No início desta década, quando as questões climáticas e sociais não ocupavam sequer os rodapés das agendas de empresas e investidores, a preocupação com a sustentabilidade era absolutamente secundária. Compra e venda de ações e liberação de recursos para grandes projetos aconteciam independentemente da pegada ambiental ou social, e um mercado para títulos verdes mal existia. Pois passados apenas dez anos a situação se inverteu. Hoje já se estima que as emissões de green bonds — títulos que financiam projetos sustentáveis — totalizem cerca de 660 bilhões de euros, com possibilidade de chegar a 2 trilhões de euros já em 2023. Os dados são de pesquisa da gestora holandesa NN Partners.
A expansão desse segmento é indubitavelmente uma boa notícia, mas tem colocado investidores e gestores de recursos diante de dilemas importantes: vale financiar projetos “limpos” desenvolvidos por empresas que têm problemas em algum dos aspectos ESG (ambientais, sociais e de governança)? Faz sentido um investidor motivado pelas demandas da sustentabilidade comprar um green bond cujos recursos vão para o desenvolvimento de um veículo elétrico, mas emitido por uma montadora que continuará produzindo milhares de carros expelidores de CO2, monóxido de carbono e outros gases de nomes complicados?
Conceito de propósito para green bonds
A questão aqui envolve o conceito de propósito. Pelo menos em tese, os investidores que adotam o recorte ESG estão interessados em usar seu dinheiro para melhorar as condições de vida no planeta — se não fosse assim, poderiam ter muito menos trabalho investindo em ativos “tradicionais”. Em um mundo ideal, portanto, esses investidores não deveriam segregar títulos e empresas emissoras na hora de decidir por um investimento; ambos fariam parte de uma mesma lógica, de uma mesma estratégia.
Um exemplo mencionado por recente reportagem do jornal britânico Financial Times dá bem a ideia das contradições que os investidores estão tendo que enfrentar. Uma companhia estatal de energia elétrica da Arábia Saudita recorreu ao mercado de capitais, emitindo 1,3 bilhão de euros em green bonds, para obter recursos para um projeto de aprimoramento de medidores. Até aí tudo certo. O problema é o fato de o país — controlador da empresa e, em última instância, o emissor do título — não ser exatamente um lugar que respeito os direitos humanos e as premissas ambientalmente corretas nos moldes do que o Ocidente considera adequado. Alguém motivado por indicadores ESG deveria, então, comprar esses green bonds e, indiretamente, financiar um Estado dessa natureza? O que se discute é até que ponto um investidor pode tolerar os comportamentos do emissor do green bond sem ferir preceitos éticos óbvios.
Boicote versus pressão
O raciocínio é parecido com o que se colocou diante dos fundos ESG há algum tempo: simplesmente boicotar empresas poluidoras e mal comportadas em termos sociais, tirando-as do portfólio, ou comprar as ações e pressionar as administrações por uma mudança de postura. No fim das contas, quem compra green bonds quer contribuir para a estruturação de novos caminhos para as companhias, e não para a perpetuação de práticas que piorem as externalidades negativas das operações.
Interessante observar que essa perspectiva é válida tanto para a avaliação de emissores que reconhecidamente tenham envolvimento com práticas questionáveis (como as já mencionadas montadoras de veículos) quanto para empresas que realmente estejam engajadas na garantia de boas condições de vida no mundo. Em outros termos: comprar green bonds envolve uma observação bastante ampla dos projetos, das empresas e seus planos para o futuro, de modo a casar essas informações com os anseios do investidor.
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No Brasil, o mercado de green bonds ainda é incipiente, mas é inevitável que os mesmos questionamentos aportem por aqui. O estágio atual é de fomento patrocinado pelo governo — recentemente, o Ministério do Desenvolvimento Regional (pasta responsável, entre outros segmentos, pelos recursos hídricos do País) anunciou estudos para aumentar as emissões desses títulos. No projeto, conta com o apoio da Climate Bonds Initiative.
De acordo com dados apresentados pela Federação Brasileira das Associações de Bancos (Febraban), as emissões brasileiras de green bonds somaram cerca de 5 bilhões de dólares nos últimos três anos. Ainda é pouco, mas com o impulso da pandemia — que escancarou os efeitos nefastos da exploração desenfreada dos ecossistemas — e da gigante onda ESG o volume tende a crescer muito. Nesse cenário, cabe aos investidores analisarem profundamente os emissores dos green bonds e encararem o dilema: comprar ou não comprar, eis a questão.
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