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Liberdade x proteção
Regras de silêncio colocam a imprensa na berlinda e restringem as relações dos jornalistas com as fontes. Ao invés de concluir quem tem razão, que tal o debate?

 

No final do ano passado, a jornalista Maria Christina Carvalho, editora de finanças do jornal Valor Econômico, foi barrada na porta da apresentação de uma oferta pública de ações. A empresa lamentou a situação e argumentou que poderia ser punida pela Comissão de Valores Mobiliários (CVM) se o jornal fizesse uma reportagem sobre a oferta, em pleno “quiet period”. Especializada na cobertura de finanças há mais de 20 anos, Christina viu entrar no evento até trainees de bancos de investimentos, que teriam acesso a informações que não estariam nos jornais no dia seguinte.

O episódio mostra apenas um dos pontos de vista de um assunto complexo, que tem confrontado jornalistas, CVM e diferentes agentes do mercado de capitais. Se entre os jornalistas a Instrução 400 foi apelidada de “lei do silêncio” e ganhou pecha de censura, não faltam defensores, repletos de argumentos, da necessidade de afastar da mídia o emissor e todos relacionados a uma oferta pública de ações, para não influenciar os investidores com informações tendenciosas. A lei existe há dois anos, mas só recentemente o debate esquentou, com a suspensão de três operações por conta de reportagens publicadas na imprensa.

É fácil constatar, no entanto, que, por trás das discussões sobre a flexibilização da Instrução 400 — em estudo pela CVM desde que a Securities and Exchange Commission (SEC) abrandou as suas regras de silêncio, em junho do ano passado —, existe um questionamento sobre o papel da imprensa na relação entre mercado e investidores, além de uma profunda crítica ao seu trabalho. Mais do que a regulamentação, o que parece estar na berlinda é a imprensa.

“Os jornalistas teriam que ser mais críticos”, afirma Carlos Alberto Rebello, superintendente de registros da CVM, preocupado com o tom de “obaoba” que se repete nas matérias publicadas sobre as ofertas públicas, sem qualquer menção aos riscos do negócio. “Acredito que, com o tempo, haverá um amadurecimento da imprensa em relação ao serviço público que ela presta.” A autarquia está empenhada em fazer os investidores lerem os prospectos das ofertas, disponíveis cada vez mais cedo na internet. “Só assim o investidor vai formar uma consciência financeira para tomar a sua decisão”, defende Rebello.

Induzir o pequeno investidor — um dentista ou engenheiro — a ler as centenas de páginas do denso documento não é tarefa fácil. Não parece ser nem para os jornalistas, acusados de não ler os prospectos antes de escrever sobre o assunto. Os repórteres contra-atacam e lembram que, com as regras atuais, sequer podem tirar dúvidas sobre o texto junto aos emissores, quanto mais fazer questionamentos de interesse dos investidores. Entre as mudanças na Instrução 400 estudadas pela CVM, estão formas de permitir que o jornalista tenha acesso ao menos a esses esclarecimentos — que já são dados a analistas e corretores —, sempre restritos ao conteúdo que está no prospecto.

No entanto, as críticas à abordagem eventualmente simples adotada pela mídia na cobertura de um assunto cheio de nuances — e interesses — certamente vão continuar. Até porque essa não é uma questão nova. O professor Muniz Sodré, diretor da Biblioteca Nacional e um dos maiores teóricos de comunicação no País, evoca um estudo feito nos jornais americanos à época do pior acidente nuclear dos Estados Unidos, em 1979, para explicar a complexidade do tema. O estudo mostrou que a cobertura da mídia, bastante superficial, relevava os dados técnicos e dava mais destaque ao filme “Síndrome da China”, sobre acidente semelhante. Os diagramas que mostravam o funcionamento dos reatores nucleares, de tão simplificados, mais pareciam alambiques.

Sodré ressalta que, longe de conter uma condenação, o exemplo mostra o que ele chama de “gramática própria da facilitação” usada pela imprensa para cumprir o seu papel ou seja, traduzir as informações, por mais complexas que elas sejam, atendendo ao interesse do leitor. “A comunicação gera distorções até entre interlocutores”, pondera o professor. “Quando a imprensa usa a sua linguagem da facilitação para reduzir ao extremo assuntos complexos, como os econômicos, o risco é maior. Mas isso não quer dizer que houve um falseamento ou distorção proposital.”

Se o risco de distorção é grande, e pode prejudicar investidores de primeira viagem, então o melhor é afastar a imprensa, certo? Errado, diz Sodré. “O jornalista deve resistir e informar. Se ele se afastar, coisas graves podem acontecer, especialmente em setores poderosos. ‘”Posição semelhante tem o jornalista Alberto Dines, editor do Observatório da Imprensa, fórum de debates que acompanha o desempenho da mídia brasileira: “É uma daquelas situações em que todos os lados estão certos: a imprensa, não querendo restrições, e o órgão regulador, tentando impedir que as informações fiquem vulneráveis à manipulação. O debate é mais importante do que descobrir quem tem razão.”

CONFLITO DE INTERESSES – A preocupação com o poder da imprensa no mercado financeiro existe desde o início da cobertura econômica nos jornais, recorda-se Dines. “Em 1962, quando trabalhava no Jornal do Brasil, contratamos um jovem que entendia de finanças para fazer comentários sobre a bolsa de valores”, conta. “Pouco tempo depois, descobri que ele tinha uma corretora e ponderei que aquela situação não poderia continuar. Ele concordou e saiu do jornal. Seu nome era Jorge Paulo Lemman”, diz Dines, referindo-se ao mitológico empresário que ganhou notoriedade à frente do grupo Garantia.

O risco de conflito de interesses na própria imprensa, mais de 40 anos depois, continua sendo questionado. “Alguns veículos pertencem a empresários, que têm seus interesses”, diz Cristiano Souza, sócio da Dynamo Administradora de Recursos, que qualifica as regras do “quiet period” como “bem razoáveis”. “Além disso, dá para contar nos dedos os jornalistas que não escrevem asneiras. Para evitar problemas, o melhor é a companhia não falar com a imprensa durante o período da oferta”, defende Souza.

A opinião encontra eco até entre executivos de empresas de comunicação: “A regra é boa, porque unifica a divulgação e evita que alguma informação atinja só parte do mercado”, avalia Victor Ribeiro, diretor de produtos e estratégia do portal de internet UOL, que fez uma oferta pública inicial (IPO) em dezembro. “Se a companhia falar, a imprensa vai dar mais destaque às declarações do que aos dados do prospecto. O silêncio simplifica o trabalho de todo mundo: empresa, banco, analistas.”


SAÍDA FÁCIL — Para Vera Brandimarte, diretora de redação do Valor Econômico, as partes envolvidas nas ofertas estão se acomodando com a “saída mais fácil”, de impedir qualquer acesso da imprensa, com medo da punição da CVM. A autarquia suspendeu três operações — Guararapes, Cosan e Company – por conta de reportagens, duas delas publicadas no Valor. “Na prática, o pequeno investidor está sendo tratado como cidadão de segunda classe do ponto de vista do acesso à informação”, afirma Vera. “As empresas passam informações para os grandes investidores e fazem reuniões com seus representantes. A mídia, que deveria fazer a intermediação com os pequenos, fica de fora. É uma pena que isso aconteça justamente no momento do florescimento do mercado de ações.”

Ao que tudo indica, o quiet period revelou um problema que já existia — a crítica à cobertura jornalística do setor — e acabou criando outro

As deficiências da imprensa, diz a diretora do Valor, não deveriam ser motivo para o “cerceamento do trabalho jornalístico”. “Ninguém amputa o dedo para não cuidar da unha. É claro que existe o risco de a imprensa menos especializada ser ingênua, mas essa preocupação não poderia ser levada a um extremo”, acrescenta.

Rebello afirma que a autarquia está cumprindo o seu papel de defender o investidor, assim como faz a Lei do Consumidor para quem compra um produto no varejo. “Ações são como um produto. Quando há um esforço de vendas, é preciso evitar a manipulação, criar regras.” Segundo ele, as suspensões não pretendem punir a empresa emissora nem a imprensa, mas diluir as informações publicadas em um período de tempo maior.

Internamente, a CVM debate a flexibilização da Instrução 400 e promete colocar as alterações em audiência pública ainda este mês. Nos Estados Unidos, a SEC abrandou as suas regras de silêncio para companhias com maior liquidez no final do ano passado. Antes disso, as restrições eram ainda mais pesadas que as brasileiras, mas atingiam igualmente todos os públicos — imprensa, corretoras, investidores. A decisão da agência americana engrossou o coro de críticas ao período de silêncio brasileiro, até então restrito a porta-vozes da mídia.

“Temos que modernizar nossas regras”, diz Rodolfo Riechert, diretor de mercado de capitais do Banco Pactual. “Quanto maior a divulgação, mais pessoas têm as informações. Caso contrário, as ofertas ficam muito restritas ao público institucional.” Dóris Pompeu, diretora da consultoria em Relações com Investidores da Global RI, também acredita que a divulgação não está uniformizada. “Sem as matérias nos jornais, muitos potenciais investidores podem sequer ficar sabendo que existe uma oferta pública de ações.”

Mesmo se o contato entre imprensa e ofertantes for restabelecido de alguma forma, uma coisa é certa: está na hora de o relacionamento entre mídia e mercado de capitais entrar em pauta. Ao que tudo indica, o “quiet period” revelou um problema que já existia — a crítica à cobertura jornalística do setor — e acabou criando outro. Depois das suspensões determinadas pela CVM, executivos que eram “fontes” da imprensa passaram a temê-la, e repórteres que aprendiam com eles sobre o dia-a-dia do mercado se afastaram. Em que base deve ser esse relacionamento, pode-se discutir. Mas que ele deve existir, não restam dúvidas.


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