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Os riscos do regime de capitalização na previdência
Defendido por Paulo Guedes, sistema gerou efeitos perversos no Chile
Os riscos do regime de capitalização na Previdência

Ilustração: Rodrigo Auada

O governo Bolsonaro já tem uma proposta para a reforma da Previdência, enviada no último dia 20 de fevereiro ao Congresso Nacional. Mas ninguém no Brasil é ingênuo a ponto de achar que ela vai sair do Legislativo do mesmo jeito que entrou. Ao longo das negociações pode acontecer de tudo — inclusive nada. Assim, embora o plano do Executivo tenha uma forma, é válida a continuidade das discussões sobre pontos específicos — e fundamentais —, como o da incorporação da capitalização ao regime brasileiro, menina-dos-olhos do ministro da Economia, Paulo Guedes. Para tanto, nada melhor que uma análise da longa experiência chilena, que fornece os prós e contras desse mecanismo de arrecadação, antagônico ao sistema de repartição vigente no Brasil.

O sistema de capitalização, em linhas gerais, envolve a criação de contas individuais nas quais os contribuintes (e, às vezes, os empregadores) depositam recursos que, avolumados por constantes aportes e rendimentos, transformam-se, pelo menos na teoria, em renda na aposentadoria — e só para o titular da conta. Já o sistema de repartição prevê recolhimentos mensais de trabalhadores e empregadores, que ficam sob gestão da Previdência; os recursos acumulados pagam benefícios de maneira difusa, para as pessoas que em dado momento estão se aposentando. A principal vantagem do primeiro para o País seria o empurrão para a urgente eliminação do déficit da previdência, que corrói as contas públicas, à medida que cada pessoa passaria a ser responsável por guardar dinheiro para o próprio futuro.

O que aconteceu no Chile, entretanto, serve de alerta: a capitalização, pelo menos em sua versão “raiz”, impediu que fosse cumprido o propósito do sistema previdenciário — prover recursos para as pessoas se manterem quando não podem mais trabalhar. Por lá, o que se vê hoje, quase 40 anos depois do início do modelo, é uma geração de idosos pobres, cujas aposentadorias não cobrem necessidades básicas. Estima-se que, em média, a maioria dos aposentados chilenos receba 40% do valor do salário mínimo (que no país está em torno de 440 dólares, pelo câmbio atual cerca de 1.630 reais). A título de comparação: deixando de lado o fato de que o poder de compra de cada uma das moedas é diferente, os aposentados chilenos recebem o equivalente a 660 reais — bem menos do que os brasileiros da base do sistema previdenciário auferem mensalmente. O piso previdenciário, referente ao mínimo dos benefícios pagos pelo Instituto Nacional do Seguro Social (INSS), está em 998 reais.

“Ter uma geração descoberta pela previdência, como ocorreu no Chile, não é interessante nem para o empregado, nem para as empresas e nem para o Estado”, diz Antonio Gazzoni, diretor institucional da consultoria Mercer. O sistema de capitalização puro rompe com a chamada solidariedade intergeracional, uma espécie de pacto social que legitima o direcionamento dos recursos dos mais jovens para os mais velhos — as contribuições dos primeiros pagam as aposentadorias dos segundos. Nesse cenário, o Estado deixa de ser o mediador dessa solidariedade e transfere o papel de provedor para os próprios cidadãos. O modelo não é deficitário dos pontos de vista financeiro e atuarial. Se há déficit, é social.

Custo alto

Mesmo que, por aqui, não se espere a substituição integral da repartição pela capitalização, como ocorreu no Chile, e sim a coexistência entre os dois sistemas, a experiência chilena suscita reflexões sobre o que pode acontecer com a parcela de pessoas que eventualmente sejam transferidas para a capitalização.

Quando se fala em capitalização, o sistema de gestão que logo vem à mente é o privado: contas individuais, por meio de previdência privada aberta (PGBLs e VGBLs) ou fechada (fundos de pensão), e com planos de contribuição definida. A proposta de emenda constitucional (PEC) enviada pelo governo Bolsonaro ao Congresso prevê a criação do sistema da capitalização como mecanismo complementar de adesão facultativa, mas suas características teriam de ser estabelecidas num futuro projeto de lei complementar. O valor da aposentadoria, nesse modelo, depende das contribuições e da rentabilidade dos investimentos. Quando o contribuinte chega à data de aposentadoria, o saldo acumulado é convertido numa renda futura. A depender das condições de mercado na hora de pendurar as chuteiras, a renda pode ser maior ou menor — e um dos fatores que influenciam essa conta é a taxa de juros.

A opção chilena — ou imposição, uma vez que corria o ano de 1981 e o país estava sob a ditadura do general Augusto Pinochet — foi justamente a migração do sistema de repartição simples para um de capitalização totalmente privado, com planos de contribuição definida. O grande problema inicial desse tipo de mudança diz respeito ao custo. Se a geração que vai se aposentar depende das contribuições de quem está na ativa para receber a aposentadoria, e essas contribuições são destinadas para as contas individuais, quem paga a conta dessa geração mais velha? Esse é o custo da transição do sistema. “É muito difícil, numa democracia, fazer com que a sociedade suporte essa despesa”, observa Gazzoni.

Frustração

No Chile, a mudança foi possível não só pela facilidade proporcionada pela ditadura: o governo Pinochet, ao contrário do governo Bolsonaro, tinha superávit fiscal. Isso permitiu que o Chile, na época, criasse bônus para capitalização das contas individuais. Professor da Fundação Getulio Vargas (FGV), Kaizô Beltrão destaca ainda que, ao contrário do que se imagina, a capitalização era obrigatória para os ingressantes no sistema, mas não para aqueles que já estavam no mercado de trabalho, que podiam escolher entre o modelo antigo e o novo. Para incentivar a migração, ainda de acordo com Beltrão, as contribuições que antes eram feitas pelos empregadores foram incorporadas à remuneração dos funcionários. Diante da possibilidade de um aumento real de salário no curto prazo, houve uma enorme adesão à capitalização pelos trabalhadores. Porém, no longo prazo, a vantagem para esses cidadãos se mostrou ilusória.

Um dos problemas do sistema chileno foi justamente a ausência de contribuições por parte dos empregadores, dizem os especialistas. A contribuição pelos trabalhadores era (e ainda é) compulsória, estipulada em 10% do salário, mas cada um conta apenas com o próprio trabalho para juntar recursos para o futuro. Quando o país foi atingido por crises e o desemprego bateu à porta, os trabalhadores não conseguiram manter regularmente suas contribuições para o fundo de aposentadoria. “Muitos não tiveram uma vida linear, com acesso ao mercado de trabalho formal e a salários constantes”, ressalta Vinicius Müller, doutor em história econômica e professor do Insper.

Sem recursos suficientes para se manter na velhice, o trabalhador posterga a idade para a aposentadoria, o que gera um outro problema: o mercado de trabalho precisa absorver a mão de obra idosa. Outro complicador com o qual os brasileiros podem se deparar, acrescenta Gazzoni, e que na época não foi vivenciado pelos chilenos, é a dissolução cada vez maior dos vínculos empregatícios formais. Sem carteira assinada, essas pessoas já precisam fazer por sua conta o pé de meia.


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Educação financeira

Para que funcione bem, o sistema de capitalização também depende da boa gestão dos recursos e de educação financeira. Esta é essencial para que o trabalhador não cometa erros básicos na hora de investir, como manter boa fatia da reserva aplicada em renda variável às vésperas da aposentadoria. Sem falar em deslizes como a tendência de aumentar o consumo no presente em detrimento da renda futura.

A gestão dos recursos é mais uma questão problemática no Chile. Por lá, as taxas cobradas pelas administradoras privadas de fundos de pensão (AFPs) são altíssimas. “São da ordem de 20%”, destaca Müller. No início, os investidores puderam contar com a concorrência entre as APFs. Eram cerca de 40 disputando os recursos. Mas, aos poucos, a mão invisível do mercado deixou de funcionar a contento e a concorrência se esvaiu graças a um movimento de concentração. Assim, as taxas deixaram de ser competitivas. Nesse contexto, a portabilidade — faculdade de se transferir os recursos de uma APF para outra — tampouco adiantou. Atualmente, a Superintendencia de Pensiones (órgão que representa o Estado chileno e os interesses dos contribuintes e aposentados junto ao sistema de pensão privado) fiscaliza apenas as seis APFs que sobraram. “O sistema precisa contar com uma governança e com a fiscalização do governo, de forma que se impeça a concentração do mercado e a cobrança de taxas abusivas”, defende Gazzoni. Também seria importante fiscalizar a profissionalização dos gestores, considera.

Desempenho ruim

Beltrão cita ainda outro problema, causado pelo enorme afluxo de dinheiro proveniente dos trabalhadores chilenos. “Acreditava-se que os recursos da poupança das pessoas iriam para o financiamento de investimentos produtivos, mas grande parte foi para títulos do próprio governo”, afirma. “Além disso, o país tinha um mercado muito restrito e o ingresso de recursos em busca de aplicações provocou inflação dos ativos.” Ainda de acordo com professor, a rentabilidade dos investimentos deixava a desejar. Isso porque, apesar da existência de produtos de diferentes graus de risco, dentro de uma mesma classe os produtos eram praticamente uniformes e a conquista dos investidores se dava mais pelas campanhas publicitárias do que pela qualidade da gestão.

Todos esses problemas forçaram uma revisão do modelo. O atual presidente, Sebastián Piñera (por coincidência, irmão de José Piñera, que empreendeu a reforma da época de Pinochet), agora tenta emplacar a elevação da contribuição. As empresas passariam a contribuir com 4%, enquanto o trabalhador permaneceria com 10%. Na avaliação de Gazzoni, a contribuição patronal ajuda, mas o país continuaria sem um benefício mínimo mutualista que servisse como amparo social. Não à toa, muitos defendem uma reforma mais profunda. O movimento “No más APFs” advoga a volta ao sistema de repartição, público, com contribuições das pessoas, do Estado e das empresas.

Apesar de não ter servido para o propósito de prover uma aposentadoria digna para a maior parte da população, o sistema chileno também teve seu lado bom, ressalva Müller. “Parte do crescimento econômico chileno e do equilíbrio das contas públicas nas últimas décadas pode ser creditado ao sistema de capitalização na previdência. Como em todas as experiências liberais, a economia ganha mais dinâmica e a geração de riqueza aumenta. Mas a desigualdade também cresce”, pondera. De acordo com a Superintendencia de Pensiones, o patrimônio dos fundos de pensão chilenos em 2017 era de 210 bilhões de dólares e representava 74% do PIB. No Brasil, a previdência fechada tem patrimônio de 901 bilhões de reais (dados de novembro de 2018, da Abrapp) e a aberta de 826 bilhões de reais (dados de outubro de 2018, da Fenaprevi). Juntas, elas corresponderiam a cerca de 25,2% do PIB de 2017.

Beltrão, da FGV, cita uma vantagem interessante do sistema de capitalização, quando observada de forma isolada. “Ele faz as pessoas saberem quanto custa o que elas querem. No sistema de repartição, cada um quer receber mais e pagar menos. Na capitalização, há uma correlação forte e direta entre o que se paga e o que se recebe. Ela aumenta a consciência das pessoas de que o dinheiro não cai do céu”, avalia.

Uma das questões ainda sem resposta clara é se a capitalização seria a única forma de se equacionar o déficit da Previdência no Brasil. Ou se as mudanças paramétricas (que estabelecem as condições para se fazer face aos benefícios) dariam conta da tarefa. “Não mexer no sistema me parece uma decisão equivocada, pois o modelo de repartição com benefícios definidos, atualmente praticado no Brasil, já se mostrou totalmente inviável”, considera Gazzoni. Para ele, a sustentabilidade do sistema deve envolver duas frentes: mudança das condições de elegibilidade aos benefícios e introdução da capitalização.

Na opinião de Müller, a discussão, no Brasil, deve envolver uma questão mais ampla: para que serve a Previdência? Para garantir dignidade a quem não tem condições de continuar trabalhando no mesmo ritmo ou para reduzir a desigualdade? Essas duas funções podem ser conciliadas? Olhando pelo prisma liberal, ele diz que a Previdência não deveria ser usada como instrumento de política de redução de desigualdade. “Em tese, o modelo de repartição seria menos desigual. Mas também não estamos vendo isso na prática, no Brasil, uma vez que grupos de interesse se organizam para tomar parte maior do bolo. Os grupos poderosos acabam reproduzindo a desigualdade por meio da Previdência.”

Nesse contexto, a adoção do regime de capitalização torna-se ainda mais controversa (leia também a seção Antítese). O modelo embute riscos sociais e, assim como no Chile, pode gerar efeitos deletérios nada desprezíveis.


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