Foi aprovada a Lei nº 14.711, em 30 de outubro de 2023, como resultado da sanção presidencial do Projeto de Lei nº 4188, de 2021 (“PL 4188”), conhecido como Marco Legal das Garantias.
Durante a sua tramitação no Congresso Nacional, o projeto passou por diversas modificações no Senado Federal, com exclusão da proposta de criação das Instituições Gestoras de Garantias, que forneceriam o serviço de gestão de garantias, a possibilidade de penhorar bens de família e a permanência da Caixa Econômica Federal como única e exclusiva instituição financeira responsável pelo penhor civil. Ainda, quando da sanção presidencial da Lei, foi vetada a autorização de recuperação de bens móveis alienados fiduciariamente em garantia de dívida inadimplida, por meio de busca e apreensão extrajudicial solicitada por credores que fossem instituições financeiras, procedimento este que seria conduzido pelo oficial de registro de títulos e documentos.
Mais segurança
Apesar disso, o Marco Legal das Garantias foi aprovado com importantes novidades para o sistema de garantias. Entre elas, a permissão para que um imóvel seja dado em garantia em mais de uma operação de financiamento utilizando o instituto da alienação fiduciária, algo que anteriormente era permitido por lei apenas se o imóvel fosse objeto de hipoteca. E também, a desjudicialização na cobrança e recuperação de bens dados em garantia.
A alteração legislativa visa a simplificare facilitar a recuperação de créditos, por meio do compartilhamento de garantias e da redução de custos na sua eventual excussão. Seu objetivo final é o de buscar melhorar os patamares de spread bancário no País.
Segundo dados de 2020 do Banco Mundial, o País tem uma das menores taxas de recuperação de garantias, além de um dos prazos mais longos e custos mais altos para tanto. No Brasil, recupera-se aproximadamente 0,182 cents para cada dólar dado em garantia no prazo médio de 4 anos, a um custo de 12% do valor do bem dado em garantia. A título de comparação, nos EUA recupera-se 0,81 cents por dólar dado em garantia no prazo médio de 1 ano, a um custo de 10% do valor do bem dado em garantia. O Brasil está abaixo da média dos países emergentes.
Tais dificuldades para a recuperação de créditos acabam elevando o spread bancário. Segundo dados do Banco Central, aproximadamente 30% desse custo entre 2019 e 2021 pode ser atribuído à inadimplência.
Desse modo, institutos jurídicos como a alienação ou cessão fiduciárias, que facilitam a execução extrajudicial das garantias, têm o condão de diminuir a inadimplência, bem como a taxa de juros dos empréstimos. Outra das grandes novidades do marco legal é que, a partir de agora, a hipoteca também poderá ser objeto de execução por via extrajudicial, tal como a alienação fiduciária.
Em resumo, a a lei trouxe também uma série de reformas importantes com o propósito de melhorar nosso regime de garantias. Destacamos a seguir as principais novidades.
Aprimoramento das regras de execução extrajudicial da alienação fiduciária
A Lei aprimora o instituto da alienação fiduciária em garantia.
Nesse sentido, o artigo 24 da Lei 9.514/97, conforme alterada, que traz os requisitos que devem estar previstos no contrato que serve de título garantido pela alienação fiduciária de bem imóvel, sofreu alguns ajustes e complementações, que devem ser consideradas quando da elaboração de tais instrumentos[1].
Houve também um detalhamento dos procedimentos de execução extrajudicial da alienação fiduciária, cujas principais alterações são explicadas a seguir.
Ficou estabelecido o prazo de carência de 15 dias para intimação do devedor e, se for o caso, ao terceiro fiduciante, uma vez vencida e não paga a dívida, salvo estipulação diferente no contrato (art. 26, parágrafos 2º e 2º-A, da Lei 9.514/97, conforme alterada).
De modo a trazer mais segurança jurídica à aplicação do dispositivo que permite a intimação por edital, cuja publicação é feita em jornal e faz-se necessária quando o devedor ou, se for o caso, o terceiro fiduciante, o cessionário, o representante legal ou o procurador regularmente constituído, encontra-se em local ignorado, incerto ou inacessível, foram previstos na norma: (i) a responsabilidade do devedor e, se for o caso, do terceiro fiduciante, informar ao credor fiduciário sobre a alteração de seu domicílio e (ii) a definição de lugar ignorado e de lugar inacessível (art. 26, parágrafos 4º e seguintes, da Lei 9.514/97, conforme alterada).
Em relação aos procedimentos de leilão decorrentes de financiamento para a aquisição ou construção de imóvel residencial, exceto quanto às operações do sistema de consórcios, no segundo leilão continuará sendo aceito o maior lance oferecido, desde que seja igual ou superior ao valor integral da dívida garantida pela alienação fiduciária[2], mais os acréscimos previstos na lei. Contudo, ficou estabelecido que, caso não haja lance que atenda a tal referencial mínimo para arrematação, a dívida será considerada extinta, com recíproca quitação, hipótese em que o credor ficará investido da livre disponibilidade, podendo vender o bem a terceiros pelo valor que lhe aprouver. A extinção da dívida abrange o valor que exceder o referencial mínimo, tendo a norma deixado claro que isso se estende à hipótese de execução da dívida por meio da via judicial. Ou seja, nesse caso nada mais poderá ser cobrado do devedor. Não prosperou, entretanto, a proposta da Câmara dos Deputados que buscava limitar o valor da arrematação no segundo leilão a, no mínimo, 50% (cinquenta por cento) do valor do imóvel, de modo a positivar a vedação à alienação por preço vil (art. 26-A da Lei 9.514/97, conforme alterada).
Em relação aos procedimentos de leilão decorrentes das demais dívidas garantidas por alienação fiduciária de bem imóvel, em especial operações de crédito, que não estão sujeitas às normas especiais previstas no art. 26-A, ficará a exclusivo critério do credor fiduciário aceitar o lance que corresponda a, pelo menos, 50% do valor de avaliação do bem, na hipótese em que não haja lance que alcance o valor integral da dívida garantida e os acréscimos previstos na lei. Ficou estabelecido que diante da inexistência de lance que atenda ao referencial mínimo para arrematação, o credor ficará investido da livre disponibilidade, podendo vender o bem a terceiros pelo valor que lhe aprouver. Além disso, o credor também ficará desobrigado de entregar ao fiduciante eventual sobejo, que inclui indenização por benfeitorias. Sem prejuízo disso, vale ressaltar que a dívida não mais será extinta, tal como previsto antes desse novo Marco. Sendo assim, se o produto do leilão não for suficiente para o pagamento integral da dívida e dos acréscimos previstos na lei, o devedor continuará obrigado pelo pagamento do saldo remanescente, que poderá ser cobrado por meio de ação de execução e, se for o caso, excussão das demais garantias existentes (art. 27, parágrafos 2º a 6º-A, da Lei 9.514/97, conforme alterada). Esse regime já era aplicável às garantias em operações de abertura de limite de crédito, nos termos do art. 9º da Lei nº 13.476/17. Deste modo, essa alteração beneficia os credores fiduciários que, diante da ausência de mercado para leiloar o bem por preço considerado como mínimo aceitável, poderão permanecer com o bem e empenhar seus melhores esforços para concretizar uma venda direta, caso no qual poderão embolsar o preço, além de terem assegurado o direito de cobrar o saldo remanescente da dívida, correspondente ao montante que exceder o referencial mínimo, nos termos previstos na lei.
Ficou também positivado na norma que os direitos reais de garantia ou constrições, inclusive penhoras, arrestos, bloqueios e indisponibilidades de qualquer natureza, incidentes sobre o direito real de aquisição do fiduciante não obstam a consolidação da propriedade no patrimônio do credor fiduciário e a venda do imóvel para realização da garantia. Diante desse evento, os titulares dos direitos reais de garantia ou constrições sub-rogam-se no direito do fiduciante à percepção do saldo que eventualmente restar do produto da venda (art. 27, parágrafos 11 e 12, da Lei 9.514/97, conforme alterada).
Ainda, foi estabelecido um procedimento para execução extrajudicial nas operações de crédito garantidas por alienação fiduciária de 2 (dois) ou mais imóveis, na hipótese de não ser convencionada a vinculação de cada imóvel a determinada parcela da dívida. Nessa hipótese o credor fiduciário poderá promover a excussão em ato simultâneo, por meio de consolidação da propriedade e leilão de todos os imóveis em conjunto, ou em atos sucessivos, por meio de consolidação e leilão de cada imóvel em sequência, à medida do necessário para a satisfação integral do crédito (art. 27-A da Lei 9.514/97, conforme alterada).
Por fim, restou normatizado que as ações judiciais que tenham por objeto controvérsias sobre as estipulações contratuais ou os requisitos procedimentais de cobrança e leilão, excetuada a exigência de notificação do devedor e, se for o caso, do terceiro fiduciante, não obstarão a reintegração de posse uma vez arrematado o imóvel ou consolidada definitivamente a propriedade no caso de frustração dos leilões, e serão resolvidas em perdas e danos (art. 30, parágrafo único, da Lei 9.514/97, conforme alterada).
Alienação fiduciária superveniente
A Lei 14.711/23 criou o instituto da alienação fiduciária superveniente, permitindo que sejam registradas alienações fiduciárias sucessivas da propriedade superveniente no registro de imóveis desde as respectivas datas de celebração, sendo que cada qual terá eficácia a partir do cancelamento da propriedade fiduciária anteriormente constituída e assim sucessivamente (art. 22, parágrafo 3º e 4º, da Lei 9.514/97, conforme alterada).
Nesse caso, o credor fiduciário que pagar a dívida do devedor fiduciante comum ficará sub-rogado no crédito e na propriedade fiduciária em garantia, nos termos do art. 346, inciso I, do Código Civil (art. 22, parágrafo 5º, da Lei 9.514/97, conforme alterada).
Ainda, vale destacar que o inadimplemento de quaisquer das obrigações garantidas pela propriedade fiduciária facultará ao credor fiduciário declarar vencidas as demais obrigações de que for titular que sejam garantidas pelo mesmo imóvel, inclusive quando a titularidade decorrer de sub-rogação no crédito e na propriedade fiduciária por fiador ou terceiro interessado que quitou a dívida. Nesse caso, o credor deve informar o devedor a respeito da opção pelo exercício dessa faculdade quando da intimação encaminhada por ocasião do inadimplemento da dívida (art. 22, parágrafo 6º e 9º, da Lei 9.514/97, conforme alterada).
Importante destacar que o crédito garantido por alienação fiduciária e/ou alienações fiduciárias supervenientes não se submetem aos efeitos da recuperação judicial (art. 49, parágrafo 3º, da Lei nº 11.101/2005 e art. 22, parágrafo 10º, da Lei 9.514/97, conforme alterada) – uma grande vantagem desse tipo de garantia, especialmente quando falamos de dívidas contraídas nos mercados financeiro e de capitais.
A criação do instituto da alienação fiduciária superveniente busca transpor para esse tipo de garantia a bem sucedida experiência da hipoteca ou do penhor que podem ser constituídos em vários graus. Essa novidade normativa viabilizará que um mesmo bem imóvel seja dado em garantia para vários mutuantes, observada a ordem de preferência estabelecida. Trata-se de um aspecto relevante trazido pelo Marco Legal das Garantias, uma vez que abrirá a possibilidade de concessão de alienação fiduciária em garantia em mais de uma operação de crédito, com potencial, inclusive, de ser bastante utilizado no mercado de capitais.
Instituição do agente de garantia
Nas emendas efetuadas pelo Senado também foi realizada a inclusão do Capítulo XXI no Código Civil, com a tipificação do contrato de administração fiduciária de garantias e a previsão da figura do agente de garantia. A Lei define que o agente de garantia será designado pelos credores e atuará tanto em prol destes quanto em benefício próprio, gerenciando os bens e executando as garantias. O agente de garantia terá o dever fiduciário em relação aos credores da obrigação garantida e responderá perante estes por todos os seus atos, podendo ser substituído a qualquer tempo. A substituição só será eficaz após ter sido tornada pública.
O produto da realização da garantia, enquanto não transferido para os credores, constituirá um patrimônio separado daquele do agente de garantia e não poderá responder por suas obrigações pelo período de até 180 dias, contado da data de recebimento do produto da garantia.
A Lei estabelece que, após receber o valor, o agente de garantia deverá efetuar o pagamento aos credores em até dez dias úteis.
Paralelamente, o agente de garantia poderá manter contratos com os devedores para:
- pesquisa de ofertas de crédito mais vantajosas entre os diversos fornecedores;
- auxílio nos procedimentos necessários à formalização de contratos de operações de crédito e de garantias reais;
- intermediação na resolução de questões relativas aos contratos de operações de crédito ou às garantias reais; e
- outros serviços não vedados em lei.
Aprimoramento da hipoteca
Outra mudança relevante que a Lei 14.711/23 trouxe e que igualmente foi proveniente das emendas criadas pelo Senado, é a possibilidade de se realizar a execução extrajudicial de hipotecas, algo que era permitido apenas na alienação fiduciária. Tal mudança pode incentivar a volta do uso da hipoteca como forma de garantia em operações de crédito, que estava até então sendo amplamente preterida pela alienação fiduciária.
Os procedimentos para a execução extrajudicial de créditos garantidos por hipoteca estão dispostos no artigo 9º da Lei, sendo semelhantes aos procedimentos para a execução extrajudicial da alienação fiduciária. Em seus parágrafos é disposto que se o devedor não pagar a dívida hipotecária, ele e outros envolvidos deverão ser intimados pessoalmente pelo oficial do registro de imóveis da situação do imóvel hipotecado para purgarem a mora em até 15 dias. Se a mora não for purgada nesse prazo, o credor poderá iniciar o procedimento de excussão extrajudicial da garantia hipotecária por meio de leilão público, que será averbado na matrícula do imóvel. Após a averbação, o credor deverá realizar o leilão público do imóvel hipotecado dentro de 60 dias. Este leilão poderá ser conduzido de acordo com as disposições legais aplicáveis.
O referencial mínimo para o lance no segundo leilão será (i) o valor integral da dívida garantida pela hipoteca, mais os acréscimos previstos na lei, ou (ii) caso não haja lance que alcance referido valor, a exclusivo critério do credor hipotecário, pelo menos, 50% do valor de avaliação do bem. Na hipótese de o lance oferecido nesse leilão não ser igual ou superior ao referencial mínimo, o credor terá a faculdade de: (i) apropriar-se do imóvel em pagamento da dívida, a qualquer tempo, pelo valor correspondente ao referencial mínimo devidamente atualizado; ou (ii) realizar, no prazo de até 180 dias, contado do último leilão, a venda direta do imóvel a terceiro, por valor não inferior ao referencial mínimo, dispensado novo leilão.
Assim como na alienação fiduciária, nas operações de financiamento para a aquisição ou a construção de imóvel residencial do devedor que tenham hipoteca como garantia, excetuadas aquelas compreendidas no sistema de consórcios, caso o produto da excussão da garantia hipotecária para o pagamento da totalidade da dívida, e demais acréscimos previstos em Lei, não seja suficiente, o devedor ficará exonerado da responsabilidade pelo saldo remanescente, hipótese em que não se aplicará a regra geral prevista no art. 1.430 do Código Civil. Segundo este dispositivo, uma vez executada a hipoteca, se o produto não bastar para pagamento da dívida e despesas judiciais, o devedor continuará obrigado pessoalmente pelo restante. Contudo, caso a obrigação garantida decorra de outros tipos de operação de crédito, tal exceção não será aplicável e o devedor ficará obrigado pelo pagamento do saldo remanescente, nos termos da lei.
Em relação à desocupação do imóvel hipotecado cuja garantia for excutida, inclusive por locatário, deverão ser seguidas as mesmas disposições previstas para a execução extrajudicial da alienação fiduciária de imóvel, sendo devida a taxa de desocupação pelo fiduciante, nos termos da lei.
Execução de garantia com concurso de credores
Quando a garantia contar com concurso de credores, isto é, houver mais de um crédito garantido pelo mesmo bem imóvel, seja por meio de propriedade fiduciária ou hipoteca, deverão ser observados os procedimentos dispostos no artigo 10 da Lei 14.711/23, para a devida execução extrajudicial da garantia. Em síntese, são eles:
- o oficial do registro de imóveis competente intimará simultaneamente todos os credores concorrentes para habilitarem seus créditos em um prazo de 15 dias. Isso é feito por meio de um requerimento que deve conter informações como o cálculo do valor atualizado do crédito para execução da garantia, documentos comprobatórios de desembolsos e saldo devedor (quando se trata de crédito pecuniário futuro, condicionado ou rotativo), e, se aplicável, a sentença judicial ou arbitral que torna líquido e certo o montante devido, quando a obrigação garantida for ilíquida;
- após o prazo de habilitação dos créditos, o oficial do registro de imóveis emitirá uma certidão e intimará o garantidor e todos os credores concorrentes sobre o quadro atualizado de credores. Esse quadro inclui os créditos e seus graus de prioridade sobre o produto da execução da garantia, com base na antiguidade do crédito real como critério para definir esses graus de prioridade; e
- por fim, ocorrerá a distribuição dos recursos obtidos com a excussão da garantia, que será de responsabilidade do credor exequente e que deverá observar os graus de prioridade estabelecidos no quadro de credores e os prazos legais para entregar ao devedor a quantia remanescente após o pagamento dos credores, conforme aplicável a execução extrajudicial da propriedade fiduciária ou da garantia hipotecária.
Esse processo visa a ordenar a distribuição dos recursos entre os credores de acordo com as prioridades legais estabelecidas.
Recuperação extrajudicial de bem móvel
Outra possibilidade de uso da execução extrajudicial criada pela Lei 14.711/23 será na recuperação de dívidas ligadas a veículos automotores alienados fiduciariamente. O Marco Legal das Garantias faculta ao credor promover os procedimentos necessários perante os órgãos executivos de trânsito dos Estados, popularmente conhecidos como Detrans, por meio de empresas especializadas em registro centralizado, que farão todos os atos de processamento da execução extrajudicial, em observância às competências previstas no §1º do art. 1.361 do Código Civil. Todavia, a eventual busca e apreensão do bem deverá ser feita por via judicial.
Arbitragem notarial
O Marco Legal das Garantias também amplia consideravelmente o papel dos tabeliães de notas. Uma das principais novidades é a possibilidade de os tabeliães desempenharem funções adicionais relacionadas à mediação, conciliação e arbitragem entre credor e devedor. Conforme inclusão do Artigo 7-A na Lei nº 8.935, de 18 de novembro de 1994, conforme alterada, são funções adicionais dos tabeliães:
- certificar o cumprimento ou a não realização de condições e outros elementos de negócios, respeitando a competência dos tabeliães de protesto;
- atuar como mediador ou conciliador;
- atuar como árbitro.
Com os tabeliães desempenhando tais papéis adicionais, o Marco Legal das Garantias fortalece a oferta de soluções para a resolução de conflitos de forma extrajudicial, com potencial de redução do custo para a recuperação de créditos.
Garantia em mais de uma operação de financiamento
Uma das grandes mudanças que a Lei 14.711/23 traz é a possibilidade de oferecer um mesmo imóvel em garantia para mais de uma operação de crédito. Foi incluído o Artigo 9º-A na Lei nº 13.476, de 28 de agosto de 2017, conforme alterada, permitindo a extensão da alienação fiduciária e da hipoteca de bem imóvel, pela qual a propriedade fiduciária ou hipoteca já constituída possa ser utilizada como garantia de operações de crédito novas e autônomas de qualquer natureza.
Para exemplificar: até então, uma pessoa que buscava crédito para adquirir bens móveis no valor de R$20 mil e R$30 mil, enquanto possui um imóvel avaliado em R$100 mil para dar em garantia, não poderia utilizar esse mesmo imóvel em garantia em ambas as transações. Com o Marco Legal das Garantias, essa prática será permitida, desde que o credor seja o mesmo e observadas as regras previstas na lei quanto a eventual preferência creditícia. Essa novidade tem o potencial de ampliar as linhas de empréstimo home equity no mercado.
Não obstante, para que a extensão da alienação fiduciária seja possível é uma exigência legal a inexistência de obrigação contratada com credor diverso garantido pelo mesmo imóvel. Isso obriga que as novas dívidas que pretendam usar um determinado imóvel como garantia sejam contratadas, portanto, apenas com o credor original que figura como titular da propriedade fiduciária.
Responsabilidade dos cartórios
Além da previsibilidade de mediação e conciliação supracitada, a Lei 14.711/23 alocou maior responsabilidade para os cartórios, que passarão a gerir as garantias e intermediar extrajudicialmente a relação entre os credores e os devedores na recuperação de créditos inadimplidos. Os cartórios também poderão notificar o devedor por meios como e-mail, aplicativos de mensagem instantânea, como o WhatsApp, e quaisquer outros que sejam considerados idôneos.
Com isso, o Marco Legal das Garantias alterou o Decreto-Lei nº 911, de 1º de outubro de 1969, dispondo acerca da faculdade do credor em promover a cobrança e consolidação da propriedade de bem móvel perante o competente cartório de registro de títulos e documentos no lugar do procedimento judicial ali previsto, mas desde que haja previsão expressa no contrato em cláusula destacada e após comprovação da mora. Nesse caso, o cartório ficará responsável por notificar o devedor, que, por sua vez, poderá:
- pagar voluntariamente a dívida no prazo de 20 dias, sob pena de consolidação da propriedade;
- apresentar, se for o caso, documentos comprobatórios de que a cobrança é total ou parcialmente indevida, sendo que, nessa hipótese, o oficial ficará responsável por avaliar os documentos apresentados.
Caso a dívida seja então quitada pelo devedor, o contrato de alienação fiduciária em garantia ficará convalescido. Contudo, caso a dívida não seja quitada, o oficial averbará a consolidação da propriedade fiduciária ou, no caso de bens cuja alienação fiduciária tenha sido registrada apenas em outro órgão, o oficial comunicará a este para a devida averbação.
Esse novo procedimento mostra-se especialmente relevante para operações no âmbito dos mercados financeiro e de capitais.
No entanto, se depois de consolidada a propriedade do bem sob a titularidade do credor de forma extrajudicial, o bem móvel (por exemplo, um automóvel) não estiver sob a posse do credor, este precisará mover uma ação de busca e apreensão para recuperar a posse do bem em questão.
Em relação à negociação antes dos protestos, o artigo 11 da Lei nº 9.492/1997 foi alterado para prever que os cartórios de protestos possam receber títulos de dívida juntamente com propostas de negociação antes de procederem com o protesto da dívida, caso seja do interesse do apresentante ou do credor. Dessa forma, o devedor deverá responder em até 30 dias à proposta de negociação, com a possibilidade de negociar o valor da dívida, descontos e condições de pagamento, sendo que o cartório deverá comunicar a proposta ao devedor por diversos meios, como carta simples, correio eletrônico ou aplicativos de mensagem. Caso a negociação não seja bem-sucedida e o credor não desista da cobrança, o título será protestado pelo valor original da dívida. A data de apresentação da proposta será considerada para diversos fins legais, tal como direito de regresso, interrupção da prescrição, execução, falência e cobrança de emolumentos, desde que a negociação prévia não seja bem-sucedida e o título seja protestado. Ainda, o artigo 26-A dispõe que após o protesto de uma dívida, o credor, o devedor e o tabelião poderão propor medidas de incentivo à renegociação, sendo que o devedor terá a prerrogativa de oferecer contrapropostas. Cabe ressaltar que tais medidas são exclusivas dos tabeliães de protesto e colocam-se como salutares nos esforços de promover a recuperação dos créditos e mitigar conflitos.
Também a esse respeito, foi realizada a inclusão do Artigo 6º-A da Lei nº 8.935/1994, estabelecendo aos cartórios a função de comunicar eventuais negociações entre o credor e terceiros. Tal comunicação deverá ser relatada ao juiz competente, sendo considerada ineficaz qualquer cessão de crédito realizada para pessoas não identificadas na comunicação notarial. No entanto, se uma escritura pública de cessão de crédito for lavrada dentro de 15 dias corridos após a comunicação, tal cessão será válida. Adicionalmente, o tabelião deverá comunicar imediatamente sobre a negociação e em até 3 dias úteis contados da assinatura da escritura pública sobre a eventual cessão realizada. Isso visa a garantir a transparência e a eficiência nas negociações de crédito, bem como maior segurança jurídica para todas as partes envolvidas.
Chancela do STF
Importante mencionar também que em recente decisão de repercussão geral (Tema 982) o Supremo Tribunal Federal (STF), em linha com os princípios do Marco Legal das Garantias, não apenas ratificou a constitucionalidade do procedimento extrajudicial para execução de alienação fiduciária de bem imóvel dado em garantia de financiamento imobiliário nos termos da Lei 9.514/97, como também ressaltou seu impacto positivo para a sociedade.
O entendimento da mais alta corte de justiça, liderado pelo ministro Luiz Fux, além de garantir segurança jurídica, reconheceu a importância de um processo eficaz e célere na execução de garantias, fortalecendo o dinamismo do mercado imobiliário e do setor de crédito.
Por fim, o Projeto de Lei nº 6.204 de 2019, que ainda está aguardando distribuição na Comissão de Constituição e Justiça da Câmara dos Deputados, é uma iniciativa cuja matéria está relacionada ao Marco Legal das Garantias e que visa a promover a “desjudicialização” da execução civil de títulos, sejam eles judiciais ou extrajudiciais. Em resumo, essa proposta tem como objetivo reduzir a dependência do sistema judiciário para a execução de dívidas e títulos, tornando o processo mais ágil, eficiente e econômico.
Assim, tal projeto de lei, unido ao Marco Legal das Garantias e à recente decisão do STF, demonstram uma preocupação legislativa e jurisprudencial recentes com a necessidade de redução de burocracias e prazos que dificultam a recuperação de créditos, bem como encarecem os spreads bancários cobrados no país.
O Marco Legal das Garantias certamente representa – até como o próprio jargão indica – uma nova e relevante “pedra fundamental” na modernização do sistema de garantias brasileiro, com novidades importantíssimas, tal como o aprimoramento das regras de execução extrajudicial da alienação fiduciária e criação da alienação fiduciária superveniente, a previsão da execução extrajudicial da hipoteca, a tipificação do agente de garantia e a ampliação das competências dos cartórios no processo de recuperação de créditos. Todas essas medidas têm potencial de beneficiar tanto os tomadores quanto credores no âmbito dos mercados financeiro e de capitais, reduzindo custos, ampliando a concessão de crédito, bem como a eficiência e a segurança jurídica na execução de garantias.
[1] “Art. 24.
I – o valor da dívida, sua estimação ou seu valor máximo;
(…)
V – a cláusula que assegure ao fiduciante a livre utilização, por sua conta e risco, do imóvel objeto da alienação fiduciária, exceto a hipótese de inadimplência;
(…)
VII – a cláusula que disponha sobre os procedimentos de que tratam os arts. 26-A, 27 e 27A desta Lei.”
[2] Uma vez aberta a possibilidade de alienação fiduciária superveniente será considerado o valor da dívida mais antiga vigente sobre o bem.
Para continuar lendo, cadastre-se!
E ganhe acesso gratuito
a 3 conteúdos mensalmente.
Ou assine a partir de R$ 34,40/mês!
Você terá acesso permanente
e ilimitado ao portal, além de descontos
especiais em cursos e webinars.
User Login!
Você atingiu o limite de {{limit_online}} matérias gratuitas por mês.
Faça agora uma assinatura e tenha acesso ao melhor conteúdo sobre mercado de capitais
Ja é assinante? Clique aqui