A construtora PDG descobriu, da pior maneira, que sonegar informação ao investidor pode causar dores de cabeça. A proposta de remuneração dos administradores da companhia foi rejeitada na assembleia-geral de abril, em um episódio inédito no Brasil. O resultado da reunião não só demonstrou que muitas empresas ainda relutam em minuciar as informações sobre os ganhos de seus executivos como escancarou a falta de comunicação entre companhias e investidores antes das assembleias. Na pauta estava a manutenção dos valores pagos no ano anterior (um total anual de R$ 30 milhões para conselheiros e diretores), mas o problema era a ausência de detalhes. A PDG optou por divulgar apenas o montante global que pretendia gastar com seus executivos em 2011, sem especificar nem mesmo quanto seria pago ao conselho de administração e à diretoria. As empresas MRV e Cyrela, também do setor de construção civil, foram pelo mesmo caminho.
Embora no item 13 do formulário de referência a Comissão de Valores Mobiliários (CVM) exija somente a divulgação dos valores mínimos, médios e máximos pagos no ano anterior, abstendo-se de qualquer orientação sobre os valores a serem apresentados na proposta da administração para a assembleia, as consultorias de voto estão sedentas pelo máximo de disclosure possível. A International Shareholders Services (ISS), uma das principais consultorias de voto do mundo, aconselhou aos seus clientes detentores de ações da PDG que votassem contra a proposta de remuneração da companhia porque não havia indicação do quanto seria pago ao principal executivo. “É razoável que os acionistas esperem que empresas abertas tenham total transparência sobre o quanto é pago ao executivo mais bem remunerado, além de um detalhamento dos componentes fixos e variáveis dos salários”, escreveu a consultoria em sua recomendação.
Os acionistas minoritários presentes na assembleia representavam 36% do capital social da companhia, e 60% deles votaram contra o plano salarial. Segundo especialistas do mercado e a própria PDG, a adesão dos votantes às recomendações de consultorias internacionais insatisfeitas com a falta de detalhamento da proposta de remuneração foi a razão da negativa na assembleia. “Muito de nosso capital está nas mãos de estrangeiros e eles seguiram a sugestão da ISS. Se tivéssemos uma maioria de brasileiros, provavelmente teria passado”, avalia o diretor jurídico da PDG, Cauê Cardoso.
Se tivéssemos uma maioria de brasileiros (no capital da companhia), provavelmente teria passado”, diz o diretor jurídico da PDG
Resumo da ópera: os investidores votaram de acordo com as sugestões das consultorias de voto; as consultorias não toleraram as informações opacas sobre remuneração; e a PDG não teve o cuidado de explicar com antecedência a esses dois públicos as razões para não dar pormenores sobre o pagamento proposto. Tudo isso poderia ter se passado bem longe dos holofotes se a companhia em questão tivesse um acionista controlador para garantir a maioria dos votos e liquidar o assunto na assembleia. Mas, no caso da PDG, o capital é disperso. Seu maior acionista é a Blackrock, que possui 7,2% das ações.
Agora, a empresa garante estar conversando com seus sócios para aprovar a proposta sem alterações de valores. E deixa claro: se necessário for, irá especificar os rendimentos de seus executivos. “Se os acionistas não concordarem com a argumentação de que nossos pares no mercado também optaram por não detalhar a remuneração e decidirem só aprovar se houver divulgação completa, abriremos. Somos uma corporation e pertencemos aos investidores. Não há um controlador para impor sua vontade”, afirma Cardoso.
INFORMAÇÃO IRRELEVANTE? — Dentre as companhias abertas em geral, os dados sobre salários ainda são escassos. A CAPITAL ABERTO analisou as propostas da administração para as assembleias-gerais ordinárias realizadas entre abril e maio deste ano das 20 empresas com maior participação na composição do Ibovespa (ver tabela) e apurou que 8 optaram por não detalhar a remuneração do ano anterior, conforme requer o item 13 do formulário de referência. Elas usaram o único amparo legal existente — uma liminar conquistada pelo Instituto Brasileiro de Executivos de Finanças do Rio de Janeiro (Ibef-RJ) na Justiça — para não divulgar os valores mínimos, médios e máximos exigidos na norma regulamentada pela Instrução 480. Segundo a instituição, a publicação dos vencimentos colocaria os profissionais em risco devido à desigualdade social e à violência urbana. José Roberto de Castro Neves, advogado do Ibef-RJ, alega que o benefício para o mercado é irrelevante diante do constrangimento imposto aos diretores. “Empresas como a Vale e o Itaú Unibanco aderiram à liminar e não tiveram restrições de investimentos por causa disso”, diz.
Ao redor do mundo, a argumentação sobre a segurança tende a ser ignorada. O investidor inglês ou americano, acostumado há algumas décadas com a abertura dos ganhos dos administradores, não está por dentro dos detalhes jurídicos ou até mesmo sociais do País. “Se as empresas não se preocuparem em informá-los adequadamente, o risco de eles seguirem automaticamente a sugestão da consultoria de voto é grande”, alerta Hernan Lopez, gerente regional da América Latina da consultoria de governança corporativa Sodali.
Quando uma empresa vai mal, saber quanto o responsável por ela leva para casa é uma forma de cobrança importante
Para Dwight Clancy, analista da consultoria de voto Glass Lewis, muitas empresas abriram as polêmicas informações sobre os salários mínimos, médios e máximos em 2011, mas nem assim os formulários tiveram um salto significativo de qualidade. “Estão falando muito e dizendo pouco. Embora informem quais variáveis compõem os bônus e os incentivos de longo prazo, não as detalham.” Clancy cita o exemplo da Vale, que prevê um prêmio atrelado ao seu desempenho comparado com o de outras grandes mineradoras. As informações da proposta são, segundo ele, insuficientes, porque não explicitam como essa remuneração varia de acordo com as posições obtidas pela companhia nessa análise e não esclarecem quais indicadores são levados em conta na comparação. Por exemplo, o texto sugere que o salário cresce 50% se a empresa ficar em primeiro lugar. A partir da 15ª posição, não há pagamento, mas a proposta não cita qual o bônus para as posições intermediárias.
Outro aspecto que chama atenção dos especialistas desde o ano passado é o fato de alguns conselhos receberem pagamento superior ao da diretoria. Em geral, há o entendimento de que o conselho se reúne esporadicamente, ao passo que os diretores dedicam tempo e esforço maiores à companhia, fazendo juz a um salário mais elevado. Quando há acionistas controladores no conselho, fica no ar a desconfiança de que o ganho elevado poderia significar uma forma alternativa de retirada de recursos da companhia.
O especialista em governança corporativa Renato Chaves notou que, na amostra analisada pela reportagem, o pagamento de valores globais superiores aos conselhos, em relação aos da diretoria, ocorria nas empresas Gerdau e Itaúsa. Mas, considerados os valores médios, apenas na Gerdau os conselheiros ganham mais que os diretores. Procurada, a companhia informou ter 65 diretores não estatutários, cujos rendimentos não precisam ser informados à CVM, o que elevaria os valores totais da diretoria. Entretanto, não fica claro se, quando considerados esses 65, a remuneração média da diretoria seria maior que a do conselho.
Fora da lista das 20 maiores do Ibovespa, a Marcopolo se destaca no item dos salários dos seus conselheiros. A companhia já havia sido citada em reportagem da edição 81 da CAPITAL ABERTO porque a remuneração máxima do conselho de administração superava consideravelmente a da diretoria. Na ocasião, a empresa estava em período de silêncio e não se pronunciou. De acordo com o formulário de referência divulgado em 2011, a aparente distorção se mantém. O ganho máximo no conselho de administração é de R$ 5,2 milhões, enquanto o maior valor pago à diretoria é de aproximadamente R$ 2 milhões. Paulo Pedro Bellini, presidente do conselho de administração, é também o principal acionista, com 43,7% das ações ordinárias.
O diretor de relações com investidores da companhia, Carlos Zignani, justificou que o conselho de administração contém um comitê responsável por elaborar a política de longo prazo e cujos integrantes são mais bem remunerados, enquanto a diretoria tem um papel operacional. Trata-se do comitê de estratégia e inovação, composto de 5 pessoas, sendo 3 conselheiros — um deles é o filho de Paulo Pedro Bellini. Na média, contudo, a remuneração dos membros da diretoria excede a do conselho. “Deixamos isso claro aos nossos sócios e não aderimos à liminar do Ibef-RJ porque prezamos a transparência”, declara Zignani.
“Políticas de remuneração que não têm nada absurdo, seja pelo exagero ou pela falta, são um indício de seriedade”
POUCO ATIVISMO — A Associação de Investidores no Mercado de Capitais (Amec) também demonstrou insatisfação com a falta de detalhes e de clareza no item 13. O diretor da instituição Mauro Cunha é enfático na defesa da divulgação. “Apresentar esse tipo de informação deve ser praxe em uma empresa de capital aberto. A Amec é engajada na defesa do acesso a esses dados”, afirma.
Hernan Lopez lembra que a crise de 2008 deixou os investidores estrangeiros ainda mais alertas ao bolso dos administradores. Afinal, ninguém quer ter a surpresa de descobrir que o CEO que ajudou a levar a companhia à bancarrota tomando decisões equivocadas e de curto prazo era financeiramente incentivado para isso. No Brasil, porém, essa cobrança ainda não é tão forte. “Como a expansão do nosso mercado de capitais é recente, ainda deve levar alguns anos para o ativismo se desenvolver”, pondera Marcelo Barbosa, sócio do escritório Vieira, Rezende, Barbosa e Guerreiro.
Para a sócia do Almeida Bugelli e Valença Advogados Associados, Sílvia Bugelli, é preciso haver também uma mudança na cultura das companhias: “O acionista ainda é visto como um cliente e não como um sócio. O administrador é um empregado do investidor, não faz sentido não saber quanto ele ganha”. Ainda assim, não dá para negar a evolução da transparência no mercado brasileiro. “Estamos em outro patamar. Antes não tínhamos acesso a nada, mas hoje já conseguimos perceber se os estímulos são de curto ou longo prazo,” observa Adriane de Almeida, coordenadora do centro de conhecimento do Instituto Brasileiro de Governança Corporativa (IBGC).
TERMÔMETRO PARA AS HORAS RUINS — Para os analistas de investimentos ouvidos pela reportagem, a falta de detalhamento sobre os salários dos administradores não é suficiente para frear uma decisão de investimento. “O valor em si não é tão interessante. No curto prazo, esse item não chama atenção”, avalia Rafael Rodrigues, diretor de renda variável da gestora Rio Bravo. O presidente da Associação dos Analistas e Profissionais de Investimento do Mercado de Capitais de São Paulo (Apimec-SP), Reginaldo Alexandre, defende a divulgação dos valores pagos a cada diretor, mas salienta que isso não é crucial em uma análise de investimentos. “Na verdade, o importante é saber quais elementos determinam a remuneração variável”, comenta.
Os analistas podem até não sentir falta desse esclarecimento no dia a dia, mas concordam que esse dado se torna relevante quando há problemas. No caso de uma companhia ir mal, olhar quanto o responsável por ela está levando para casa vira um instrumento de cobrança e um elemento a ser decididamente considerado nos trabalhos de análise. Francisco Ramirez, professor e consultor de gestão de pessoas do Insper, usa uma metáfora para explicar a função do item 13 do formulário de referência: essa informação é como a de um termômetro; quando a temperatura é de 36,5ºC, você sabe que está livre da febre e sente um alívio. “Políticas de remuneração que não têm nada absurdo, seja pelo exagero ou pela falta, são um indício de seriedade. A grande vantagem é que, se houver algo errado, a informação estará disponível e a CVM, os analistas ou a imprensa vão gritar.”
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