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Jorge Caldeira critica liberalismo autoproclamado
Para historiador, esse é um grave problema da era Bolsonaro
Jorge Caldeira

Ilustração: Julia Padula

O que importa é ter uma boa teoria. Se os fatos não se enquadram, o problema é dos fatos, não da teoria. Esse pensamento é uma criação coletiva, com incontáveis seguidores. Seguramente, Jorge Caldeira não é um deles. “História econômica é empiria: de que tamanho foi, como foi, o que aconteceu. Não é disputa de princípios, de filosofias”, afirma o autor de 18 livros — entre eles Mauá, Empresário do Império, A Nação Mercantilista e História da Riqueza no Brasil. Nos seus escritos, o historiador procura interpretar o Brasil pela ótica de uma intensa atividade empreendedora, especialmente entre as classes de menor renda.

Para pesquisar, Caldeira mergulha em milhares de estudos, recorre a processamento digital de documentação, bancos de dados e análise estatística. “Só para escrever O Banqueiro do Sertão eu tive que ler mais livros do que Sérgio Buarque de Holanda pôde ler em sua vida inteira”, ilustra Caldeira. Reconhecendo a importância dos clássicos — o próprio Buarque de Holanda, acompanhado de Caio Prado Júnior e Gilberto Freyre —, se insurge contra as interpretações do País ainda aferradas a construções teóricas que datam, pelo menos, do centenário da Independência e da década do Modernismo. “Um problema grave no Brasil é como ele é interpretado, com base em conceitos de 100 anos atrás. Aqueles clássicos foram formados antes de existir universidade no Brasil!” A pioneira USP é de 1934.

Levado pelo acaso, o bate-papo com o repórter desta coluna aconteceu no Museu de Arte de São Paulo, símbolo de um país que naquele 29 de janeiro de 2019 anelava a modernidade há pelo menos meio século. A data, aparentemente ordinária, acabou também sendo emblemática para a conversa: foi quando o Parlamento britânico aprovou emendas ao mais que controvertido Brexit. Caldeira citou justamente o Brexit como um dos três eventos políticos recentes em que os eleitores votaram para voltar aos idealizados “bons e velhos tempos”. Os outros dois são Donald Trump, com seu jargão “America first”, e a vitória de Bolsonaro com os militares a tiracolo. Em todas essas situações foram criadas expectativas agora confrontadas com a realidade, com os fatos que não querem se ajustar às suas boas teorias. “Bolsonaro é o terceiro da lista, mas é o pior porque o Brasil não está numa situação normal. Está saindo de uma situação muito ruim, com muitas interrogações”, aponta Caldeira.

Mas e quanto à pregação ultraliberal e à escolha de um expoente do liberalismo de raiz como superministro da Economia? Será que o liberalismo clássico cabe no Brasil? O historiador responde que esse é um problema “duplicado” da era Bolsonaro. Isso porque o presidente criou expectativas de uma forma um tanto inédita — via redes sociais, notadamente o whatsapp —, mais próxima da “cultura oral”, que não deixa provas. No lugar de um programa eleitoral apresentado racionalmente, nos moldes tradicionais, entraram tuítes, “zaps” e vídeos no Facebook, sempre com conteúdo passional e personalista. Em segundo lugar, diz Caldeira, não basta bater no peito e se auto rotular liberal, mesmo criando um superministério da Economia e empossando um ultraliberal como Paulo Guedes. Afinal, no Império, o Partido Conservador não era menos liberal do que o Partido Liberal, a República tinha tanto (ou até mais) apreço pelo livre mercado. “A questão não é se proclamar liberal ou não. Aqui, de novo, é a questão das expectativas e da realidade. A questão não é se proclamar, mas como as coisas acontecem, como as instituições se constroem”, assinala Caldeira.

Afinal, sua obra toda mostra que o Brasil já tinha um mercado — e um mercado informal grande — séculos antes de o rótulo liberal se disseminar. O Brasil Colônia também dispunha de dois outros atributos caros às economias ditas liberais: eleições e crédito. “Estamos aqui falando de estruturas muito fortes, mas que não são escritas, não são formais. No Brasil, a instituição central é o costume”, frisa Caldeira, ressaltando dois costumes que atravessaram toda a nossa história: as eleições nas vilas e o fiado.


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Acontece que nem os livros de Ciência Política, nem os de Economia, tratam de um ou de outro. Na biografia do “banqueiro do sertão”, o padre Guilherme Pompeu de Almeida (1656-1713), Caldeira mostra como um empreendedor ganhava muito, muito dinheiro, basicamente vendendo a fiado — modalidade de crédito que ainda hoje representa algo como 20% de todas as vendas feitas no País.

“O Brasil do costume em geral teve um desempenho bem melhor do que o Brasil da escrita”, assevera o historiador. Ele lembra que, em 1800, a economia brasileira se igualava à dos Estados Unidos, era o dobro da de Portugal e, como hoje, apenas um sétimo da atividade era para o mercado externo — os restantes seis sétimos correspondiam a atividades domésticas. Isso apesar de toda a história que se ensina, do primário ao doutorado, sentenciar que o sentido da colonização foi de mandar riqueza para fora, o que teria reforçado nossa pobreza.

Na verdade, quem empobreceu o Brasil não foi o Portugal colonialista, mas o Império que nasceu do Grito do Ipiranga. Num mundo em que a renda per capita crescia 0,9% ao ano, no Brasil cresceu zero sob os Orleans e Bragança, principalmente o segundo. O resultado é que uma economia com o mesmo tamanho da americana em 1800 chegou à década de 1890 equivalendo a 1/15 da riqueza dos americanos do norte. “O governo imperial, que era liberal e pequeno para o tamanho da economia, foi um desastre para o desenvolvimento econômico do Brasil”, frisa o historiador.

Por sinal, o Estado, no Brasil, nunca foi grande proporcionalmente ao tamanho destas bandas. “O governo geral, o do vice-reinado, mesmo somado aos governos locais, era uma casquina que não atrapalhava o desenvolvimento baseado nos costumes”, reforça Caldeira.

Essa dinâmica valeu até 1964, quando as três instâncias do governo consumiam, no máximo, 9% do PIB. “O herói liberal brasileiro, que foi Roberto Campos, jogou isso para 18% do PIB em cinco anos”, recorda. Irônico. Hoje, o Estado tem 40% do PIB, percentual que salta a pelo menos 50% se incluídas a Petrobras e outras estatais. O resultado? Perda do dinamismo da economia brasileira nas últimas quatro décadas, quando comparada ao desenvolvimento da economia do resto do mundo nesse intervalo.

Caldeira observa que, desde o governo do general Ernesto Geisel, a média móvel de dez anos do PIB per capita (medida escolhida por suavizar acidentes da conjuntura) desce em velocidade espantosa: 6%, 7%, até 8% ao ano. Depois de ter crescido mais do que a média mundial de 1890 até 1970, o Brasil perdeu o compasso. “Essa decadência só é comparada à do período Imperial, quando o crescimento do PIB per capita foi zero. E estamos caminhando para ficar pior do que naquela época”, alerta Caldeira.

Então quer dizer que o historiador está pessimista? Diante da pergunta, ele diz que historiadores não lidam muito com otimismo e pessimismo. “A História consiste exatamente em mostrar como todas as expectativas se frustram e se quebram perante a realidade, e também como certos sonhos, às vezes, até se realizam mais do que o sonhador imaginava, também na realidade.”

A despeito de todas as advertências de Caldeira em relação às âncoras dos pensadores clássicos, é irresistível, para este repórter, lembrar a frase que abre O 18 Brumário de Luís Bonaparte, uma das obras mais lidas e comentadas do demonizado Karl Marx (ressuscitado, diga-se, pelos bolsonaristas): “Os homens fazem sua própria história, mas não a fazem como querem; não a fazem sob circunstâncias de sua escolha e sim sob aquelas com que se defrontam diretamente, legadas e transmitidas pelo passado.” Não há como escapar a esse vaticínio.


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