Em decisão unânime de 30 de janeiro de 20201, o colegiado da CVM condenou determinados diretores e conselheiros fiscais da T. S.A. por desvio de finalidade na realização de operação de venda com omissão fraudulenta das condições da operação. O colegiado, no entanto, absolveu outros administradores e conselheiros fiscais da acusação de falta de diligência na análise dessa operação.
Conforme relatado nos autos, em junho de 2012, a T. chegou a um acordo com a R. P. Ltda. para a venda da S.M. M. Ltda. (SML), uma empresa do grupo que apresentava dificuldades financeiras e operacionais. De acordo com os contratos originais da operação, a venda se daria pelo valor total de 115 milhões de reais, em duas parcelas: uma de 64 milhões de reais, devida em 18 parcelas mensais (parcela A) e outra de 51 milhões de reais, em pagamentos mensais a serem calculados com base na receita da SML e cuja primeira parcela venceria apenas 180 dias após o vencimento da última parcela A (parcela B). Os valores da parcela B seriam pagos com recursos provenientes da prestação de serviços do grupo R. para a T. ao longo de cinco anos.
Apesar das preocupações quanto à qualidade de crédito do grupo comprador, o conselho de administração aprovou a operação. Em maio de 2013, entretanto, foram encontrados documentos relacionados à transação que não haviam sido reportados ao conselho de administração e que modificariam de forma significativa os seus termos originais.
Diante desse cenário, a T. contratou assessores externos e formou um comitê especial independente, que concluiu que os contratos não reportados haviam sido pós-datados e que seus termos representariam efetivo perdão da T. quanto à parcela B. Segundo o comitê, a operação fora contratada de forma fraudulenta, de modo a divulgar por 115 milhões de reais uma operação cujo valor real era de 64 milhões de reais.
A área técnica da CVM formulou diversas acusações no caso. O chamado grupo 1, formado pelos diretores e conselheiros fiscais diretamente envolvidos na transação, foi acusado de desvio de finalidade (violação do artigo 154 da Lei das S.As.) na celebração e ocultação dos contratos não reportados, bem como pela elaboração de demonstrações financeiras não fidedignas. O grupo 2, formado pelos demais diretores e conselheiros de administração e fiscais, foi acusado de falta de diligência na análise de crédito da compradora e na elaboração de demonstrações financeiras que não refletiriam esse risco de crédito.
Em seu voto, o diretor da CVM Gustavo Machado Gonzalez afirma haver conjunto robusto de provas demonstrando a existência da fraude praticada pelos integrantes do grupo 1. Segundo Gonzalez, a ocultação das condições reais de venda da SML teria, como uma de suas motivações, evitar o reconhecimento de perda contábil no momento da venda. Para ele, “o administrador que atua para que a companhia infrinja dispositivos legais ou regulamentares não exerce suas atribuições para ‘para lograr os fins e no interesse da companhia, satisfeitas as exigências do bem público e da função social da empresa'”.
Gonzalez também afastou a aplicação da business judgment rule para os integrantes do grupo 1. Citando decisão sua em outro caso2: “Questões diretamente relacionadas à observância de obrigações fixadas em lei, regulamento ou estatuto não são decisões negociais. Isto porque não há, nesses casos, margem de discricionariedade para decidir quanto ao cumprimento de tais obrigações. O administrador não pode alegar que uma decisão informada, refletida e desinteressada o levou a concluir pela violação do comando que estava obrigado a cumprir”.
Os integrantes do grupo 1 foram condenados pelo colegiado à penalidade de inabilitação temporária para o exercício do cargo de administrador ou de conselheiro fiscal de companhia aberta, por prazos que variaram entre oito e dez anos.
Por outro lado, com relação aos integrantes do grupo 2, Gonzalez identificou elementos suficientes nos autos de que a decisão de aprovar a operação foi tomada de forma informada, refletida e desinteressada, e que o risco de crédito da R. foi devidamente analisado e conscientemente assumido. Ou seja, nesse caso a business judgment rule foi aplicada.
Com relação à acusação de falta de diligência dos conselheiros na elaboração das demonstrações financeiras, Gonzalez ressaltou que o dever de diligência dos conselheiros “não lhes impõe o dever de analisar pormenorizadamente os instrumentos contratuais e demais documentos relativos às matérias que lhe são submetidas”. Ainda que, na sua opinião, seja fundamental que os conselheiros tenham algum conhecimento em contabilidade, não se pode exigir que sejam experts no assunto. Além disso, a conclusão da acusação teria sido contaminada pelo conhecimento posterior de que os termos reais da operação eram diferentes daqueles contratados.
Diante disso, os conselheiros de administração e fiscais do grupo 2 foram absolvidos de todas as acusações.
Por fim, a CVM aplicou penalidade de multa de 75 mil reais para a diretora de relações com investidores da T. Embora tenha reconhecido que ela não teve envolvimento na fraude, o relator entendeu que, como o estatuto social da T. atribuía à diretoria como um todo o dever de elaborar e submeter ao conselho de administração as demonstrações financeiras — ainda que houvesse outro dispositivo atribuindo expressamente aos diretores vice-presidentes a responsabilidade pela supervisão do setor financeiro e contábil da companhia —, a cláusula geral de competência se sobrepõe; portanto todos os diretores deveriam ser responsabilizados pelas falhas verificadas.
Trata-se, a nosso ver, de decisão que merece ser mais bem discutida, considerando as competências geralmente atribuídas ao diretor de relações com investidores e o fato de que o estatuto continha regra específica delimitando essas atribuições. Além disso, é comum que os estatutos sociais de companhias abertas contenham redação genérica atribuindo à diretoria a responsabilidade pela preparação das demonstrações financeiras, refletindo o texto do artigo 176 da Lei das S.As.
Do ponto de vista prático, a conclusão da CVM de que essa cláusula geral deve se sobrepor à cláusula específica poderá levar os administradores de companhias abertas a proporem uma revisão dessa cláusula nos estatutos das companhias a fim de evitar dúvidas quanto à limitação de responsabilidade.
*Por Fernando Zorzo ([email protected]), sócio de Pinheiro Neto Advogados e Cauê Rezende Myanaki ([email protected]), associado sênior do escritório.
Notas
¹PAS CVM RJ2014/13977
²CVM nº RJ2016/7190, julgado em 9/7/2019
Leia também
CVM condena acionista da Verolme por abuso de poder de controle
CVM adverte companhia por não realizar OPA por aumento de participação
CVM rejeita termo de compromisso em caso Qualicorp
Gostou do artigo?
Cadastre-se e não perca nenhum texto deste canal.
Receba por e-mail um aviso sempre que um novo texto for publicado.
Para continuar lendo, cadastre-se!
E ganhe acesso gratuito
a 3 conteúdos mensalmente.
Ou assine a partir de R$ 34,40/mês!
Você terá acesso permanente
e ilimitado ao portal, além de descontos
especiais em cursos e webinars.
User Login!
Você atingiu o limite de {{limit_online}} matérias gratuitas por mês.
Faça agora uma assinatura e tenha acesso ao melhor conteúdo sobre mercado de capitais
Ja é assinante? Clique aqui