Neste mês de novembro o brasileiro foi às urnas para escolher os próximos nomes que ocuparão os cargos de vereadores e prefeitos pelos próximos quatro anos. As eleições municipais marcam um novo — e desafiador — compromisso de lideranças locais com a mitigação de problemas enfrentados diariamente em centros urbanos do País, muito mais evidentes e graves diante dos efeitos da crise desencadeada pela disseminação da covid-19.
“Além de intensificar problemas anteriores, a pandemia aumentou a complexidade de resolução dessas questões, já que são necessários mais recursos para a área da saúde exatamente num momento econômico de crise”, explica Raquel Cardamone, fundadora da Bright Cities, plataforma disruptiva que identifica problemas e potencialidades das cidades e oferece um banco com pelo menos mil soluções e boas práticas. Mas ela defende que a pandemia teve, consequentemente, um efeito positivo: reforçou ainda mais a importância de se desenvolver cidades a partir de iniciativas inteligentes.
A expectativa é de que isso aconteça tanto no Brasil quanto no exterior. No artigo “Cidades inteligentes após a Covid-19: Dez narrativas”, publicado em julho deste ano, o especialista alemão em planejamento urbano Klaus Kunzmann argumenta que as condições criadas pela pandemia facilitarão, para os governos locais, principalmente europeus, a busca por soluções de cidades inteligentes em áreas como controle de tráfego e prevenção de crimes. Apesar de ser novo, esse mercado de soluções já movimenta globalmente cerca de 408 bilhões de dólares por ano e deve alcançar 651 bilhões de dólares em 2028, segundo a Adroit Market Research.
O Brasil, entretanto, ainda precisa vencer alguns desafios para alcançar o nível de desenvolvimento de cidades estrangeiras nesse tema.
Mais que novas tecnologias
O primeiro é desmistificar o termo “cidade inteligente”, que não se resume à implantação de tecnologias avançadas em centros urbanos. “Se coloco um pequeno sensor para localizar um ônibus na área urbana, então a cidade é inteligente? A resposta é não. Ela pode estar em um nível mais avançado de conexão com o cidadão e contribuir para a mobilidade, mas não é uma smart city”, avalia Elias de Souza, líder da área de Governo e Serviços Públicos e sócio da Deloitte Brasil.
A tradução literal de “smart cities” é uma das responsáveis pelo entendimento superficial do que são cidades inteligentes. Na realidade, a essência dessas cidades é extremamente ampla; o conceito envolve otimização da gestão pública, entrega de serviços públicos de qualidade e facilitação do acesso a esses serviços para melhorar a qualidade de vida de quem vive nas cidades. A ideia é que todo o planejamento estratégico tenha foco no cidadão, em termos de mobilidade, segurança, sustentabilidade, serviços de saúde e oportunidades de trabalho. Não se trata de apenas digitalizar processos, por exemplo — é preciso revê-los completamente.
O problema da ideia “plug in and play”
Por isso, desenvolver o ecossistema de uma smart city envolve ações conjuntas entre os setores público, privado e acadêmico. Também exige um olhar local, que entenda as peculiaridades de cada cidade e crie soluções exclusivas para elas — e, segundo especialistas, está nesse ponto uma das maiores falhas da gestão pública brasileira durante o planejamento urbano.
“É preciso inovar olhando para o problema, não basta pegar uma solução que já existe e ‘plugá-la’. Colocamos soluções tecnológicas caras nas cidades que não fazem o menor sentido. Não fazemos o diagnóstico adequado e não planejamos à longo prazo — essa é a situação no Brasil”, destaca Souza, da Deloitte.
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Nesse sentido, dois exemplos internacionais podem servir de inspiração: as cidades de Boston, nos Estados Unidos, e de Dublin, na Irlanda. Ambas têm um ecossistema de inovação capaz de desenvolver muitas soluções específicas para os problemas de seus moradores. “Boston é pouco falada quando abordamos smart cities, mas tem uma estrutura de dados que é referência no mundo todo. Ela se preocupa em utilizar essas informações para melhorar os serviços públicos e foi criada toda uma estrutura para isso, com muita participação do cidadão”, comenta Cardamone, da Bright Cities.
Ambiente regulatório
Mas, ainda que o Brasil se esforce para criar soluções nacionais ao invés de simplesmente importá-las, o País esbarra no próprio ambiente regulatório. Se em outros países o prefeito é o principal gestor de um planejamento urbano estratégico, capaz de integrar diversas soluções e agentes dentro de um único ecossistema, no Brasil as lideranças locais têm autoridade limitada, sendo dependentes das esferas estadual e federal. Além disso, a visão de longo prazo não é estimulada, e cada novo governo costuma representar uma mudança radical no teor dos projetos urbanísticos.
Fábio J. Ferraz, economista e diretor-executivo da urbeOmnis Cidades Inteligentes e Sustentáveis, relembra o projeto PlaNYC, criado pelo prefeito republicano Michael Bloomberg em 2007 para a cidade de Nova York. O plano estabelecia iniciativas de desenvolvimento sustentável para a cidade cuja implementação se estenderia por 25 anos, muito além do mandato de Bloomberg. “O PlaNYC não só foi mantido pelo prefeito seguinte, o democrata Bill de Blasio, como também foi fortalecido por ele”, diz Ferraz. Citando o livro A falácia do Plano Diretor, do arquiteto Flávio Villaça, Ferraz reforça que o Brasil tem o vício de estruturar planos diretores que dificilmente coloca em prática. “Quando não ficam na gaveta, esses planos vão sendo modificados à revelia das necessidades do momento.”
Em 2017, a BBC News publicou uma reportagem em que simula como seria a cidade de São Paulo caso todos os projetos de urbanismo fossem levados adiante, evidenciando tanto a falta de visão de longo prazo na esfera pública quanto o desperdício de recursos.
E agora?
Ainda que a covid-19 tenha aumentado a complexidade para se solucionar os problemas dos centros urbanos, é fato que algo precisa ser feito. A Agenda 2030 da Organização das Nações Unidas (ONU) espera que 17 Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODSs) sejam cumpridos na próxima década e estima que os países em desenvolvimento necessitarão de 2,5 trilhões de dólares anualmente para atingi-los.
Para Cardamone, da Bright Cities, o foco deve ser colocar o discurso em prática e transformar metas em indicadores mensuráveis para se entender a situação atual das cidades e o que precisa ser feito — o que ajudaria a estabelecer futuras parcerias público-privadas e a reduzir o valor total do investimento em novas soluções.
Recentemente, o United Overseas Bank (UOB), com sede em Cingapura, lançou um framework de financiamento sustentável mais acessível às empresas que contribuem para a criação de cidades inteligentes na Ásia. A estrutura estabelece critérios que empresas devem cumprir para ter acesso a empréstimos vinculados ao conceito de sustentabilidade e facilidades de financiamento comercial. Frederick Chin, head de Wholesome Banking do UOB, afirma que “instituições financeiras podem e devem desempenhar um papel, juntamente com governos e empresas, para ajudar a canalizar mais fundos para o desenvolvimento sustentável”. Para o bem de todos os que, direta ou indiretamente, dependem das cidades mundo afora.
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