Pesquisar
Close this search box.
Por trás da bolha
Seria a securitização a verdadeira culpada pela concessão desenfreada de crédito a maus pagadores nos Estados Unidos?

, Por trás da bolha, Capital AbertoAs hipotecas norte-americanas foram o primeiro tipo de crédito a ser securitizado nos Estados Unidos, na década de 1970. Até então, basicamente, bancos concediam empréstimos a quem desejasse adquirir a casa própria. Com o aumento da demanda por imóveis, após a Segunda Guerra Mundial, as instituições financeiras tiveram de inventar fórmulas novas para financiar esses empréstimos. Uma eficiente solução encontrada foi a securitização, que permitiu transformar recebíveis em títulos comercializáveis no mercado. Muito se evoluiu na estrutura desses produtos, que acabaram se difundindo em outros segmentos, como o de financiamento de veículos e cartões de crédito. Porém, só depois de mais de quarenta anos da securitização inaugural, feita em fevereiro de 1970 pelo Departamento de Habitação e Desenvolvimento Urbano dos Estados Unidos, ficou evidente que o instrumento pode ser usado com um propósito controverso.

Pesquisadores da Universidade de Chicago desnudaram esse lado negro da securitização no estudo The Consequences of Mortgage Credit Expansion: Evidence from the 2007 Mortgage Default Crisis, publicado em janeiro. Segundo os autores, Atif Mian e Amir Sufi, a venda de créditos imobiliários pelos cedentes — processo de securitização chamado pelos pesquisadores de “desintermediação” — foi o canal que estimulou o boom do segmento, a alta nos preços dos imóveis e a conseqüente crise dos “subprime”, apelido dado a títulos lastreados por dívidas de maus pagadores. Os acadêmicos culpam os “riscos morais” de originadores de créditos pelo estouro da bolha. Construtoras e bancos teriam se aproveitado da securitização para vender empréstimos concedidos sem a devida análise de crédito do tomador e, assim, transferir seus riscos a investidores em geral.

Para chegar a essa constatação, Mian e Sufi analisaram dados do mercado imobiliário norte-americano de 1996 a 2007, comparando a oferta de crédito disponível em diferentes códigos de endereçamento postal (CEPs ou “zip codes”, em inglês). Enquanto o crédito fornecido a áreas de bons pagadores manteve-se praticamente inalterado entre 1996 e 2005, regiões com alto índice de rejeição de hipotecas no primeiro ano passaram a receber aprovações de empréstimos, principalmente entre 2001 e 2005. Teriam esses CEPs prosperado a ponto de ganharem a confiança dos emprestadores? A resposta é negativa, de acordo com os pesquisadores de Chicago. O número de hipotecas aprovadas cresceu mais em regiões que apresentaram declínio em renda e taxas de emprego. A explicação para esse aparente paradoxo só poderia estar na mudança de suprimento de crédito provocada pela desintermediação, concluem. “Quebrando o link entre aqueles que analisam o crédito do tomador (os cedentes) e os que arcam com os custos em casos de inadimplência, a securitização levou aos empréstimos frouxos, que tanto abasteceram quanto derrubaram o mercado imobiliário norte-americano”, acusou em fevereiro a prestigiada revista britânica The Economist.

Teriam construtoras, incorporadoras, empresas hipotecárias e bancos norte-americanos emprestado dinheiro em excesso porque sabiam que poderiam vender rapidamente os créditos? Segundo Carlos Alberto Rebello, superintendente de Registros da Comissão de Valores Mobiliários (CVM), essa suspeita paira na International Organization of Securities Commissions (Iosco), instância que congrega órgãos reguladores de todo o mundo. Em novembro de 2007, a Iosco criou uma força-tarefa para tratar da crise dos subprime. Uma das sugestões apontadas pelo grupo de trabalho é que instituições financeiras precisam melhorar a qualidade das informações disponíveis no momento da distribuição de instrumentos de finanças estruturadas. No mercado secundário, a cooperação entre os participantes se faz necessária para elevar o grau de transparência, de acordo com a entidade.

JOGA PEDRA NA GENI — Para Chuck Spragins, sócio-diretor da Uqbar, consultoria especializada em securitização, a desintermediação induziu os originadores de crédito a terem menos cuidado, pois, no fim das contas, quem arcaria com os riscos seriam os investidores. Isso não significa, no entanto, que a securitização seja um mal por si. Bancos podem realizar empréstimos de forma negligente com ou sem finanças estruturadas à disposição, argumenta Spragins. Ele cita o exemplo de instituições financeiras que se deram mal no passado ao concederem crédito a países mergulhados em dívidas. No caso da turbulência dos subprime, foi a concorrência predatória entre os emprestadores a responsável por esticar os limites de crédito aos céus, e não o instrumento da securitização, afirma Rebello. “Na verdade, está se procurando uma Geni para uma coisa que ninguém ainda entendeu”, diz o superintendente.

Como avaliar a deterioração da política de crédito de determinada instituição é um quebra-cabeça cujas peças o mercado ainda tenta encaixar. Por trás de um produto securitizado existem camadas de crédito distintas, originadas de inúmeros sacados. “Se um banco altera a política de concessão de crédito, a securitização só vai refletir os efeitos dessa mudança”, pondera Juan de Mollein, diretor de operações estruturadas para a América Latina da agência de rating Standard & Poor’s. Mas ele concorda com a idéia de que a competição entre os originadores estimula o abrandamento das regras de análise de crédito dos tomadores.

Não cabe comparar a magnitude do mercado norte-americano de securitização com o brasileiro. Mas um relatório da Fitch Ratings, divulgado em dezembro último, traz sinais de que algumas instituições financeiras nacionais também estariam afrouxando suas regras. No texto intitulado FIDCs lastreados por créditos consignados: o que os olhos não vêem, o ‘bolso’ sente, a Fitch afirma que “existem riscos inerentes a esta classe de ativo que não estão sendo refletidos adequadamente nas demonstrações dos FIDCs disponíveis na CVM ou nos relatórios de acompanhamento dos administradores”.

Securitização pode ter induzido a análises de crédito menos cuidadosas pelos bancos porque, no final, os investidores é que arcariam com o risco

A fim de manterem clientes ou expandirem sua participação no mercado, credores estariam flexibilizando normas de concessão de empréstimos. Os casos mais freqüentes, segundo a agência de rating, são, quem diria, os créditos consignados — que prevêem desconto em folha de pagamento — dirigidos a servidores federais. Para verificar a margem de crédito disponível para cada servidor, a instituição financiadora deve se comunicar com o Siapenet, banco de dados on-line do Sistema Integrado de Administração de Recursos Humanos (Siape). O sistema, aponta a Fitch, é “menos robusto e mais lento do que os de outros convênios”, além de não funcionar durante parte do mês. Isso faz com que, muitas vezes, instituições não aguardem o o.k. do Siape para liberar empréstimos a clientes ansiosos. “É uma questão da natureza humana, de ‘vamos agilizar o processo’, ‘vamos embora’. A instituição prefere conceder o empréstimo, mesmo tendo de renegociá-lo depois, a permitir que um concorrente o faça em seu lugar”, diz Jayme Bartling, diretor de finanças estruturadas da Fitch.

CULTURA EMERGENTE — Desde a estabilização da economia, nunca o crédito se expandiu tanto no País, de uso de cartões a financiamentos de veículos e de imóveis. Mas, em relação ao PIB, o volume permanece muito baixo, diz Maria Rita Gonçalves, diretora de instituições financeiras da Fitch. Como a cultura de financiamento é novidade — os juros continuam altos —, a capacidade de endividamento da pessoa física brasileira ainda é uma incógnita. Fica difícil saber exatamente se os FIDCs estão embutindo créditos de alto risco de inadimplência. “O desenvolvimento do mercado de FIDCs está em observação”, diz Maria Rita.

Mesmo assim, algumas coisas já poderiam ser feitas para ampliar a sensação de segurança no mercado. “Os investidores não têm consciência sobre o tipo e a freqüência da divulgação de informações necessária”, critica Chuck Spragins, da Uqbar. Ele sugere que a evolução de carteiras de FIDCs e certificados de recebíveis imobiliários (CRIs) seja radiografada e tornada pública diariamente. “O fluxo de caixa produzido é a única fonte de pagamento das cotas. Se aumenta a inadimplência, o investidor tem de saber o que está acontecendo.”

De qualquer maneira, para fugir de créditos podres, Bartling aconselha o investidor a observar se o cedente (também chamado de originador) subscreve as cotas subordinadas, as primeiras a serem afetadas em situações de inadimplência. Aliás, reside nesse ponto um dos fatores que propiciam certo conforto ao mercado de securitização brasileiro. Por aqui, geralmente os cedentes subscrevem a maior parte das cotas subordinadas e deixam as seniores (menos arriscadas) para os investidores finais. Portanto, se os originadores emitirem crédito de modo inapropriado, poderão sentir um efeito bumerangue. Já nos Estados Unidos, há demanda por produtos mais propensos a riscos, inclusive derivativos montados sobre títulos lastreados em créditos duvidosos. “No Brasil, a estrutura de securitização ainda é muito primitiva do ponto de vista do risco. Portanto, essa leniência na hora da concessão do crédito não existe”, afirma Rebello, da CVM.

O apetite voraz dos investidores, aliás, desempenhou papel relevante na crise hipotecária, na visão de especialistas. “O mercado não é uma profissão de fé. Ele demanda que os compradores verifiquem suas opções”, diz Rebello. Contagiados pela euforia da liquidez mundial, investidores esqueceram-se de exercer a diligência adequada. Os riscos inerentes aos collateralized debt obligations (CDOs, pacotes que embutiam os créditos subprime) constavam nos prospectos. “Dizer simplesmente que a securitização gerou uma negligência nos processos de crédito não é justo”, afirma Marcelo Xandó, sócio da Verax Serviços Financeiros. “A origem da crise está no momento de grande liquidez internacional”, considera.

Nem os pesquisadores de Chicago crucificam a securitização. “A desintermediação só leva a maiores níveis de inadimplência quando os incentivos do originador estão menos alinhados com os do comprador e quando o investidor não tem habilidades especializadas de filtragem”, ponderam. “A lição que fica é que nunca devemos perder o contato com o nascedouro da operação”, diz Norton Bastos, analista da agência de classificação de risco Moody’s. A securitização pode ter sido o suporte da bolha imobiliária nos Estados Unidos. Mas, definitivamente, não foi quem a soprou.

Emissões de FIDCs e CRIs pisam no freio

Depois de cinco anos de plena ascensão, as emissões de títulos securitizados no Brasil sofreram a primeira retração em 2007. Relatórios da Fitch Ratings e da Moody’s, agências de classificação de risco, indicam a queda. A Fitch apurou um declínio de 42% no total de distribuições de CRI e FIDC, de US$ 5,3 bilhões, em 2006, para US$ 3,1 bilhões. Entre os fatores que explicam essa redução estão o acesso favorável ao mercado de capitais (de renda variável) e maiores exigências sobre divulgação de informações em alguns tipos de securitizações. Bancos de médio porte, responsáveis pela maior parte das vendas do mercado de securitização, teriam preferido a bolsa de valores como fonte de financiamento. Os números da Fitch diferem dos da CVM por considerar apenas as operações com distribuição a mercado.

De acordo com dados da Comissão de Valores Mobiliários (CVM), o tombo foi de 21,6%. O volume total de captações de FIDCs e Certificados de Recebíveis Imobiliários (CRIs) atingiu R$ 10,9 bilhões, ante R$ 13,9 bilhões em 2006. Em número de emissões, a redução foi de 144 para 110. Segundo a agência de rating Moody’s, o País sentiu os efeitos da crise dos subprime nos Estados Unidos. A diminuição da quantidade de lançamentos de CRIs (de 77 para 40) também pode ser explicada pelo fato de companhias do segmento de construção, as principais originadoras desses produtos, terem recorrido a ofertas públicas de ações. Apesar desse freio, a Moody’s afirma em seu relatório que FIDCs e CRIs “continuam provando ser alternativas competitivas para emissores no Brasil, especialmente quando as taxas de juros estão caindo”. (D.G.)

Conteúdo extra

The Consequences of Mortgage Credit Expansion: Evidence from the 2007 Mortgage Default Crisis.


Para continuar lendo, cadastre-se!
E ganhe acesso gratuito
a 3 conteúdos mensalmente.


Ou assine a partir de R$ 34,40/mês!
Você terá acesso permanente
e ilimitado ao portal, além de descontos
especiais em cursos e webinars.


Você está lendo {{count_online}} de {{limit_online}} matérias gratuitas por mês

Você atingiu o limite de {{limit_online}} matérias gratuitas por mês.

Faça agora uma assinatura e tenha acesso ao melhor conteúdo sobre mercado de capitais


Ja é assinante? Clique aqui

mais
conteúdos

APROVEITE!

Adquira a Assinatura Superior por apenas R$ 0,90 no primeiro mês e tenha acesso ilimitado aos conteúdos no portal e no App.

Use o cupom 90centavos no carrinho.

A partir do 2º mês a parcela será de R$ 48,00.
Você pode cancelar a sua assinatura a qualquer momento.