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Adversários de primeira viagem
Oferta hostil da Sadia pelo controle da Perdigão deixa espaço para os administradores brasileiros agirem com muito mais governança da próxima vez

ed36_p008-012_pag_3_img_001Era mesmo uma questão de tempo: maior e mais sofisticado, o mercado de capitais brasileiro não tinha porque ficar de fora da escalada de ofertas voluntárias de aquisição de controle (chamadas de ofertas hostis) que vinha dominando os noticiários financeiros mundiais desde o fim do ano passado. Em pouco menos de 12 meses desde a estréia da Lojas Renner como a primeira “corporation” da Bovespa, o número de companhias sem um controlador definido chegou a 13; as ofertas públicas iniciais de ações (IPOs) trouxeram novos setores da economia para a bolsa e os recursos captados foram direcionados, em parte, a novas aquisições — ampliando as oportunidades de consolidação, especialmente nos segmentos em que tamanho e capacidade competitiva andam de mãos dadas.

Ainda que inesperada, não se pode dizer que a oferta de compra de até 100% das ações da Perdigão colocada pela Sadia tenha tomado o mercado de assalto. Cláusulas para evitar reconcentração de controle foram incluídas nos estatutos das recém-chegadas à Bovespa e também das veteranas que pulverizaram seu controle, como a Embraer e a própria Perdigão, prevendo justamente essa situação. A lei e os dispositivos de auto-regulação, como o regulamento do Novo Mercado, dispunham de instrumentos jurídicos bem delimitados, fundamentais à proteção dos acionistas. Por que então, a despeito de todo esse arcabouço, uma operação tão trivial lá fora causou tanta indignação por aqui?

A resposta mais imediata é a de que a infra-estrutura estava bem pavimentada, mas a cultura dos administradores envolvidos em ambos os lados, nem tanto assim. A primeira evidência foi a preocupação excessiva demonstrada pela Sadia com o termo “hostil” — que, importado da expressão em língua inglesa, refere-se originalmente à oferta apresentada sem negociação prévia e, na legislação brasileira, é substituído por “voluntária”. No domingo, 16 de julho, antes de anunciar a oferta de R$ 3,7 bilhões ao mercado, o presidente do conselho da Sadia, Walter Fontana, foi informar pessoalmente o presidente executivo da Perdigão, Nildemar Secches. A intenção, de acordo com declaração de Fontana aos jornais, era evitar constrangimentos e a caracterização da oferta (claramente hostil) como tal.

O gesto não surtiu o efeito esperado e a Perdigão revelou boa dose de desconforto com a forma de apresentação da proposta. Nas entrevistas concedidas a diferentes veículos de imprensa, Secches reiterou que se tratava, sim, de uma aproximação “hostil”. À Revista Exame, disse que “a maneira ideal de fazer negócio é conversando”. E quando, depois da primeira recusa apresentada, uma nota publicada pela jornalista Sonia Racy dizia em tom de brincadeira que a oferta podia não ter sido hostil, mas a recusa sim, o próprio Secches se encarregou de enviar uma carta à coluna, refutando a afirmação. No mesmo dia, em entrevista ao Estado de S.Paulo, o presidente do conselho da Perdigão Eggon João da Silva classificava a abordagem da concorrente como “meio atrevida” e admitia que “rezava para o negócio não acontecer.”

A segunda evidência do despreparo dos administradores envolvidos para lidar com uma oferta hostil está justamente em declarações como essas que acabamos de ver. Sabe-se que, a despeito dos protestos dos defensores da boa governança, é comum em mercados que vivenciam as ofertas hostis de controle os administradores entrarem em cena como opositores à operação. Por vezes movidos por interesses não alinhados com os dos acionistas, eles lutam bravamente contra tentativas de aquisições que não passam por sua aprovação e usam de todas as armas para brecar o negócio. Mas será que “rezar para o negócio não ocorrer” é uma declaração e uma atitude esperada de um administrador numa hora dessas? Vai ao encontro do melhor interesse dos acionistas? Não seria mais alinhado com as boas práticas expor números que comprovassem que os acionistas fariam muito melhor ficando com suas ações do que se desfazendo delas por um preço que, na visão do administrador, não valia a pena?

PÍLULA REFORÇADA — Também em relação aos conselheiros e executivos da Perdigão, há uma outra dúvida sobre o uso dos melhores princípios de governança. Para desqualificar a proposta, eles afirmaram que o artigo 37 do estatuto social da companhia (utilizado pela Sadia como parâmetro para a definição do preço oferecido) não era aplicável ao caso, visto que a concorrente ainda não era acionista.

Esse dispositivo — criado para evitar reconcentração de controle e conhecido como pílula de veneno ou poison pill — determina que seja feita uma oferta pública de aquisição de ações (OPA) para até 100% dos papéis por aquele que alcançar 20% ou mais do total de ações e estabelece um prêmio para essa oferta baseado na maior entre três hipóteses de preço. No entender da Perdigão, o parâmetro utilizado pela Sadia só seria válido para uma segunda OPA, pois a titularidade de 20% das ações seria uma pré-condição para que o artigo 37 se aplicasse. Mas seria a pílula de veneno tropical assim tão forte a ponto de condicionar a aquisição de controle à realização de duas OPAs (uma para se tornar acionista e outra para extrapolar o percentual previsto na pílula)?

A resposta mais provável é não. E por três motivos. Em primeiro lugar, porque não está descrita em lugar nenhum a premissa de que a referência de preço definida no artigo 37 vale somente quando o comprador interessado já é acionista (ou já fez uma primeira OPA). Nem no estatuto da Perdigão, nem na Lei das S.As e tampouco na Instrução 361 da CVM, que regula as ofertas públicas voluntárias. Em segundo, porque o artigo 44 do estatuto da Perdigão faculta a formulação de uma única OPA para aquisição de ações da companhia, desde que os procedimentos sejam compatíveis — nesse caso eram, pois dispensavam registro na CVM e, a princípio, não continham elementos que pudessem prejudicar o interesse dos acionistas. E, por último, porque o artigo 257 da Lei das S.As autoriza a aquisição de 100% do capital de uma companhia por meio de uma oferta pública sem fazer qualquer referência à obrigatoriedade de que o comprador em questão já tenha ações da companhia. Marcelo Rodrigues, sócio do escritórioTozzini Freire Teixeira e Silva envolvido na operação, afirma: “A hipótese aventada pelos fundos de pensão seria antijurídica, pois revogaria o artigo 257 da lei.” Consultada por meio de sua assessoria de imprensa, a Perdigão não retornou o pedido de entrevista.

As pílulas de veneno costumam ser a grande arma da administração para se defender de tomadas hostis de controle. O assunto vem sendo amplamente discutido mundo afora e, por ser considerado tão sério, foi tratado com rigor pela Comunidade Européia em uma de suas novas diretivas (ver texto na página 20). A discussão é que, se a poison pill for venenosa demais, ela pode deixar os administradores confortáveis em sua posição e, ao mesmo tempo, minimizar a chances de que os acionistas recebam boas ofertas para vender seus papéis. Ao fazer a sua interpretação sobre o artigo 37 do estatuto sem nenhum subsídio da lei ou da regulamentação, a Perdigão pode ter tentado turbinar de última hora uma poison pill que, em sua redação original, parecia muito menos poderosa.

DISPARIDADE DE PREÇOS — Toda a discussão sobre o artigo 37 do estatuto, contudo, não teve influência prática sobre o resultado final. A operação já estava predestinada a não sair porque a Sadia só tinha interesse na oferta se fosse para comprar mais de 50% do capital — e, para um grupo de acionistas que compunham 55,38% do capital, o preço oferecido passava longe do que seria o justo. Nesse grupo estavam os sete fundos de pensão que formavam o bloco de controle da Perdigão antes da pulverização do capital e da entrada no Novo Mercado em março — e que hoje ainda detêm 48,3% do seu capital social. O fato relevante divulgado para informar ao mercado a recusa da oferta (determinada em reunião prévia do conselho de administração pelos fundos que são signatários de um acordo de voto) afirmava que “o preço de R$ 27,88 por ação não atendia às expectativas dos acionistas”. No dia anterior ao anúncio da oferta, 16 de julho, a cotação das ações havia fechado em R$ 23.

A avaliação feita pelos acionistas encontrava respaldo no mercado. Segundo o analista de investimentos da Corretora Geração Futuro Rafael Weber, a maior parte das projeções fixava o preço justo entre R$ 33 e R$ 37. Ele pondera que uma oferta dentro dessa faixa “poderia remeter a uma apreciação maior dos acionistas”. Weber lembra, ainda, que nos últimos dez anos a empresa cresceu a um ritmo médio de 14% ao ano e que a estratégia de expansão, calcada em aquisições e na abertura de novas plantas industriais, aliada às projeções de crescimento no consumo para o segundo semestre, sinaliza a continuidade desse crescimento — e justifica, em parte, o desconforto com a precificação.

Desconforto que ficou ainda maior quando a Sadia, diante da primeira recusa, apresentou uma contraproposta que elevava o valor inicial em apenas 4%. Weber classifica essa segunda oferta como “baixa demais para ser considerada”. Mas, vista de uma outra perspectiva, a oferta implicaria o desembolso do equivalente ao valor de mercado total da própria Sadia (R$ 3,9 bilhões) — que tem mais fábricas (16 x 13), maior receita bruta (US$ 3,39 bilhões x US$ 2,32 bilhões em 2005) e maior lucro líquido (US$ 205 milhões x US$ 118,3 milhões também em 2005) que a Perdigão. Mauro Guizeline, sócio do Tozzini Freire e advogado da Sadia, diz que sua cliente não foi conservadora na oferta: “Ela tinha o seu número: a precificação não superaria seu próprio valor de mercado”.

DESLIZE DESNECESSÁRIO — E os outros acionistas, que não tiveram a oportunidade de se manifestar porque a participação reunida pelos fundos já era suficiente para descartar a proposta da Sadia? O que eles acharam da primeira oferta hostil de que quase participaram?

Marcos Duarte, sócio fundador da Pólo Capital Management, que tem em sua carteira de investimento R$ 8,5 milhões aplicados em ações da Perdigão, vê na condução do episódio um deslize no histórico de uma administração até então considerada exemplar. “Agiram com açodamento e tempestuosidade desnecessários, deixando passar a opor- tunidade de dar uma prova inequívoca de sua boa governança, que considero superior à da concorrente.” O que Duarte lamenta não é o desfecho da história — ele também considera que o preço ofertado está aquém do valor justo —, mas a frustração de algumas das expectativas que cercam as corporations e sua estrutura sem controlador.

Mas nem todos pensam assim. O fato é que, embora a Perdigão não tivesse mais o modelo clássico do acionista controlador que detém mais da metade do capital, ela ainda é controlada por acionistas que, unidos por um acordo de votos, detêm 48,3% do capital total. É por essa razão, principalmente, que a secretária- geral do Instituto Brasileiro de Governança Corporativa, Heloísa Bedicks, avalia que não houve falhas nos procedimentos de governança. Afinal, diz ela, o acordo de votos era de conhecimento público e o exercício deste controle “de fato” já poderia ser previsto pelos demais acionistas. Em outras palavras, a empresa tinha sim um “controlador” — e os “minoritários” sabiam disso.

CORPORATION À BRASILEIRA — Escaldado por velhas disputas societárias provocadas pela existência de acionistas com direitos díspares e sintetizadas no velho conflito entre controladores e minoritários, o investidor brasileiro viu com receio a chegada das companhias de capital pulverizado. Os bons exemplos dados por Lojas Renner e Submarino foram, pouco a pouco, dirimindo as resistências iniciais e turbinando as expectativas em relação às práticas de governança que seriam colocadas em marcha pelos executivos, agora livres da tutela do controlador. O desafio maior era o de não cair nos embates entre administradores e acionistas vivenciados pelos países do hemisfério norte (onde o controle pulverizado predomina), conhecidos como conflitos de agência.

Vista de uma outra perspectiva, a oferta implicaria o desembolso do equivalente ao valor de mercado total da própria Sadia que fatura 46% mais
O modo como a oferta foi colocada trouxe à baila um conceito que não estava exatamente claro: o do controle difuso

O modo como os gestores da Perdigão conduziram a oferta colocada pela Sadia alertou o mercado do real estágio de evolução das corporations brasileiras e trouxe à baila um conceito que não estava exatamente claro, o do controle difuso — ou seja, quando o controle existe, mesmo na ausência de um acionista ou bloco que detenha a maioria absoluta do capital social. Em resposta às críticas feitas sobre as brechas do Novo Mercado para violações a boas práticas de governança, a Bovespa soltou uma nota de esclarecimento atentando para a existência dessas empresas de controle difuso que, apesar de ter o capital pulverizado, contam com acionistas cuja participação, ainda que inferior a 50%, lhes confere poder de controle.

Na hipótese de “controle difuso”, portanto, a existência de um acordo de votos (como o firmado pelos fundos que eram os antigos controladores da Perdição) coloca a companhia na mesma condição das tantas outras que têm controle definido.

Das 13 corporations brasileiras, apenas quatro podem ser enquadradas na estrutura de controle efetivamente pulverizado, em que os maiores acionistas detêm participações em torno de 5%: Lojas Renner, Submarino, Eternit e Embraer (que ainda assim conta com o poder de veto concedido à União, a golden share). Todas as outras estão numa situação em que alguns telefonemas podem permitir a três ou quatro investidores fechar uma posição e determinar os rumos da companhia.

Considerando que, na maioria desses casos, os acionistas com participação relevante são os antigos controladores ou até mesmo membros do conselho de administração — como, mais uma vez, no caso da Perdigão, onde o presidente do conselho é o principal executivo da WEG Participações, que tem 5,4% das ações do frigorífico —, as discussões sobre os conflitos entre administradores e acionistas podem parecer pouco importantes. Ainda assim, a oferta hostil pelo controle da Perdigão não deixou de ser uma primeira referência de como tende a ser o comportamento de nossos conselheiros e diretores em situações semelhantes. E se tornou um exemplo que pode servir de precedente para casos em que o controle esteja efetivamente pulverizado e nossos investidores desejem contar com uma postura profissional de seus agentes, baseada em dados que interessam aos acionistas e não em vaidades ou possíveis ameaças ao seu poder. Afinal, é só uma questão de tempo para mais uma oferta hostil entrar em cena no mercado de capitais brasileiro.


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