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O tabu da remuneração
Os aspectos culturais, sociológicos e psicológicos que explicam a recusa dos administradores de companhias abertas em ter sua remuneração revelada

, O tabu da remuneração, Capital Aberto

Em 1986, o psiquiatra e consultor norte-americano David Krueger apregoou em seu livro The Last Taboo: Money as Symbol and Reality in Psychoterapy and Pshcyoanalysis que o dinheiro era o último tabu da sociedade contemporânea. Naquela época, enquanto sexo virava assunto trivial, o bolso de cada um permanecia um tema intocável, mesmo em conversas entre amigos. Passadas mais de duas décadas, a atual resistência dos administradores de companhias abertas brasileiras em divulgar dados sobre sua remuneração é uma prova de que a tese de Krueger continua viva. Por trás de argumentos técnicos para se evitar a exposição detalhada dos rendimentos dos executivos, “a verdade é que há razões culturais e sociais que explicam esse receio de falar em dinheiro”, afirma a antropóloga Lúcia Helena Alves Müller, professora do programa de pós-graduação em ciência sociais da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUC-RS).

, O tabu da remuneração, Capital AbertoAspectos menos óbvios do que o medo de ser sequestrado, por exemplo, ajudam a entender o boicote à transparência promovido por várias empresas. As motivações começam pela origem da nossa cultura, influenciada pelo catolicismo, que sempre teve como uma de suas bandeiras o desprendimento dos bens materiais. Já o protestantismo, marca dos norte-americanos, vê na prosperidade financeira um sinal de bênção divina. Ao longo dos séculos 15 e 16, a religião católica condenava as práticas da usura — juros excessivos cobrados em empréstimos — e do lucro pelos comerciantes.
No Brasil, medir o valor de uma pessoa pelo patrimônio que possui é algo moralmente inaceitável. “O bonito é ser rico, mas não aparentar”, observa Lúcia Helena, especialista em cultura empresarial.

Contribui para esse cenário a herança do nosso passado colonial, no qual era raríssimo alguém enriquecer trabalhando. Quem tinha muito dinheiro havia herdado bens ou era próximo à realeza. Colocar a mão na massa, portanto, era tarefa para os escravos, que jamais sairiam da pobreza. Só mais recentemente, na segunda metade do século 20, é que ganhou força a imagem do empreendedor que enriquece a partir de esforços próprios. “Num país em que historicamente o acúmulo de bens não esteve associado a trabalho, fica difícil para a população entender que houve mérito na remuneração altíssima recebida por alguns profissionais”, explica Lúcia. “Por isso o medo dos executivos de serem criticados socialmente.”

“Num país em que historicamente o acúmulo de bens não esteve associado a trabalho, fica difícil entender que houve mérito na remuneração”

Hoje, o salário de um CEO, dependendo do porte da organização em que atua e dos valores auferidos com remuneração variável, pode chegar à casa dos milhões de reais. Na SulAmérica, o valor do maior salário recebido pela diretoria, em 2009, foi de R$ 5,72 milhões, segundo divulgou a companhia na proposta da administração para a assembleia-geral deste ano.

Essa realidade se choca diretamente com a situação vivida pela maioria dos trabalhadores brasileiros. De acordo com dados de 2009 do Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos (Dieese), cerca de 31% dos brasileiros ganham de um a dois salários mínimos, o equivalente a, no máximo, R$ 930. Aqueles que recebem acima de 20 salários mínimos, ou R$ 9,3 mil, correspondem a menos de 1% da população. Essa desigualdade faz com que as empresas temam despertar pressões de sindicalistas ao dar publicidade a gratificações milionárias de alguns poucos empregados.

A enorme distância social entre os administradores das companhias e as demais faixas da população dificulta o entendimento desses profissionais de que devem prestar contas à sociedade civil e, no caso de companhias abertas, também ao mercado. Para a pesquisadora Maria Chaves Jardim, do núcleo de estudos em sociologia econômica e das finanças da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar), a polêmica sobre a remuneração traz à tona, mais uma vez, o embate entre a “elite tradicional”, que reluta em aceitar práticas de disclosure mais abrangentes, e a “elite vanguardista”, composta da Comissão de Valores Mobiliários (CVM), de investidores e, principalmente, dos defensores da boa governança. “Essa ‘elite tradicional’ pode ter até um discurso de transparência, mas, no seu íntimo, não se convenceu dessa importância”, alfineta.

significados do dinheiro — A recusa em falar de remuneração também pode ser entendida do ponto de vista da psicologia econômica, uma área ainda pouco difundida no País, mas que vem se desenvolvendo bastante na Europa, nos Estados Unidos e na Nova Zelândia. Não é mistério que o dinheiro, além do seu valor monetário, carrega significados simbólicos. Em 2000, o trabalho Dinheiro no Brasil: um Estudo Comparativo do Significado do Dinheiro entre as Regiões Geográficas Brasileiras, realizado pela doutora em psicologia Alice da Silva Moreira, indicou o que vem à cabeça das pessoas quando elas pensam nas “verdinhas”. A resposta foi: poder, conflito, desapego, sofrimento, progresso, desigualdade, cultura e estabilidade. No Sudeste, onde se concentra a maior parte das companhias abertas, o dinheiro foi visto, preponderantemente, com conotação negativa: fonte de poder, conflito e desigualdade — o que também ajuda a explicar a preferência dos executivos por guardar em segredo seus holerites.

“O dinheiro é como uma extensão do nosso corpo. Se revelamos nosso salário, é como se fôssemos desnudados em público”, analisa Vera Rita de Mello Ferreira, doutora em psicologia econômica e representante do Brasil na International Association for Research in Economic Psychology (Iarep). Se, em grande quantidade, o dinheiro significa poder, em pouca, pode denotar fragilidade. Por isso muita gente prefere evitar constrangimentos e privilegiar o sigilo. “Embora todo mundo sempre fique de olho em quanto os outros ganham, as pessoas não querem falar de números precisos”, avalia Rita. “Sem saber o valor exato do salário do outro, o indivíduo pode imaginar o que quiser e até encontrar um consolo nas suas fantasias.”

Não podemos esquecer também que toda novidade traz uma dose de desconforto. No Brasil ou em qualquer lugar do mundo. Em janeiro de 2010, a Comissão do Mercado de Valores Mobiliários (CMVM), dos nossos colonizadores portugueses, promulgou uma norma pedindo o disclosure, no relatório anual de governança corporativa, das políticas salariais de diretores e conselheiros de administração, inclusive membros do conselho fiscal e de auditoria. A medida, como vem ocorrendo aqui, causou polêmica. Até porque a nova regra prevê que, a partir de 1º de janeiro de 2011, os dados sejam publicados de forma ainda mais detalhada. Deverão ser reportadas, anualmente, a remuneração global e individual de cada órgão e de seus membros assim como a distinção entre remuneração fixa e variável (incluindo os parâmetros dos prêmios). O presidente da Portugal Telecom, Henrique Granadeiro, manifestou-se totalmente contra a medida. À Rádio e Televisão de Portugal (RTP) afirmou: “A curto prazo, essa divulgação causará falta de estímulo e incapacidade para captar os melhores profissionais para a empresa”.

medo da violência — De todos os argumentos usados pelos executivos para se oporem à iniciativa da CVM, o da violência é, sem dúvida, o mais recorrente. Não há como dizer que esse medo seja apenas paranoia, afinal, vivemos num país com índices elevados de criminalidade. Mas a abertura do valor da remuneração, como pede o regulador, irá, de fato, trazer um risco maior aos executivos de companhias abertas? O cargo, carro ou bairro onde mora já não seriam suficientes para denunciar sua classe social e atrair a cobiça dos criminosos? Walter Machado de Barros, presidente do conselho de administração da regional de São Paulo do Instituto Brasileiro de Executivos de Finanças (Ibef SP), concorda que sim, mas logo rebate: “Com o formulário de referência da Instrução 480, as potenciais vítimas passam a ser apresentadas de forma estruturada e sujeitas a exame, avaliação e seleção”.

Antonio Castro, presidente da Associação Brasileira das Companhias Abertas (Abrasca), diz haver uma diferença entre supor e saber o quanto um executivo ganha exatamente. A medida, segundo ele, seria prejudicial principalmente para os empresários que mantêm um estilo de vida mais discreto. “Com essa informação em mãos, o sequestrador vai ganhar poder de negociação”, diz José Roberto de Castro Neves, advogado contratado pelo Ibef-Rio.

Especialistas em segurança argumentam que não é essa informação que vai fazer com que os executivos sejam mais ou menos visados por sequestradores. “O que torna esses profissionais vulneráveis é, principalmente, o seu comportamento, a sua rotina e a forma como se expõem em público”, sentencia Edilson Carnevali, diretor do comitê de segurança pessoal da Associação Brasileira dos Profissionais de Segurança (Abseg).

Uma boa notícia é que os números de sequestros no Estado de São Paulo vem caindo a cada ano. Em 2008, houve 60 casos de extorsão mediante sequestro, uma queda de 39,1% em comparação ao ano anterior. Em relação aos números de 2002, a redução foi ainda maior: 83,1%. “Hoje, os executivos sequestrados são, na maioria, aqueles que tiveram uma ascensão profissional, mas continuam levando o mesmo estilo de vida anterior, sem se preocupar com a segurança”, enfatiza Tatiana Diniz, presidente da Abseg.

Para Mauro Rodrigues da Cunha, presidente do conselho de administração do Instituto Brasileiro de Governança Corporativa (IBGC), a questão da segurança é uma “falsa polêmica”. “Os argumentos utilizados vão contra a tendência mundial, que é a da busca por maior transparência”, afirma. Nos Estados Unidos, onde a divulgação dos salários individuais é obrigatória há décadas, um projeto de lei do senador democrata Christopher Dodd quer aumentar ainda mais o grau de disclosure sobre remuneração de executivos. A proposta é que haja uma descrição clara dos itens que compõem a remuneração total e são entregues à Securities and Exchange Commission (SEC). Para Dodd, a companhia deve, inclusive, apresentar dados que expliquem a relação entre a remuneração de executivos, o desempenho financeiro da empresa e o retorno para os investidores.

Empresas usam liminar do Ibef-Rio

A exigência por um maior disclosure dos dados sobre remuneração surgiu com a Instrução 480 da Comissão de Valores Mobiliários (CVM). Ela obriga que a companhia divulgue no formulário de referência os valores máximo, médio e mínimo da remuneração paga a cada órgão de gestão (conselhos de administração e fiscal e diretoria estatutária). De um lado, estão os defensores ferrenhos da medida, que veem nessas informações a possibilidade de os investidores finalmente compararem os sistemas de incentivos das empresas e analisarem sua eficácia. Do outro, os críticos que acreditam que esse nível de transparência não só irá expor os executivos e os familiares a um risco maior de violência, como também devassar sua intimidade.

Com essas alegações, a regional do Rio de Janeiro do Instituto Brasileiro dos Executivos de Finanças do Rio de Janeiro (Ibef-Rio) obteve na Justiça, em março, uma liminar que permite às companhias em que atuam seus associados não informar os gastos com salários conforme manda a 480. A grande reclamação é que, embora a instrução não determine a abertura da remuneração individual, como acontece em praticamente todas as principais economias do mundo — até então fora dessa tendência, o Japão tem hoje um projeto semelhante em andamento —, não é preciso muito esforço para se concluir que o maior salário da diretoria ou do conselho aplica-se ao presidente desses órgãos. “Dentro da companhia, também não será difícil deduzir qual diretor recebe a menor remuneração, expondo e constrangendo o executivo”, argumenta José Roberto de Castro Neves, advogado contratado pelo Ibef-Rio.

Segundo Neves, quando dois valores colidem — no caso, o direito à privacidade versus a transparência —, cabe ao juiz decidir qual é o mais importante. Para Firly Nascimento Filho, da 5ª Vara Federal do Rio, que julgou a ação, não houve dúvida: o direito à privacidade prevalece. A decisão levou diversas companhias a embarcar na liminar e não divulgar as informações. Souza Cruz, CPFL Energia, AmBev, Brasil Telecom, Gerdau e Santander são algumas delas. (L.T.)


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