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As moedas digitais podem desbancar o dólar?
Corrida por desenvolvimento e implementação das chamadas CBDCs tem como pano de fundo disputa pela hegemonia econômica global

Uma das acepções de “anarquia”, conforme o dicionário Houaiss, é “falta de organização e/ou liderança em qualquer tipo de atividade, local ou instituição”. Pois o estabelecimento de uma engrenagem anárquica era exatamente a ideia por trás da criação do bitcoin e das demais criptomoedas. Elas foram desenhadas no final dos anos 2000 para se transformarem em meios de transferência de valores descentralizados, sustentados por uma grande e aberta comunidade virtual que subverteria o sistema financeiro global. Dada a força do movimento, muitos pensaram que essa dinâmica logo se tornaria dominante, mas os bancos centrais — mesmo limitados por seu tamanho e pela menor agilidade inerente à sua natureza — estão finalizando um pesado contra-ataque: guardiões das moedas nacionais, bases do conceito moderno de Estado, eles empreendem esforços para a criação das chamadas central bank digital currencies (CBDCs). 

As CBDCs têm pilares distintos dos criptoativos. Como o próprio nome expressa, cada CBDC representa uma unidade monetária oficial emitida (e com lastro garantido) pelos bancos centrais. Têm, em resumo, a mesma essência das moedas fiduciárias: são meio de pagamento, unidade de medida e reserva de valor. Já as criptomoedas, como o bitcoin, são “emitidas” por entes privados, participantes de uma rede que nada tem a ver com as estruturas institucionalizadas das nações, e de forma pulverizada. 

A centralização das moedas nacionais, caracterizada pelo aval e pelo cuidado de cada autoridade monetária, oferece liquidez e estabilidade para os sistemas financeiros — a depender, evidentemente, da confiança das sociedades na capacidade dos governos e bancos centrais de assegurar esses aspectos. É essa confiança no Estado que explica a força e a longevidade de moedas como o dólar e a libra esterlina e a fragilidade e a inconstância das moedas de países com a economia e a política historicamente menos estáveis, como Brasil e Argentina, por exemplo.   

Liderança global 

Para além do enfrentamento das difusas criptomoedas, essa ofensiva dos bancos centrais para desenvolvimento das CBDCs se insere no contexto da disputa pela liderança da economia no século 21 entre Estados Unidos e China. Trata-se de um novo capítulo da guerra comercial que opõe as duas potências. Há quem veja nas ações chinesas a ambição de tornar a moeda nacional digital do país — o e-yuan, que já está sendo implementado — mais forte que o próprio dólar. 

Fato é que, se for mesmo essa a intenção, a tarefa dos chineses é monumental (como, aliás, tudo o que se refere ao gigante asiático). A moeda americana ainda é um dos maiores trunfos dos Estados Unidos para enfrentar a expansão de outros países e a possibilidade de a China passar a ser o motor econômico e financeiro do mundo. Isso apesar de estimativas como a do britânico Centro de Pesquisa Econômica e de Negócios (CEBR, na sigla em inglês), segundo a qual o PIB (indicador de geração de riquezas) chinês vai ultrapassar o americano em 2028. “O dólar é a moeda mais forte do mundo, e a pandemia deixou isso muito claro. A China não vai virar a maior potência enquanto não dominar a moeda global de circulação de capital”, avaliou Ana Laura Magalhães, sócia da XP Inc., em evento da CAPITAL ABERTO. Vale lembrar que, logo que a crise sanitária se instalou, no início de 2020, os investidores em massa passaram a comprar títulos do Tesouro americano, elevando os juros desses papéis e sustentando o dólar em alta ante outras moedas — a corrida não foi pelo yuan. 

A ameaça do e-yuan 

O projeto-piloto da moeda digital da China foi lançado no fim de 2020. Bem ao estilo chinês, o governo de Xi Jinping paralelamente tem apertado o cerco a transações com criptomoedas no país e avançado rapidamente na implementação do yuan digital. Segundo o jornal South Morning China, existem hoje 11 regiões chinesas testando o e-yuan. E engana-se quem pensa que o projeto é local: o governo quer expandir a moeda digital além-fronteiras — e rápido. A ideia é que o e-yuan já esteja em circulação, para uso de chineses e também de estrangeiros, durante os Jogos Olímpicos de Inverno de 2022, cujas sedes serão Pequim e a cidade de Zhangjiakou, na província de Hebei. 

Esses estrangeiros incluiriam, pelos planos chineses, usuários americanos. Mas a notícia de que cidadãos dos Estados Unidos poderiam converter dólares em e-yuans sem a necessidade de abertura de uma conta bancária na China não passou despercebida em Washington D.C. Senadores republicanos, como Marsha Blackburn, Roger Wicker e Cynthia Lummis, chegaram a pedir que o Comitê Olímpico do país proibisse os atletas americanos de utilizar a nova moda digital chinesa, mencionando a possibilidade de espionagem e o risco à segurança de dados. A preocupação já começa a ecoar no mercado de capitais. Kyle Bass, fundador e CIO da Hayman Capital Management, em entrevista ao portal americano CNBC, disse que o yuan digital representa a maior ameaça ao Ocidente em pelo menos 40 anos, com chance de servir de canal para exportação do que classificou como “autoritarismo digital” da China. 


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Apesar desses receios, os Estados Unidos têm adotado uma estratégia bem mais lenta de instituição de uma moeda digital. Enquanto cerca de 1 milhão de chineses já contam com uma carteira de e-yuan, os americanos estão tateando esse universo, ainda em fase de pesquisas. Atualmente, dois grupos estão encarregados de descobrir como pode ser uma moeda digital oficial dos Estados Unidos: o MIT’s Digital Currency Initiative e o Federal Reserve (FED, o banco central do país) em seu braço de Boston. A academia, no entanto, defende que não há tempo a perder. “Os Estados Unidos não devem descansar sobre sua liderança monetária. É preciso avançar no desenvolvimento de uma estratégia clara que garanta a predominância do dólar”, observa Darrell Duffie, professor de finanças da Graduate School of Business da Universidade de Stanford, em entrevista para a agência de notícias Sputnik News

Esforços para criação do real digital 

Enquanto, com suas táticas diversas, os gigantes digladiam, o pioneirismo chinês e a cautela americana sem dúvida beneficiam países que estão em busca de aprendizado nessa seara. É o caso do Brasil. Por aqui, o Banco Central (BC) já se manifesta publicamente quanto a esses planos, perfilando-se a nações que também anunciaram intenção de lançar suas próprias CBDCs. De acordo com dados do Banco de Compensações Internacionais (BIS, conhecido como o banco central dos bancos centrais), cerca de 85% dos BCs do mundo estão pesquisando ou desenvolvendo suas próprias moedas digitais. Na avaliação do BIS, a intensificação do interesse nas CBDCs decorre das evoluções tecnológicas de pagamentos e transações nos mercados de capitais e das transformações determinadas pela pandemia.  

Particularmente no caso brasileiro, o BC estuda os possíveis modelos de emissão de um real digital desde agosto de 2020, quando foi criado um grupo de trabalho específico. No primeiro semestre deste ano, o grupo anunciou as diretrizes para a criação de uma moeda digital nacional, com perspectiva de lançamento para os próximos anos — talvez já em 2022, segundo o presidente da autoridade monetária, Roberto Campos Neto.  

A ideia é viabilizar avanços como os pagamentos digitais mesmo quando não há conexão à internet, eliminando barreiras para a inclusão financeira pelo País, ponto importante quando se trata de um território tão amplo e desigual. Além disso, calcado num robusto modelo de criptografia (via blockchain), o futuro real digital permitiria a diminuição de custos e riscos inerentes à circulação de papel-moeda, que ainda é fatia importante dos meios de pagamento no Brasil. O eventual e-real teria, segundo os planos do BC, distribuição intermediada por custodiantes do Sistema Financeiro Nacional (SFN) e do Sistema de Pagamentos Brasileiro (SPB).  

“Não é um debate sobre substituição, mas a respeito de complementariedade do meio digital para cobrir lacunas e superar fricções que a moeda tradicional tem dificuldade de superar. Trata-se de um equilíbrio no qual os benefícios de adoção de uma CBDC superam os riscos e os custos”, reiterou João Manoel Pinho de Mello, diretor de Organização do Sistema Financeiro e Resolução do BC, durante live realizada na última quinta-feira, 29. 

O sucesso da empreitada passaria, necessariamente, por uma ampla mudança cultural — aspecto que, no Brasil, parece estar bem encaminhado. Afinal, tem sido intensa e rápida a adesão da população a processos digitais como o Pix, sistema de transferências de valores em tempo real que, passado menos de um ano desde seu lançamento (novembro de 2020), está substituindo instrumentos tradicionais como DOCs e TEDs. Isso sem contar a já identificada inclinação nacional por novidades tecnológicas e virtuais, como as redes sociais e aplicativos de mensagens instantâneas. Mas, de uma perspectiva mais ampla, talvez o BC brasileiro tenha que, em breve, adaptar seus planos aos rumos da contenda entre Estados Unidos e China, certamente a definidora da economia global pelo menos na primeira metade deste século. 

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