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Incorporação envolvendo ações resgatáveis gera controvérsia
Estruturas como a de Fibria-Suzano suscitam incertezas quanto à aplicação da Lei das S.As.
Incorporação envolvendo ações resgatáveis gera controvérsia

Ilustração: Rodrigo Auada

Mesmo sendo supostamente fundamentadas nos princípios de equidade e de conciliação de interesses, algumas operações recentes de fusão e aquisição no Brasil viram alvo de polêmica por serem incongruentes com aspectos da Lei das S.As. A união de Fibria e Suzano e o modelo proposto inicialmente pela Gol para incorporar as ações da Smiles fizeram os agentes do mercado de capitais se questionarem em relação à aplicação do texto da lei às estruturas desenhadas. Os dois processos propunham que acionistas minoritários trocassem uma parcela de sua participação por ações resgatáveis — papéis que, por definição prévia, serão recomprados e pagos com dinheiro. Não seria essa determinação capaz de ferir o propósito da própria incorporação, colocando como obrigatória a venda das ações, restando aos acionistas contrários à operação apenas o direito de recesso?

A incorporação de ações é um dos tipos de transações mais controvertidos. Não à toa, a Comissão de Valores Mobiliários (CVM) está sempre em busca de alternativas e de novos parâmetros para deixar as operações mais fiéis ao que estabelece a remendada legislação do mercado de capitais. Nesse processo, conta com a contribuição de iniciativas de autorregulação, como o Comitê de Aquisições e Fusões (CAF), para limitar práticas abusivas.

Quais medidas a CVM tem adotado para impor limites e evitar abusos nessas transações? Quais os reflexos de possíveis abusos para os investidores? Chegou o momento de a Lei 6.404/76 ser, mais uma vez, atualizada? Essas e outras questões foram centrais no Grupo de Discussão promovido pela CAPITAL ABERTO com a participação de Arthur Penteado, sócio do Machado Meyer Advogados; Evandro Pontes, professor do Insper; Mauro Cunha, presidente da Associação de Investidores no Mercado de Capitais (Amec); e Vanessa Brenneke, diretora do CAF. Confira a seguir os principais momentos do debate.

CAPITAL ABERTO: Como a incorporação de ações se insere no cenário atual de reorganizações societárias?

Arthur Penteado: A incorporação de ações é uma das formas disponíveis mais importantes para se fazer operações de fusão e aquisição de companhias abertas. Nela, os acionistas da incorporada necessariamente migram para a base acionária da incorporadora, caso a maioria aprove a transação. Ocorre que a Lei das S.As. já não tem os parâmetros adequados para lidar com a questão. O remédio que a lei propõe ao acionista que não concorda com a operação é o direito de recesso, baseado no valor patrimonial, normalmente muito menor do que o valor de mercado das ações. Nos últimos anos, a CVM tentou analisar os casos com base em precedentes.

Em 2006, por exemplo, o Parecer 34 consolidou a interpretação de que se houver algum tipo de benefício particular para o acionista controlador de qualquer uma das sociedades ele não deveria votar nas seguintes situações: quando controladores e minoritários  têm a mesma espécie de ações, mas recebem valores diferentes; quando eles têm ações diferentes e recebem valores diferentes sem que a avaliação seja baseada em laudo; quando o tratamento é diferenciado entre os não-controladores [detentores de ONs e PNs]. Dois anos depois saiu o Parecer 35, que trata da incorporação de sociedades, de ações e de reorganização societária envolvendo empresas do mesmo grupo. Foi quando se criou o comitê independente, uma das formas pelas quais a CVM sugere que a incorporação aconteça. Mas ele não é necessário se o minoritário aprovar a operação e tiver a mesma vontade social que o majoritário. A alternativa que mais temos visto no mercado é a negociação via comitê independente.

 

 

CAPITAL ABERTO: E como evoluiu o direito societário nesse sentido?

Arthur Penteado: Houve uma grande discussão no mercado: por que determinada reorganização foi desenhada como uma incorporação de ações e não como uma oferta pública [de aquisição de ações]? Numa oferta pública, o minoritário tem o direito de vender suas ações, mas não é obrigado a fazer isso — o que não seria possível em uma incorporação. É por esse motivo que normalmente vemos operações de incorporação. Afinal, com a aprovação da maioria, esse modelo dá uma segurança maior de que não haverá mais base acionária na companhia incorporada. Também se discutiu o fato de a incorporação de ações ter como consequência um fechamento de capital, o que deveria ser seguido de uma relação de troca com preço justo. Hoje essa discussão está superada e não necessariamente há um preço justo, mesmo com as relações de troca sendo estabelecidas com base no valor econômico das empresas.

Existe ainda uma nova modalidade de incorporação de ações, que envolve ações preferenciais resgatáveis. É o que está acontecendo com os dois principais casos atuais: a fusão entre Suzano e Fibria e a incorporação da Smiles pela Gol. O acionista da incorporada recebe, na operação, dois tipos de ações: a da incorporadora e uma PN resgatável dessa incorporadora, recebendo um valor em dinheiro. A relação entre esses dois tipos pode ser de proporções diversas — no caso da Fibria, foi de 80% de PNs da Suzano, por exemplo. De todo modo, o cenário vem melhorando e as operações têm sido propostas de forma mais consciente e igualitária, sem benefício particular para o controlador.

CAPITAL ABERTO: Como avaliam essa evolução?

Mauro Cunha: Falta vontade de se defender o mercado de capitais. Os processos ficaram mais complexos e sofisticados, mas os abusos permaneceram iguais ou até piores. Foram criados vários mecanismos e formalidades que, na prática, continuam deixando tudo acontecer de forma que, ao se investir na ação de uma empresa brasileira, não há a segurança de se estar comprando uma fração ideal daquele fluxo de caixa. Há a possibilidade de um acionista ser expulso da companhia a qualquer momento, por exemplo. Talvez esteja no artigo 252 da Lei das S.As. [“A incorporação de todas as ações do capital social ao patrimônio de outra companhia brasileira, para convertê-la em subsidiária integral, será submetida à deliberação da assembleia-geral das duas companhias mediante protocolo e justificação”] a maior brecha da nossa legislação. Ela permite transferência de valor de investidores de mercado para investidores tomadores de decisão. O acionista fica sem ter o que fazer sobre o direito de recesso, perdendo a vinculação com o valor real da companhia.

Esse artigo foi profundamente alterado ao longo do tempo: ele é cheio de remissões, sendo cada uma delas uma oportunidade para se fingir que o mercado de capitais está sendo protegido. É claro que há operações excelentes, mas existem também abusos. Logo que comecei a trabalhar no mercado de capitais, eu tinha a ilusão de que conseguiríamos separar as empresas “boas” das “ruins”, tomando atitudes condizentes com cada uma delas. Mas tinha me esquecido da teoria dos jogos: na última rodada, vão roubar. É aqui que entra a necessidade da regulação. Defendo o mercado e a liberdade, mas o regulador precisa atuar exatamente nos momentos em que as regras mercadológicas são insuficientes.

Evandro Pontes: Um dos problemas é que a lei trata como se fossem a mesma coisa diferentes tipos de incorporação de ações, dependendo da estrutura societária.


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CAPITAL ABERTO: Existe uma tendência à uniformização dos parâmetros, feita ao longo dos anos. Falta um dispositivo legal mais definitivo, para que a incorporação de ações se alinhe a todos esses fatores?

Mauro Cunha: O que precisa ser respeitado quando se faz uma operação societária é, em primeiro lugar, a crença que foi depositada sobre determinada empresa, o fluxo de valor comprado. Caso isso seja retirado de determinado sócio ou acionista, é necessário se seguir o que está na lei sobre a questão de conflito de interesses e benefícios particulares. Quem é contraparte da companhia não pode votar. Mas a lei é escrita de forma muito complexa; os casos foram se avolumando, os pareceres e decisões dos reguladores foram sendo colocados de forma a permitir que a transação aconteça, mesmo havendo conflito. O caso da Gol e da Smiles é um exemplo disso. A companhia pretendia usar o Parecer 35 da CVM [que estabelece deveres fiduciários aos administradores nas operações de fusão e aquisição] para conseguir participar da votação. A regra acaba se tornando inútil, de certa forma.

Estamos vivendo um momento dramático e determinante para o mercado de capitais no País. Há uma safra de operações sendo anunciadas, que utilizam características muito parecidas: incorporação de ações, preferencial resgatável, operações com partes ligadas. Tudo isso está acontecendo e os investidores estão estupefatos, indo comprar ações em outros lugares. Eles não acreditam mais no Brasil. Vivemos isso no final da década de 1990 e a CVM, em boa hora, editou a Instrução 299 [que dispõe sobre divulgação de informações na alienação de controle e disciplina ofertas públicas para aquisição de ações]. Foi ela que estancou a onda de fechamentos brancos de capital que acontecia no País. A norma foi melhorada com a Instrução 345 [que alterou a Instrução 299] e depois com a Instrução 361 [que regulamenta o procedimento aplicável às OPAs e o seu uso para cancelamento de registro de companhia aberta, por aumento de participação de acionista controlador, por alienação de controle, para aquisição de controle quando envolver permuta por valores mobiliários], que gerou avanços significativos, mas já está velha.

CAPITAL ABERTO: Colocar a operação como oferta pública seria uma opção nesse caso?

Mauro Cunha: A oferta pública carrega a característica de voluntariedade. Isso dá legitimidade para a transação, da mesma maneira que se faz a efetiva escolha da maioria e da minoria em assembleia com impedimento dos acionistas realmente conflitados, sem entrar nas definições de benefícios particulares ou interesses conflitantes. A decisão, então, passa a ser legítima também. Uma transação como a da Smiles e da Gol não teria nenhuma reação dos investidores se fosse colocado como a operação seria feita, o que seria oferecido para os acionistas em assembleia e que o controlador não votaria. A realidade é que não somente ele está votando, mas está fazendo isso na assembleia que mudou o estatuto para colocar as regras do jogo e na escolha dos membros do comitê independente.

CAPITAL ABERTO: Quais os principais problemas da legislação que precisam ser revistos, readequados?

Mauro Cunha: Em um artigo da Amec, citamos alguns comentários de Robert Jackson, professor da Universidade de Columbia que veio ao Brasil para um evento da CVM. Ele fala um pouco sobre a evolução dessa temática no País e nos Estados Unidos, onde também há esse problema. Segundo ele, ficou claro que é cada vez mais difícil julgar a legalidade e a correção de determinada operação sem analisar seu mérito. A CVM tem mudado a sua abordagem, olhando o mérito da transação pelos aspectos de equidade e valor justo; mas ela continua se recusando a discutir valores, o que seria totalmente necessário para se fazer um laudo de avaliação correto. Ele também diz que a fórmula escolhida pelos reguladores e autorreguladores tem sido a instituição de uma rede de formalidades que inclui processos aparentemente diligentes, mas que não conseguem atingir seu objetivo efetivo de tratar com justiça cada uma das partes. A Amec tem questionado a CVM sobre quem responde pelos laudos. Na Lei das S.As., isso está no artigo 8º. O parágrafo 6º desse artigo diz que o avaliador é responsável pelos prejuízos causados, mas é um conjunto vazio. Desconheço casos de avaliadores desse tipo de operação que tenham sidos responsabilizados pelos prejuízos causados aos investidores.

CAPITAL ABERTO: E o professor sugere possíveis ações para melhorar o cenário?

Mauro Cunha: De acordo com Jackson, para o conceito de maioria da minoria atingir seu objetivo, ele precisa ser tratado de maneira cristalina. Se algum acionista interessado no negócio direta ou indiretamente conseguir participar dessa deliberação, isso macula de forma irremediável o mecanismo, passando a jogar contra seus próprios objetivos. Não apenas não consegue o resultado almejado, como também serão referendadas falsamente as conclusões da transação. Pensando nesses comentários e retomando o Parecer 34, vemos que existem acionistas interessados votando nessas operações com todo tipo possível de conflito econômico. Estamos fazendo no Brasil a importação dos piores aspectos e características do mercado global.

CAPITAL ABERTO: O CAF tem, em parte, o intuito de preencher algumas dessas lacunas legais por meio da autorregulação. Ainda há resistência de companhias para que esse objetivo se concretize? As discordâncias sobre o tema interferem na forma como as empresas se relacionam com o comitê?

Vanessa Brenneke: O CAF é uma entidade de autorregulação nascida de solicitação do mercado e da CVM, para que se possa ir além da lei. Vemos que os grandes problemas aconteceram até 2009, ano em que a CVM sugeriu a criação de uma entidade de autorregulação. O período foi um pesadelo não apenas para as reorganizações societárias, mas também para as ofertas públicas.

Como somos uma entidade de autorregulação, existe um tempo para os participantes de mercado nos perceberem. Os investidores têm uma receptividade bastante interessante, e essa atração será a ignição para que as companhias decidam aderir. Na nossa lógica, havendo adesão ou submissão específica, qualquer participante de mercado poderá apresentar as suas razões, seja para pedidos de esclarecimento ou para mostrar que existe uma quebra de princípio ou regra do comitê.

CAPITAL ABERTO: Como vocês vêm atuando?

Vanessa Brenneke: Precisamos lembrar que somos parte do mercado brasileiro e que ele não é único do mundo. Portanto, para os participantes de mercado virem até nós, para as companhias abertas continuarem abrindo capital aqui e não lá fora, o mercado brasileiro precisa ter um escopo regulatório que faça sentido para todos. O perímetro regulatório do CAF envolve as ofertas públicas de aquisição (OPAs) e as reorganizações societárias de companhias que se submeterem ao CAF. A autorregulação não pode ser contrária à lei: deve oferecer um parâmetro mais rígido onde há um vácuo na legislação. Os parâmetros são fundamentados em duas alternativas possíveis: laudos de avaliação ou comitê independente. Esse comitê é formado por 11 membros eleitos de forma independente, que analisam e fazem um “teste de sanidade” no laudo de avaliação a fim de avaliar se o preço e a metodologia fazem sentido, por exemplo. Para reorganizações societárias entre partes relacionadas, em que há polos de poder entre duas companhias, existe um procedimento específico e diferente da lei, mas não contrário a ela.

CAPITAL ABERTO: Como ocorrem ambos os procedimentos para o caso de reorganizações entre parte relacionadas?

Vanessa Brenneke: No caso em que há laudo de avaliação, há uma assembleia especial para deliberação. Acionistas, participantes de mercado e minoritários terão voto para concordar ou não com o laudo de avaliação. Caso não exista concordância, é feita uma segunda versão, podendo haver uma terceira caso nenhum dos dois primeiros seja aprovado. Quando se opta pelo comitê independente, cada uma das partes deve formar o seu próprio comitê com membros eleitos pela maioria da minoria, o que oferece um polo de negociação. Nesse caso, o papel do CAF é verificar a efetividade da negociação, mas continua cabendo à assembleia decidir sobre a operação. Tudo isso é feito tendo como perspectiva os princípios do código CAF: o tratamento deve ser igualitário e equitativo entre os acionistas; a decisão final fica na mão dos acionistas, não da administração. Além disso, não pode haver abuso de direito ou manipulação de preço.

CAPITAL ABERTO: Arthur Penteado nos trouxe um viés mais otimista sobre o cenário e sua evolução, enquanto Mauro Cunha expôs alguns problemas e contrapontos. Quais as soluções para esse arcabouço, no meio desses dois pontos de vista apresentados neste debate?

Evandro Pontes: Tenho pouca simpatia pela Lei das S.As, por achar sua essência ruim e problemática. Ela cria mecanismos de forma que, ao longo do tempo, o mercado de capitais vai praticamente chegando a um limite, não conseguindo mais nenhum tipo de conciliação. Basta estar presente em determinada classe de ações para se estar em uma situação de conflito — já se pressupõe o conflito na largada. Isso é marxismo, e levar características marxistas para dentro do mercado de capitais é horrível.

A Lei das S.As. precisa ser completamente revista, assim como nosso direito societário, os parâmetros utilizados para construí-lo e nossa estrutura de mercado de capitais. Pela própria forma como o direito societário foi sendo construído e evoluindo, em determinado momento formam-se fissuras, livres de qualquer conceito de conciliação. É isso que gera a necessidade de se lançar mão de artifícios como a maioria da minoria, por exemplo. A proposta em si é contraditória.

CAPITAL ABERTO: Então a legislação peca na própria base do direito societário?

Evandro Pontes: O direito societário funciona por equidade, não por igualdade. Essa é a razão pela qual o investimento é em equity: equidade tem um determinado risco, enquanto a igualdade tem risco zero. A equidade é a igualdade de meios, não de resultados, e é por isso que o direito societário se baseia nela. É impossível promover o mesmo resultado para acionistas em situações jurídicas diferentes, mas há como proporcionar a mesma oportunidade. Acho totalmente sadio esse ambiente de incorporação de ações. O que eu acho questionável é o investidor, seja ele controlador ou não, ter um enorme apego pelo investimento. Se eventualmente ele for pago com dinheiro, a situação é justa. Não sei se há o direito de o acionista se recusar a sair da companhia. Será que é possível enxugar a base acionária? Não sei, não vejo o acionista controlador sem esse direito. A Lei das S.As. perde a oportunidade de discutir um sistema mais sofisticado de valuation, pois o problema está no recesso, no valor, no mecanismo, na oportunidade dada ao acionista não-controlador para se manter ou não na empresa.


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