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Interesses privados em praças públicas
Faz sentido limitar a participação de pessoas autorizadas a operar no capital social de entidades administradoras de mercado?
Interesses privados, Interesses privados em praças públicas, Capital Aberto
Aline Menezes é general counsel do Grupo UBS para Brasil e América Latina

A incursão de magnatas no capital de veículos de comunicação em massa não é nenhuma novidade. Apesar disso, nos últimos meses a grande imprensa e articulistas de toda espécie têm especulado sobre as reais motivações do multibilionário Elon Musk para comprar o controle do Twitter, rede social da qual é um adicto usuário, descrita por alguns como o maior megafone ou a maior praça pública do mundo. De uma maneira geral, seus detratores alardeiam que sua real intenção seria transformá-lo, como bem descreveu um amigo, em um covidário de haters repleto de fake news, em nome de seu singular entendimento do sagrado direito à liberdade de expressão. Isso muito embora se possa contra-argumentar, validamente, que haveria maneiras mais baratas e menos trabalhosas de se fazê-lo. 


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A resposta definitiva a essa indagação ainda está distante de ser conhecida. Mas o episódio prova de forma eloquente que nem mesmo negócios de grande prominência pública estão livres de serem comprados por acionistas privados cujos interesses, por mais paradoxal que possa soar, divirjam dos da empresa adquirida ou coloquem em risco os mais preciosos valores democráticos.  

Por que, então, esse assunto deveria ser alvo de preocupação e tutela estatal — e, mais especificamente, no contexto do mercado de valores mobiliários?  

Vedações e fronteiras 

Explico a razão da pergunta. Desde 2007, as entidades administradoras de mercados convivem com limites de duas naturezas sobre seu capital com direito a voto. O primeiro deles condiciona à anuência prévia da CVM a aquisição por qualquer acionista de participação superior a 15%. O segundo limite, bem mais restritivo, proíbe, sem possibilidade de afastamento, que uma pessoa autorizada a operar em um mercado seja titular de mais de 10% de seu capital.  

A medida se estende aos controladores diretos e indiretos do acionista, bem como às suas controladas, coligadas e pessoas submetidas a controle comum. A Resolução 135, editada pela CVM em junho deste ano em substituição à Instrução 461, trouxe uma inovação relevante a esse cenário: permitiu que entidades administradoras de mercado de balcão deixem de observar a proibição se implementarem medidas para lidar com conflitos de interesses e assegurar a segregação de ambas as atividades (art. 152, parágrafo único).  

Seria conveniente estender essa abordagem às demais entidades administradoras, incluindo, portanto, os mercados de bolsa? E o limite de 10% ainda se mostraria adequado ou seria possível flexibilizá-lo de algum modo? Para colher subsídios técnicos para elucidar essas questões, acaba de ser conduzida pela CVM uma nova rodada restrita de discussões com o mercado.1  

Norte sensato 

A imposição de limites à participação no capital de agentes regulados é infrequente nos domínios da CVM. Esses agentes, assim como os demais setores da atividade empresarial, têm o direito de se beneficiarem das prerrogativas da Lei da Liberdade Econômica. O mínimo que se deve exigir, portanto, é que os fundamentos para sua criação sejam congruentes com o mandato legal da CVM, proporcionais às questões que busca tratar e que inexistam alternativas menos gravosas de fazê-lo. Vale por isso retomar as razões dessa medida tão excepcional aplicável às entidades administradoras. 

Os dois limites têm em comum a preocupação com uma eventual e potencialmente intratável contraposição entre os interesses de certos tipos de acionistas e o interesse público no funcionamento eficiente dos mercados de valores mobiliários. Para acionistas que não sejam pessoas autorizadas a operar, a autorização prévia da CVM para atingir a fatia de 15% busca assegurar que, quaisquer que sejam seus interesses comerciais individuais, mantenha-se, pelo menos, o compromisso formal de permanência do mercado em território nacional e a oferta de condições satisfatórias para participação dos investidores brasileiros. Já quando o acionista for uma pessoa autorizada a operar naquele mesmo mercado, a vedação de 10% expressa a percepção de que os conflitos podem ser bem mais danosos e difíceis de disciplinar. O risco aqui — mais agudo nas estruturas desmutualizadas, especialmente se seu controle se encontrar disperso — é o de que a pessoa com vínculos com o mercado utilize sua participação no capital para colocar a entidade a seu serviço, erguendo barreiras à concorrência ou tratando os demais intermediários de forma não-isonômica. 

Na Europa, cuja arquitetura de mercado tem servido de referência para a CVM em vários de seus aspectos, entidades administradoras de ambientes de negociação só podem operar em seus respectivos mercados como intermediários puros (“agency nly”). Elas são impedidas de realizar negócios de natureza proprietária (cf. arts. 18(4) e 19(5), MiFIDII) — limitação essa que, na prática, acaba por inviabilizar a constituição de mercados por intermediários. O caminho encontrado pela autoridade europeia foi determinar que as atividades de intermediação e a de operação de mercado organizado só possam ser exploradas por um mesmo participante mediante constituição de entidades legais diferentes. 

Mas não só. Deve haver arranjos para evitar o compartilhamento de informações entre entidades, de que são exemplos a contratação de times de gestão e operacionais independentes e a segregação física de instalações, inclusive tecnológica. O uso comum de estruturas e serviços deve ser sempre exceção, de modo que as barreiras ao fluxo de informação sejam respeitadas. Tudo isso sem prejuízo da preservação da principal e mais essencial função de um mercado organizado: a autorregulação dos demais participantes e negócios cursados em seu ambiente.2 A mudança recém-implementada pela CVM para os mercados de balcão está em linha com o regime europeu e parece um norte sensato para os próximos passos. 

Distinção complexa 

Se prevalecer o regime mais relaxado, a manutenção da proibição à participação de entidade administradora no capital de intermediários que atuam nos mercados sob sua supervisão, prevista no art. 13 da Resolução 135, perde não só a razão de ser mas também a lógica. Também se torna discutível a utilidade das limitações impostas ao objeto social de entidade administradora, a não ser que se estenda tratamento equivalente às pessoas autorizadas a operar detentoras de participação relevante em seu capital votante. A busca pela simetria regulatória é um desafio inexorável em matéria de mercado secundário, pois a tão desejada concorrência depende também da percepção de atratividade e proporcionalidade do regime jurídico aplicável às entidades administradoras. É pouco provável que alguém se encoraje a obter esse registro, em especial o mais oneroso, de bolsa, se o custo de observância regulatória se mostrar impeditivo. 

A grande dificuldade em toda essa discussão persiste sendo a ausência de requisitos que permitam diferenciar objetivamente infraestruturas de mercado de seus intermediários. Desde que os mercados deixaram de ser sinônimos dos locais físicos, a tarefa de desenhar essa distinção cabe exclusivamente ao Estado, que deve fazê-lo consciente da gigantesca complexidade de equacionar interesses quase sempre contrapostos, em especial em estruturas desmutualizadas.  

No momento em que essa coluna é escrita, o novo controlador do Twitter já: demitiu mais da metade da sua força de trabalho, trocou toda a diretoria, aventou a possibilidade de pedir falência, perdeu um fluxo expressivo de anunciantes que constituem sua principal fonte de receita, sangra com o êxodo diário de usuários e acaba de anunciar a criação de um sistema de lords and peasants” – denominação dada pelo próprio à proposta de segmentação de usuários em função, entre outros, da contratação de mecanismos de verificação de identidade. O futuro dirá como se comportará o usuário, controlador, juiz, testemunha e executor do que é postado na maior praça pública do mundo. 

* Aline Menezes é general counsel do Grupo UBS para Brasil e América Latina e integrante do Conselho de Supervisão da BSM 


1 A coluna anterior nesta mesma revista tratou da audiência restrita conduzida pela CVM para discutir a metodologia para definição de grandes lotes de ação, definida no começo de outubro. Disponível em: https://www.gov.br/cvm/pt-br/assuntos/noticias/cvm-divulga-metodologia-para-definicao-do-tamanho-dos-grandes-lotes-minimos-art-95-ss-1o-da-resolucao-cvm-135. Acesso em: 07.11.2022.  

2 “Questions and Answers On MiFID II and MiFIR market structures topics”, pp. 39 e 40. Disponível em: https://www.esma.europa.eu/document/qa-mifid-ii-and-mifir-market-structures-topics-0. Acesso em: 07.11.2022. 

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