Para fugirem do imposto sobre operações financeiras (IOF), investidores estrangeiros tendem a contratar um tipo de derivativo cada vez mais popular: o TRS, sigla para total return swap. Com essa ferramenta, o aplicador recebe o retorno financeiro de uma ação listada apenas no Brasil sem precisar colocar o dinheiro aqui. Basta celebrar o TRS com um banco multinacional. Dessa forma, não há entrada de dinheiro no País — o banco compra os papéis na Bolsa, em reais, e devolve ao investidor a variação da cotação e os dividendos, em moeda estrangeira. O investimento fica longe da taxa de 2% do IOF, pois os contratos são assinados e liquidados no exterior. Embora nas ofertas de ações recentes o TRS tenha sido bastante usado por investidores estrangeiros, é difícil aferir o tamanho desse mercado. Os contratos são de caráter particular, sem necessidade de registro público e acertados em outros países. Nem a BM&FBovespa nem a Cetip têm registro desses derivativos. Mas seus riscos já começam a ser descortinados.
Em junho, a Comissão de Valores Mobiliários (CVM) fez um julgamento que lançou luzes sobre o TRS e, de quebra, dividiu a opinião de advogados. A história começou em 2003, quando a Companhia Siderúrgica Nacional (CSN) decidiu investir em ações de sua própria emissão de forma pouco ortodoxa. Com o Goldman Sachs, escolheu contratar um TRS que lhe garantia o retorno financeiro da ação — oscilação e dividendos — em troca da taxa interbancária londrina, a Libor. O problema apareceu no primeiro semestre deste ano. No período de maio de 2008 a maio de 2009, as ações ordinárias da CSN saíram de R$ 73,93 para R$ 48,50, uma queda de 39,40%, o que significou prejuízo para a companhia com o derivativo. A CSN preferiu não renovar mais o contrato.
A contraparte do swap, o Goldman Sachs, havia realizado o hedge da operação e detinha cerca de 9% das ações em circulação da CSN. O caminho natural para o banco seria a venda em bolsa desses papéis. Temendo variações indesejáveis por força de uma oferta tão grande de ações (cerca de 29,7 milhões de American Depositary Receipts — ADRs — adquiridos na Bolsa de Valores de Nova York), a CSN perguntou à autarquia se poderia recomprar os papéis de forma privada e mantê-los em tesouraria até cancelá-los. A operação levaria a duas irregularidades. Considerando-se as ações já existentes em tesouraria, a companhia passaria a deter 16,95% dos papéis em circulação, percentual bem superior ao limite de 10% previsto pela Instrução 10, mesma norma que veda companhias de adquirirem suas próprias ações fora de bolsa.
Em julgamento controverso, divulgado em julho (leia quadro na página 12), a CVM autorizou a compra. “Mas perdeu uma grande oportunidade de exigir mais transparência sobre o TRS”, cutuca o advogado de um escritório paulista que pediu sigilo. São raros os casos em que um contrato desse tipo deve vir a público. Um deles é quando a companhia usa o derivativo para investir em suas próprias ações, mas, quase sempre, a forma de comunicar isso fica a critério da empresa.
A CSN mencionou os seus contratos nos demonstrativos de resultados de 2008. “Olhei as notas explicativas sobre o TSR, mas é difícil visualizar a operação só com aquelas informações”, diz um advogado que acompanhou o caso. De acordo com as regras atuais da CVM, só é exigida a divulgação de um fato relevante quando a operação “é capaz de afetar as decisões de investimento no mercado, nos termos do disposto no artigo 2º da Instrução 358”, explicou, por e-mail, a área técnica da CVM. O potencial desse impacto depende de avaliação dos administradores. Carlos Augusto Junqueira, advogado do escritório Souza Cescon, entende que o TRS da CSN, por envolver ações de própria emissão, afetaria a visão do mercado sobre a companhia e, portanto, o contrato deveria ter sido informado via fato relevante. Procurada pela reportagem, a CSN não se manifestou.
Além da CSN, dois bancos médios com ações listadas na BM&FBovespa fizeram contratos desse tipo recentemente, com ações de própria emissão, e os comunicaram por meio de fato relevante. Em meados de setembro, o Daycoval anunciou a celebração de um TRS com o Credit Suisse com valor de referência de R$ 20 milhões. Em troca, o Daycoval se comprometeu a pagar 100% do DI. O derivativo tem prazo de um ano. A opção pela “compra sintética”, como também é chamado o TRS, é explicada por Morris Davis, diretor de relações com investidores (RI) do Daycoval. “Precisávamos preservar o free float.” Um programa de recompra tradicional foi cogitado, mas a companhia tem pouco mais de 25% do total de ações em circulação, o mínimo permitido pelo Nível 1 da BM&FBovespa.
A operação foi muito parecida com a realizada pelo banco Cruzeiro do Sul, em abril de 2008, em parceria com o UBS, no valor de R$ 50 milhões. Com remuneração de 100% do DI em troca do resultado financeiro das ações preferenciais, o contrato teve prazo de um ano. Em março deste ano, as partes reeditaram a parceria com números mais modestos: R$ 28,9 milhões.
CAIXA-PRETA — Em países como os Estados Unidos, esse tipo de swap está na pauta de reguladores e juízes. Um dos receios é quanto aos riscos que o instrumento pode trazer para o mercado caso as partes — investidor e banco — decidam combinar o exercício do direito político da ação. Nessa hipótese, o que era um derivativo transforma-se, na prática, num papel. Basta que haja interesse do investidor e do banco contratado para que uma participação acionária seja formada na surdina, surpreendendo o mercado e preservando a identidade do verdadeiro beneficiário dos direitos econômico e político da ação. O resultado podem ser mudanças inesperadas na estrutura societária de uma companhia, principalmente naquelas sem controlador definido — algo típico em mercados como o norte-americano.
O estudo The New Note Buying:Empty Voting and Hidden (Morphable) Ownership, dos professores Henry T.C. Hu e Bernard Black, da Universidade do Texas, descreve um caso exemplar. Em 2002, o fundo texano Perry Corp. investia na companhia neozelandesa Rubicon Limited, de biotecnologia, por meio de contratos de TRS mantidos com o UBS e o Deutsche Bank. Pouco antes da assembleia-geral daquele ano, o hedge fund liquidou o contrato e ficou com 31 milhões de ações da companhia. O montante equivalia a 16% do capital total, mas o direito de voto de Perry foi questionado pelos demais acionistas. Eles argumentavam que o hedge fund agiu de forma ilegal ao não informar ao mercado a intenção de ampliar seus poderes políticos com a devida antecedência.
A Justiça da Nova Zelândia entendeu que o Perry não era obrigado a divulgar ao mercado seu acordo com os bancos, argumentando que, em países como Estados Unidos e Inglaterra, tal abertura também não seria pedida. A reclamação dos demais acionistas carecia de regulamentação ou jurisprudência que a fundamentasse. Em 2008, entretanto, um juiz federal dos Estados Unidos acreditou, ao julgar um processo societário envolvendo a ferrovia CSX, ter encontrado no Securities Exchange Act uma forma de questionar os investidores que montam posições usando o TRS. É a figura do beneficial owner, o detentor do poder de voto ou de alienação dos papéis, que deve divulgar sua posição — e sua intenção — quando ela for superior a 5% das ações da companhia.
A causa chegou até as mãos do magistrado Lewis Kaplan, após a ferrovia mover ação contra dois fundos hedge, o TCI e o 3G Capital Partners. A acusação era de que, a fim de conquistarem discretamente cadeiras no conselho, as duas carteiras se uniram para, aos poucos, alcançar uma posição de 21%. Desse total, 12,3% eram resultado de contratos de TRS montados com vários bancos de investimento. Separadamente, cada fundo tinha posição inferior a 5%. O juiz entendeu, assim como a CSX, que a motivação econômica dos bancos em manter os clientes os faria votar de acordo com o interesse dos fundos.
Mesmo identificando a atuação orquestrada da dupla, Kaplan não a impediu de participar da assembleia anual da CSX. Isso deveria ser feito pela Securities and Exchange Commission (SEC), apontou o magistrado. A resposta da autarquia frustrou Kaplan e a companhia. Por meio de uma carta pública, o diretor Brian Breheny escreveu que celebrar um TRS “não é o suficiente para ser enquadrado como um beneficial owner.” Dos cinco candidatos ao conselho que os “bancos” sugeriram, quatro foram eleitos.
No Brasil, não há relato sobre investidores que tenham se utilizado do TRS para influenciar assembleias. Questionada se, no mercado brasileiro, um banco de investimento poderia votar de acordo com o interesse de seu cliente — como ocorreu na CSX —, a área técnica da CVM disse somente que “qualquer titular de ações pode exercer os direitos a ela inerentes previstos em lei e no estatuto social” da companhia.
Outra fonte, um advogado que trabalhou por alguns anos na CVM, acha pouco provável que o TRS crie riscos societários nas companhias brasileiras. A regulamentação as protegeria, na opinião dele. Mais especificamente a Instrução 358. O artigo 12, que trata da divulgação de posições acionárias relevantes, prevê atuações orquestradas dos participantes do mercado. Isso porque o cômputo da posição deve levar em conta também a participação detida de forma indireta, como fizeram os fundos no caso da CSX. Mas só saberemos, de fato, se essa peça poderá ser montada no Brasil, quando alguém tentar produzi-la.
A pouca preocupação que o TRS desperta na CVM reside em outra característica do mercado brasileiro. Temos poucas companhias sem controlador definido, diferentemente dos Estados Unidos. Dessa forma, o risco de pequenas posições possibilitarem um takeover é raro.
Caso CSN dividiu o colegiado da CVM
Liberar a CSN de cumprir com dois artigos da Instrução 10 dividiu opiniões. A começar pelos membros do colegiado da CVM. A decisão veio com um placar apertado a favor do pleito da siderúrgica, que pedia para ultrapassar o limite de 10% das ações em circulação mantidas em tesouraria e realizar a compra fora de bolsa. Três membros — a presidente Maria Helena Santana, o relator Marcos Barbosa Pinto, e o diretor Eliseu Martins — concordaram em abrir a exceção. Posicionaram-se contra Eli Loria e Otávio Yazbek, além de alguns advogados especializados em direito societário. O voto vencedor, de Barbosa Pinto, teve um forte apelo prático. Como a CSN mantinha em tesouraria 7,8% das ações, a companhia poderia fazer seguidas compras de, no máximo, 2,2% dos papéis em circulação, cancelá-los, para, em seguida, comprar mais 2,2% e repetir a operação. Parte considerável do montante mantido em tesouraria não pode ser cancelada por força de um bloqueio judicial vigente desde 2007, consequência de uma disputa fiscal da companhia com o governo federal. “Não vejo por que impor à CSN o custo de realizar essas aquisições e cancelamentos sucessivos”, escreveu o relator em seu voto. A compra fora de bolsa foi pelo preço médio dos 30 pregões anteriores. No fim, o relator fala em “ajustar nossas regras à situação peculiar da companhia”. “A decisão é absurda”, resume um advogado do Rio de Janeiro. A fonte diz que o ponto “inaceitável” da decisão é a CVM desrespeitar a própria regra. “É um incentivo para que outras companhias desconsiderem o limite.” A instrução, no seu artigo 23, permite à CVM autorizar operações fora das regras “em casos especiais e plenamente circunstanciados”. Mas o diretor Yazbek não viu essas características na operação. Em seu voto, discorda do ajuste nas regras em benefício da CSN, por não ver riscos de mercado. O aumento da venda dos papéis e, consequentemente, a queda no preço “seriam progressivamente absorvidos, dada a excepcionalidade da venda”. Para Yazbek, esse era um risco da operação presumivelmente sabido pela CSN. O argumento do diretor tem como base a responsabilidade das partes privadas, ou seja, o contratante e o contratado assinaram o acordo sabendo dos riscos que cada um assumia na operação. (M.L.) |
Acesse o estudo The New Note Buying: Empty Voting and Hidden (Morphable)
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