Pesquisar
Close this search box.
Fincando as bases
Sem disfarçar a intenção de injetar uma dose de capitalismo no sangue da classe média brasileira, grupo Rockefeller lança os primeiros fundos de investimento no País

, Fincando as bases, Capital Aberto

É difícil imaginar o Brasil de 1957. Elementos na paisagem que hoje parecem muito familiares ainda não existiam. O poder estava nas mãos de Juscelino Kubitschek, o último presidente sorridente, que personificava a idéia de um país em rápido desenvolvimento. Havia também um jovem chamado Luiz, mais conhecido como Taturana devido às grossas sobrancelhas, que acabara de chegar a São Paulo. Aos 12 anos, era hora de começar a trabalhar em uma tinturaria, depois como engraxate e, mais tarde, como auxiliar de escritório. Ainda seriam necessários alguns anos para que o rapaz nascido em Caetés, subdistrito de Garanhuns, Pernambuco, completasse seu curso em uma escola técnica. Só muito depois ele assumiria a presidência do Sindicato dos Metalúrgicos de São Bernardo do Campo e Diadema, de onde partiria rumo à Presidência da República, já tendo inserido o apelido Lula no nome Luiz Inácio da Silva.

, Fincando as bases, Capital AbertoJuscelino prometia a prosperidade da indústria para um país que importava manteiga. Tudo estava por fazer. Brasília era um canteiro de obras encravado em pleno sertão goiano. Alguns poucos milhares de automóveis, todos importados, circulavam pelas ruas de paralelepípedos das grandes cidades. O primeiro carro de passeio nacional, um Fusca, só sairia das linhas de montagem da Volkswagen, à beira da Via Anchieta, em 1959. Menos de 15 mil quilômetros de rodovias eram asfaltadas, ante os quase 200 mil quilômetros de hoje. A Rodovia Rio-Belo Horizonte só seria inaugurada no ano seguinte, e a estrada Rio- São Paulo, mais tarde Via Dutra, ainda tinha frescas as marcas de tinta.

O mercado financeiro seria irreconhecível para um observador moderno. Havia centenas de , Fincando as bases, Capital Abertobancos, em sua maioria locais. Como instituição de rede havia só o Banco do Brasil, que fazia as funções de Banco Central e de Comissão de Valores Mobiliários (CVM), e o ainda adolescente Banco Brasileiro de Descontos S/A, fundado por Amador Aguiar. O Bradesco tomaria uma decisão arriscadíssima cinco anos depois, quando já era o maior dos bancos privados: gastaria uma montanha de dinheiro para adquirir o segundo computador a ser instalado no Brasil. Banco, até então, era uma operação manual. Equipamento indispensável em qualquer agência bancária eram as chapinhas de metal numerado. O cliente chegava, pegava seu número, falava com o caixa, sentava-se, caso houvesse uma poltrona disponível, e aguardava pacientemente a tramitação de seu pedido. Nada de processos e manuais. “Banco era um negócio que se fazia com base no aperto de mão e no olho do cliente”, relembraria, 55 anos depois, o engenheiro Olavo Setubal, que aplicara os métodos aprendidos na Escola Politécnica da Universidade de São Paulo ao Banco Central de Crédito, posteriormente Itaú, que fundaria em 1945. “Era algo pessoal, não é à toa que tantos bancos quebraram.”

Bolsa de valores? O apertado, enfumaçado (era permitido fumar), quente e barulhento pregão de negociações no centro de São Paulo agrupava corretores de paletó e gravata, auxiliares correndo de um lado para outro e alguns equilibristas, encarregados de marcar as cotações com giz na lousa que dominava o recinto. Tida e havida como um cassino, a bolsa paulista movimentava poucos milhares de dólares todos os dias. O mercado de capitais estava a anos-luz atrás da sofisticação atual. “Havia algumas empresas que se dedicavam ao lançamento de ações, mas bancos de investimento como conhecemos hoje só surgiriam em 1966”, relembra Roberto Teixeira da Costa, primeiro presidente da CVM e um ativo participante do mercado de capitais desde o fim dos anos 50.

, Fincando as bases, Capital AbertoUm episódio mostra como era o mercado: Teixeira da Costa trabalhava na Deltec, uma das poucas companhias que buscavam oportunidades no incipiente mercado brasileiro. Criada por sócios americanos, a principal função da Deltec era vender ações, principalmente das empresas automobilísticas que estavam surgindo naquele momento, famintas por capital. Com distribuição artesanal, os investidores eram procurados de porta em porta. Nos primeiros anos, o desconhecimento do mercado era tão grande que os vendedores ofereciam abridores de garrafas e frigideiras para gerar negócios. “Vendia-se todo tipo de quinquilharia”, relembra o executivo. -Na briga pelo capital valiam as mais heterodoxas estratégias de marketing. Na distribuição de ações da montadora Willys Overland, por exemplo, quem investisse teria direito a um desconto na compra do jipe Rural Willys, o único veículo fabricado pela empresa. No lançamento de ações da Vemag, fabricante do DKW, ocorria o mesmo.

NO ALVO DOS EUA — Nesse ambiente precário surgiu o primeiro fundo de investimentos. O Crescinco foi aberto à captação no dia 18 de janeiro de 1957, como uma iniciativa da International Basic Economic Corporation (Ibec), uma empresa do grupo Rockefeller. Moderno, ele podia, por exemplo, investir 20% do patrimônio em ações de companhias estrangeiras, desde que tivessem subsidiária no Brasil.

Os promotores do mercado dos anos 50 iam de porta em porta oferecendo produtos variados como frigideiras, abridores de garrafa — e ações

Mas o que a turma do bilionário fundador da Standard Oil estava fazendo por aqui? A resposta é de Nelson Rockefeller, neto do legendário John D. Rockefeller e o político da família (ele chegaria à Vice-Presidência dos Estados Unidos na administração Gerald Ford, entre 1974 e 1977). Anos antes, durante a Segunda Guerra Mundial, em uma audiência no Congresso norte-americano, um deputado perguntou a ele do que a América do Sul precisava. “O que faz falta por lá é uma classe média”, respondeu Nelson. Só assim, raciocinava, seria possível romper a inércia de países agrários dominados por coronéis avessos a qualquer modernização — e, pior, presas fáceis para qualquer aventureiro antiamericano. Esse pensamento nortearia boa parte da política de boa vizinhança, que começou na gestão Franklin Roosevelt e prosseguiu por vários outros mandatos presidenciais. Assim, entre as várias iniciativas oficiais e oficiosas de Washington, estava o desenvolvimento de um mercado de capitais no Brasil que atingisse os investidores individuais.

Os fundos foram vistos como um excelente instrumento para permitir o acesso da classe média ao mercado de capitais, ou seja, à economia moderna. Nos Estados Unidos, eles existiam desde 1924. Nessa época foi lançado o Massachusetts Investors Trust, que rendeu 13,2% em 2006 (sim, ele ainda existe e está aberto a captações; investe basicamente em ações de grandes empresas). Começaram timidamente e conquistaram uma legião de clientes em poucos anos. A idéia dos norte-americanos era reproduzir a experiência por aqui. Nos anos seguintes, a Deltec lançaria mais quatro fundos — os Condomínios Valéria, assim chamados em homenagem a uma das filhas de Clarence Dauphinot Jr., americano fundador da Deltec.

“A base era a legislação de condomínios”, diz Teixeira da Costa. “Não havia uma lei específica.”A legislação que regularia o mercado de capitais só seria promulgada dali a 19 anos, em 1976, substituindo a lei societária de 1940. Dez anos depois do lançamento do primeiro fundo brasileiro, já em 1967, o Banco de Investimento do Brasil (BIB), formado pelo grupo Moreira Salles, Deltec, Light e Grupo Azevedo Antunes, incorporou o Ibec e, junto com ele, o Crescinco. Hoje pode-se dizer que o primeiro fundo brasileiro, depois de muitas encarnações, ainda existe: leva o nome de Unibanco Blue, fundo de investimento em ações gerido pelo quinto maior banco privado brasileiro por ativos, segundo o BC.

Ausência de controles, fiscalização ineficaz e sistemas precários foram alguns dos obstáculos que travaram o desenvolvimento da indústria nas décadas de 50 e 60

O mercado de fundos funcionaria mal nos anos que se seguiram. Não é possível estimar seu tamanho, pois não há números confiáveis. Mesmo com todos os esforços, a Associação Nacional dos Bancos de Investimento (Anbid) não conseguiu ir além de 1972 quando tentou calcular o tamanho total da indústria. Essa precariedade decorreu de vários motivos. Por exemplo, os fundos de renda fixa não poderiam existir, pelo mais prosaico dos motivos — não havia renda fixa como a conhecemos hoje. Os bancos não podiam emprestar dinheiro cobrando taxas superiores a 10% ao ano, devido à Lei da Usura, de 1933. A saída para contornar esse problema foi a criação das letras de câmbio. Nominalmente, esses papéis rendiam juros de 6%, 8% ou 10% ao ano. No entanto, eram vendidas com deságio, o que, na prática, representava juros mais altos do que o máximo permitido em lei. Mesmo assim, era um sistema rudimentar demais para justificar a criação de um mercado secundário e a existência de fundos.

DITADURA E INCENTIVOS — O mercado de ações também era precário, restrito a poucas empresas sem liquidez e a investidores pessoa física com pouco dinheiro. Fundos de pensão que investissem em ações só passariam a existir em 1976, quando a lei regulamentou essas entidades. Para funcionar, o mercado de capitais precisaria de incentivos do governo, que vieram generosamente após o início da ditadura militar. O mais conhecido foi o Decreto-Lei 157.

Aprovado em fevereiro de 1967, no fim do governo Castello Branco, o decreto destinava-se a fomentar o mercado acionário por meio de uma isenção fiscal. Permitia que os contribuintes utilizassem 10% (pessoas físicas) ou 5% (pessoas jurídicas) do imposto de renda a pagar para investimentos no mercado acionário, desde que os recursos fossem aplicados em fundos de ações específicos — os fundos 157. “Era uma atração irresistível”, lembra Julius Buchenrode, ex-diretor de fundos do Chase Manhattan Bank e hoje sócio de uma empresa de securitização. “Você poderia receber de volta depois de alguns anos o dinheiro que iria pagar, de qualquer maneira, para o governo.” Tão irresistível que praticamente todos os contribuintes destinaram parte do imposto aos fundos 157 — e muitos deles esqueceram o assunto. “O dinheiro entrava rapidamente nos fundos na hora de entregar as declarações de imposto de renda e, depois, ia sendo retirado aos poucos”, recorda Buchenrode. O decreto seria remendado um sem-número de vezes até sua total extinção no início dos anos 80.

Os fundos 157 experimentaram tanto a falta de fiscalização por parte das autoridades — devido à ausência de informações, controles ou prestação de contas aos cotistas —, como o descaso dos próprios investidores. Naquela época, as declarações de imposto de renda eram entregues em uma agência bancária, normalmente a mais próxima da casa do contribuinte, fosse ele correntista daquele banco ou não. Para piorar a situação, a década de 70 foi farta em quebras, fusões e aquisições bancárias. Como resultado, muitos investidores simplesmente esqueciam onde haviam entregue suas declarações de imposto de renda. Finalmente, com a extinção do decreto, boa parte do dinheiro foi transferida para fundos de ações convencionais. Muitos registros se perderam. Como resultado, no fim dos anos 90, havia algumas centenas de milhões de reais de cotas dos fundos 157 esquecidas nos bancos, quando a CVM iniciou uma campanha para que esse dinheiro fosse resgatado.

Os polêmicos fundos 157

Um dos últimos atos do presidente Humberto de Alencar Castello Branco, o primeiro dos generais-presidentes, foi mudar a lei para estimular o mercado de ações. Em fevereiro de 1967, pouco antes de transmitir o cargo a Arthur da Costa e Silva, Castello assinaria o Decreto-Lei 157, permitindo que os contribuintes destinassem uma fatia de até 10% do imposto de renda para fundos de ações.

Pela redação inicial, o dinheiro teria de ficar retido por pelo menos dois anos. Seria destinado a empresas que se comprometessem a emitir ações ou debêntures conversíveis em ações, ou a vender imóveis para aplicar na produção. Os percentuais, prazos e regras mudariam muito ao longo dos anos seguintes, até a extinção dos fundos 157, em 1983. Nessa época, a maioria desses fundos foi transformada em fundos de ações.

A idéia era brilhante em teoria, pois visava fornecer capital de longo prazo para as empresas. Na prática, os fundos 157 ficaram registrados como um episódio polêmico na história do mercado de capitais. “Eles mantiveram a indústria de fundos viva após o crash de 1971, mas apresentavam alguns problemas estruturais sérios”, diz o consultor Julius Buchenrode, que atuou com grande destaque no mercado de capitais nos anos 80 e 90. “Não eram vistos pelo cotista como um investimento, mas sim como saída para pagar menos imposto de renda.” Com isso, o investidor não se preocupava muito em acompanhar a rentabilidade dos fundos.

Outros recordam os problemas de fiscalização. “Alguns bancos perceberam que os investidores simplesmente esqueciam seus fundos 157”, diz um profissional do mercado. “Os diretores desses bancos organizaram assembléias de cotistas em datas improváveis, como 26 de dezembro ou 2 de janeiro, e estabeleceram taxas de administração de até 35% ao ano”, recorda. Como resultado, o grosso do retorno obtido transformou-se em lucro para os bancos, sem que as autoridades da época tomassem qualquer providência. “Hoje isso seria impensável”, diz Luiz Kaufman, superintendente-geral da Associação Nacional do Bancos de Investimento (Anbid). “A auto-regulação impediria que algo desse tipo ocorresse.”

Os incentivos não impediram que a história acabasse mal. No início dos anos 70, o Brasil parecia determinado a tirar o atraso de décadas. A combinação entre dirigismo estatal, autoritarismo político e aumento dos gastos públicos fez com que a economia engatasse uma marcha forçada de crescimento que duraria até o fim daquela década. Foi o período do milagre: crescimentos de dois dígitos no Produto Interno Bruto, com a inflação sob controle e uma expansão geral da renda e do emprego. Uma generosa fatia desse dinheiro foi para a bolsa de valores, causando valorização de 55% no Ibovespa em 1970. Qual o problema? Um mercado não regulamentado, de empresas com pouca liquidez e, pior, sem investidores institucionais para funcionar como âncoras, recebeu a vinda súbita de milhares de pessoas físicas estimuladas por artifícios e sem noção dos riscos que corriam. “Na primeira baixa, todos resgataram o dinheiro”, diz Teixeira da Costa. Como resultado, a bolsa caiu, sofreu novos resgates e voltou a cair. Passou a ser profundamente desprezada por qualquer pessoa que tivesse 10 cruzeiros no bolso. Só se reergueria em 1986.

Claro, o impacto sobre os fundos foi péssimo. Todos os investidores perderam dinheiro, e a indústria parecia condenada à extinção. Mas sabemos que não foi bem assim que essa história continuou.


Para continuar lendo, cadastre-se!
E ganhe acesso gratuito
a 3 conteúdos mensalmente.


Ou assine a partir de R$ 34,40/mês!
Você terá acesso permanente
e ilimitado ao portal, além de descontos
especiais em cursos e webinars.


Você está lendo {{count_online}} de {{limit_online}} matérias gratuitas por mês

Você atingiu o limite de {{limit_online}} matérias gratuitas por mês.

Faça agora uma assinatura e tenha acesso ao melhor conteúdo sobre mercado de capitais


Ja é assinante? Clique aqui

mais
conteúdos

APROVEITE!

Adquira a Assinatura Superior por apenas R$ 0,90 no primeiro mês e tenha acesso ilimitado aos conteúdos no portal e no App.

Use o cupom 90centavos no carrinho.

A partir do 2º mês a parcela será de R$ 48,00.
Você pode cancelar a sua assinatura a qualquer momento.