Grande circulação de pessoas, produtos e dinheiro: essa era a realidade mundial sob os efeitos da globalização. O uso do tempo passado não é mera coincidência: o movimento, que orienta a economia há pelo menos 30 anos, encara, com a pandemia, especulações sobre sua viabilidade. Isso porque, em poucas semanas, o novo coronavírus foi capaz de desmantelar boa parte da infraestrutura global de trocas e intercâmbio, isolando pessoas em suas casas e países em suas fronteiras. Embora seja muito cedo para dizer que estes são sinais da morte da globalização tal qual conhecemos, a pandemia pode atuar como catalisadora de regionalismos e populismos que já há algum tempo enfraquecem a ideia de integração internacional.
Uma das primeiras questões a despontar nesse ambiente é se o mundo sairá menos global e mais local da crise da covid-19. E, pelo que indicam as primeiras análises, a resposta parece ter algumas nuances. Para entender o movimento, o professor e presidente do Conselho Federal de Economia (Cofecon), Antônio Corrêa de Lacerda, recomenda que a globalização seja encarada em duas vertentes. A primeira delas é a chamada globalização financeira, ou financeirização da economia. “É um fenômeno caracterizado pelo descolamento dos ativos financeiros em relação ao ‘mundo real’ ou ‘mundo produtivo’ com grande transição de capitais ao redor do mundo.”, destacou durante encontro realizado na Conexão Capital, seção de debates e entrevistas ao vivo da CAPITAL ABERTO. “Esse movimento é duradouro e não será afetado pela pandemia”.
Novo regionalismo
Não se pode dizer o mesmo da segunda vertente, a globalização produtiva, outro pólo da discussão. Da noite para o dia, a maior parte dos países percebeu que suas cadeias de produção estavam – em maior ou menor grau – dependentes de bens importados, a que agora não tinham acesso. Isso ocorre porque, com a globalização, é raro que todas as etapas produtivas se concentrem inteiramente em um único Estado. As empresas, pelo contrário, buscam diversificar suas operações para outras partes do mundo em busca de condições mais vantajosas, principalmente na Ásia e sobretudo na China, que foi o epicentro inicial da atual crise.
Este, porém, é um movimento que já vinha enfraquecendo nos últimos anos, mesmo antes da pandemia. Uma pesquisa da consultoria EY divulgada neste ano mostrou que as companhias já estavam reavaliando suas estratégias na China há vários anos, devido ao aumento dos custos, ao ambiente de negócios desafiador e às tensões comerciais crescentes com os Estados Unidos.
A crise levantada pelo novo coronavírus, no entanto, elevou as preocupações à máxima potência. “A questão se torna especialmente relevante em momentos como o atual, em que ocorre um aumento muito grande da demanda e dificuldades de logística. Neste ambiente, a segurança de fornecimento passa a ser crucial, especialmente quando se trata dos ramos alimentar, energético e sanitário”, argumenta Lacerda. “A questão foi especialmente grave para o Brasil, que caiu no conto da sereia da globalização, e entrou num processo grave de desindustrialização – sendo que uma coisa não decorre da outra, necessariamente”, opina.
O País vivenciou a pior parte dessa dinâmica ao tentar importar respiradores artificiais. Sem tecnologia ou infraestrutura para produzir os equipamentos no início da crise, o Brasil comprou os produtos a altos custos e enfrentou problemas na entrega da mercadoria. Um dos episódios mais dramáticos se deu em abril, com respiradores comprados por governos do Nordeste que ficaram retidos na alfândega dos Estados Unidos e nunca chegaram ao local de destino.
A consequência é o que a consultoria EY chama em pesquisa de “novo regionalismo”, um momento em que os países, estados e cidades se entricheiraram ainda mais em suas fronteiras ao tentar solucionar a crise. Do lado de fora, ficam enfraquecidas as instituições multilaterais – como a Organização Mundial da Saúde (OMS) – que até o momento não foram capazes de endereçar soluções globais para a pandemia. O movimento não é novo, mas se solidificou com a pandemia. “O protecionismo fica cada vez mais forte, mas vêm acompanhado de uma grande contradição. Vivemos hoje a 4ª revolução tecnológica, implementada pelo 5G, pela Internet das Coisas, pela nanotecnologia. Tudo isso só existe com a globalização”, destaca Lacerda.
EUA e China
O 5G, por sinal, é hoje a principal área de disputa da geopolítica global. A nova geração de telefonia móvel tem potencial de gerar grande capital político e econômico às empresas que conseguirem liderar a implementação da nova estrutura (e consequentemente aos países-sede dessas companhias). Os chineses largaram na frente com a Huawei, mas têm enfrentado forte resistência dos americanos, que pressionam países aliados a rejeitar a via do gigante asiático. Este não é o único capítulo da disputa entre as duas potências, que começou abertamente em 2018, com o anúncio de que os EUA passariam a aumentar a taxação sobre produtos da China.
A pandemia só fez acirrar o protecionismo e os embates entre as dois países, e, em última instância, acabou por fortalecer a China. Esta é a opinião do pesquisador do Centro de Estudos das Negociações Internacionais e do Instituto de Relações Internacionais da USP, João Paulo Cândia Veiga, que também participou do encontro da CAPITAL ABERTO sobre os caminhos da globalização. “A vantagem competitiva da China é que o país têm 1,3 bilhão de cidadãos que já usam o celular para fazer todo tipo de transação imaginável. Esse movimento se intensificou com a pandemia. O resultado é um banco de dados gigantesco que é um ativo muito importante na competição global. E o governo chinês, conjuntamente com as empresas chinesas, vão usar esse recurso de poder na negociação multilateral e na disputa com os EUA”, opina.
Veiga afirma ainda que a pauta economia global corre o risco de ser sequestrada nesse momento de carência de instâncias de governança global. “Instituições multilaterais, como a Organização Mundial da Saúde, estão sendo constantemente questionadas. Nesse vácuo de regulação, as novas normas e regras serão impostas pelo elo mais forte. E as empresas chinesas estão prontas para competir com as americanas por este lugar”.
E como fica Brasil?
Dentro desse xadrez da geopolítica global, Veiga acredita que o Brasil deveria manter sua tradicional posição conciliadora, abandonada com a eleição do presidente Jair Bolsonaro em 2018. “Aliar-se com país A ou B é ruim porque não traz nenhuma vantagem. Nossos maiores benefícios na economia global vieram justamente do papel de mediador, cultivado pelo Brasil desde os tempos do Império”, argumenta. Lacerda é mais crítico, e diz que o País não está em posição de escolher aliados porque ainda não sabe qual caminho seguir. “A grande crítica que eu faço é que o Brasil tem um potencial enorme de reposicionamento com a crise do novo coronavírus, mas não tem um projeto de desenvolvimento. É preciso investir em políticas públicas a longo prazo e o País está preso à discussão fiscal em torno do teto de gastos como se ele, sozinho, fosse a solução para tudo”.
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