvo, na medida em que esse controlador possui apenas 24% do capital social total (que inclui ações ordinárias e preferenciais). Outros dois acionistas, sob controle indireto comum, detêm 48% das ações preferenciais e 36% do capital social total. Diante desse cenário, em assembleias nas quais todos os acionistas da companhia participem, esses dois últimos terão uma posição preponderante. E justamente pelo fato dAES Tietê integrar o Nível 2 de governança da B3, esse seria o caso da deliberação sobre a proposta de reestruturação societária apresentada pela EnevaCaso a matéria fosse colocada em votação, um cenário possível seria os votos desses dois acionistas bastarem para formar uma maioria contrária à posição do controlador.  

Sem entrar nos meandros da oferta hostil, o caso ganhou atenção por diversos motivos, menos pelo essencial. A espuma da discussão se formou em torno da estapafúrdia tese de defesa do acionista controlador de AES Tietê, segundo a qual os acionistas preferencialistas não teriam o direito de voto na deliberação sobre a aceitação da oferta da Eneva (ou teriam apenas um eventual direito de veto). Isso apesar da clareza do que dizem o regulamento do Nível 2 e o próprio estatuto social da AES Tietê.  

Não é o caso de perder mais tempo com a discussão, mesmo porque a própria B3 já teria enterrado o assunto, por natimorto. O que é essencial no caso EnevaAES Tietê é o fato de ter evidenciado as instabilidades estruturais provocadas por aquilo que o saudoso advogado Luiz Leonardo Cantidiano denominou de “alavancagem societária, ou seja, a capacidade de acionista com participação inferior à metade do capital social manter o controle político sobre a companhia  

Apenas recapitulando: a Lei das S.As. ora vigente, ao autorizar que a companhia emita igual número de ações ordinárias e preferenciais, permitiu que um acionista detenha o controle da companhia com uma contribuição de um quarto do seu capital social total, que corresponderia à metade mais uma das ações ordinárias. Recentemente, a Comissão de Valores Mobiliários (CVM), ao admitir a estrutura das superordinárias no caso Azul, levou a “alavancagem societária” a níveis sem precedentes. Hoje, com ínfima contribuição ao capital social, é possível manter o controle de uma companhia.  

Até agora, essas estruturas alavancadas promoveram a festa dos acionistas controladores descapitalizados. Ocorre que caso EnevaAES Tietê demonstra uma das muitas fragilidades estruturais que esse modelo promove no longo prazo da vida da sociedade, especialmente quando se tenta conjugar estruturas de “alavancagem societária,” de um lado, com modelos de governança corporativa mais exigentes, de outro. 

Embora não seja pacífico que a adoção de ações sem direito a voto promova, por si só, uma deterioração no padrão de governança corporativa de determinada sociedade, não há dúvida de que promove instabilidades societárias que vão se revelar aos poucosEsse aspecto pode ser decisivo, conforme o caso, nos momentos de capitalização, de reestruturações societárias ou na própria administração dos diversos interesses sociais, notadamente pela existência de um controlador com desinteresse no resultado econômico direto do seu investimento no capital social (equity) da empresa.  

Não se espera, neste momento, uma discussão mais ampla sobre os modelos de capitalização societária, até mesmo porque eles têm justificativas econômicas válidas e que não são afetadas pelo desenrolar do caso Eneva AES Tietê. Espera-se, entretanto, que não se tente dar tratamento às instabilidades ali escancaradas enfraquecendo os segmentos de governança corporativa da B3, marretando seus regimentos para acomodar interesses pontuais. 


*Raphael Martins ([email protected]) é sócio do escritório Faoro & Fucci Advogados


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