A indústria de cannabis medicinal tem capturado a atenção de investidores e especialistas em saúde em todo o mundo, devido às suas promissoras aplicações terapêuticas. No Brasil, um cenário intrigante se desenha à medida que o Supremo Tribunal Federal (STF) avança no julgamento sobre a descriminalização do porte de drogas para consumo pessoal.
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Ao retomar o julgamento em 2023, o ministro Alexandre de Moraes afirma que a conduta de adquirir, guardar, ter em depósito, transportar ou trazer consigo a substância entorpecente “maconha” não tipifica o crime previsto no artigo 28 da Lei 11.343/2006. Ele apresenta uma perspectiva que pode ter ramificações significativas para a abordagem legal da posse de substâncias entorpecentes — inclusive, a cannabis medicinal.
Isso porque pacientes medicinais realizam o chamado autocultivo. Para se prevenir contra eventual persecução penal, buscam salvo-conduto judicial através de habeas corpus. Como a decisão dos tribunais não é uniformizada, e nem todos têm acesso pleno ao Poder Judiciário, o resultado são inúmeros pacientes em desobediência civil.
O cultivo da cannabis em território brasileiro tem gerado discussões significativas no contexto da indústria de cannabis medicinal. A autorização para o cultivo da planta desempenha um papel central na garantia de matérias-primas de qualidade para a produção de medicamentos terapêuticos. Um marco notável nesse contexto é o caso da Abrace Esperança, associação pioneira na obtenção de autorização judicial para o cultivo da cannabis no País. O processo judicial tornou-se paradigma e foi recentemente encerrado no Supremo Tribunal Federal, não cabendo mais recursos.
Abertura
O ministro propôs uma faixa específica, entre 25 a 60 gramas de maconha ou seis plantas fêmeas, que presumiria a condição de usuário. Assim, o novo elemento de quantificação poderá afetar a maneira como as autoridades lidam com casos relacionados ao porte de maconha para consumo próprio.
A decisão do STF tem repercussão geral. Ou seja, o que ficar definido irá se irradiar por todo o Brasil, orientando juízes criminais na condução de processos em andamento e também na revisão do regime de cumprimento de pena de milhares de cidadãos que hoje se encontram encarcerados por tráfico de drogas.
O avanço indica a possibilidade de uma regulamentação mais aberta também para a cannabis medicinal, o que tende a aumentar a demanda por produtos relacionados e impulsionar o crescimento das empresas que atuam nesse espaço. No entanto, ainda existem algumas incertezas quanto à forma como a regulamentação será estruturada e quais requisitos as empresas precisarão cumprir.
Questões de propriedade
A interseção entre a indústria da cannabis e as questões de propriedade intelectual tem gerado debates e desafios em diversos países, incluindo o Brasil. A questão central reside na adequação dos canabinoides ao sistema de patentes vigente, que requer critérios como novidade, atividade inventiva e aplicação industrial para a concessão de patentes. Compostos naturais, como os canabinoides, apresentam um desafio único nesse contexto. Sua existência, afinal, é anterior ao processo de invenção. E tal fato levanta questionamentos sobre a originalidade desses compostos e sua elegibilidade para proteção por meio de patentes.
Recentemente, o Brasil testemunhou um acontecimento significativo no campo da propriedade intelectual. A empresa Pratti Donaduzzi teve uma patente revogada pelo INPI em julho de 2021. A farmacêutica tinha até 2036 para explorar a patente, pois entrou com o pedido de registro — válido por 20 anos — em setembro de 2016. Essa decisão trouxe à tona o debate sobre as patentes na indústria de cannabis. E ressaltou a complexidade de se conceder proteção intelectual a produtos baseados em substâncias naturais.
Política pública
No campo legislativo, o Projeto de Lei (PL) 399/15, que busca regulamentar a cannabis medicinal no Brasil, é um marco significativo. O documento aprovado pela Câmara dos Deputados durante a pandemia, contudo, esbarrou na obstrução que impediu seu avanço para o Senado Federal. O embaraço ao projeto, muitas vezes liderado pela ala conservadora, reflete as divisões e preocupações que cercam a regulamentação da cannabis medicinal.
A judicialização da cannabis tem se tornado um fenômeno relevante, onde pacientes recorrem ao sistema judiciário em busca de acesso a tratamentos. Essa prática, além de buscar autorizações para o auto cultivo, importação ou uso da cannabis medicinal, também é usada para compelir o SUS a custear os tratamentos, onerando o poder público.
Um marco importante nesse movimento foi uma ação civil pública de 2014, que terminou por obrigar a Anvisa a incluir a cannabis em seu arcabouço regulatório. O fato impulsionou as discussões sobre a regulamentação e o acesso à planta para fins terapêuticos. As decisões judiciais têm contribuído, assim, para a conscientização e geram precedentes que impactam positivamente a legislação e as políticas públicas.
Passo atrás
Vale destacar, no entanto, a recente decisão da Anvisa de proibir a importação de flores de cannabis medicinal na Nota Técnica 35/2023. A medida impactou a dinâmica do mercado e trouxe à tona discussões sobre os critérios regulatórios adotados e seus possíveis reflexos na indústria e nos pacientes.
A partir de 20 de setembro de 2023 pacientes que utilizam flores de cannabis medicinal para condições de saúde estarão impedidos de continuar a importá-las, o que aprofundará a desigualdade no acesso a estes medicamentos. Se o cultivo é considerado crime, e a importação é limitada pela Anvisa, a tendência é que inúmeros pacientes continuem desassistidos. Ou corram o risco de ter sua liberdade cerceada, apenas por desejar exercer o direito de decidir sobre a sua própria saúde.
*Claudia de Lucca Mano ([email protected]) é advogada e consultora empresarial. Atua desde 1999 na área de vigilância sanitária e assuntos regulatórios, é fundadora da banca DLM e responsável pelo jurídico da associação Farmacann
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