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Alfredo Lamy Filho: O casamento que deu certo
Da parceria entre Lamy e Bulhões, e da união dos sistemas europeu e americano, nasceu a lei brasileira das sociedades por ações

, Alfredo Lamy Filho: O casamento que deu certo, Capital AbertoEles se debruçaram sobre o anteprojeto da Lei das S.As durante dois anos. “O Bulhões era o advogado; eu, o professor”, diz Alfredo Lamy Filho, para explicar o sucesso da parceria com José Luiz Bulhões Pedreira, que, a partir de visões complementares, resultou na Lei 6.404/76. Em comum, eles tinham a paixão pelas sociedades por ações, que os levavam noite a dentro a discussões infindáveis mas, na maioria das vezes, produtivas. “Pais da criança”, não abandonaram o texto na mão do Congresso. Ao contrário, participaram ativamente do processo de aprovação, defendendo cada dispositivo do que consideravam um sistema difícil de ser alterado. Aos 87 anos, “o professor” não dá mais as disputadas aulas de Direito comercial na Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-RJ), mas continua na ativa como advogado. “Minha esposa reclama que ainda trabalho”, conta. Em seu escritório no Centro do Rio, ele concedeu a entrevista a seguir, na qual avaliou a trajetória da lei desde a sua concepção, revelou alguma mágoa pelas críticas da época e um indisfarçável orgulho pela obra que ainda defende com veemência. “Minha sensação é de que dei o meu recado”, diz Lamy, que está escrevendo um novo livro. O assunto? As sociedades por ações, é claro.

Capital Aberto: A Lei das S.As foi extremamente moderna para a época e é considerada um marco da legislação brasileira. A que o senhor atribui isso?
Lamy: Existem dois sistemas jurídicos no mundo, o romanístico, que veio da Europa, e o americano. No Brasil, somos filhos do sistema jurídico europeu. Copiamos o código comercial deles e quase todas as leis. Mas de repente veio a guerra, a Europa entrou em depressão e passamos a negociar mais com os Estados Unidos. A Europa tinha começado uma série de reformas na legislação, mas não teve audácia para algumas como, por exemplo, a ação sem valor nominal, que é algo fundamental. As inovações foram feitas pelos Estados Unidos, porque eles têm o sistema jurídico costumeiro. O que vale é o costume, não a lei. Fizemos um casamento dos dois sistemas e foi isso que marcou a lei brasileira. Aí fomos acusados de estar a serviço do capital estrangeiro. Não percebiam que esses institutos eram fundamentais para o processo funcionar.

Como o senhor e o Dr. Bulhões chegaram a esse “casamento”, que resultou na lei? Havia outros exemplos no mundo?
Fizemos algo inédito, que depois foi muito reconhecido. Fomos visitados por juristas de países europeus, interessados na nossa lei. Queriam saber o que era ação escritural, acordo de acionistas e institutos que eles não aceitavam por acreditar que o voto é indelegável. Agora a Europa está começando a mudar. O Bulhões era mais advogado, eu era mais professor. Nos juntamos e discutimos isso durante dois anos. Vivíamos discutindo. Às vezes, ligava para ele à noite, querendo alterar alguma coisa combinada de dia. Ele reclamava, um argumentava com o outro. Mas foi desse processo que saiu a união da lei brasileira com a estrangeira, que todo mundo achava impossível. O que era básico na legislação brasileira? A noção de capital social, por exemplo. Nós mantivemos. O Carvalhosa (Modesto Carvalhosa), que era honestamente contra a lei e escreveu até um livro contra, dizia que tinham destruído a noção de capital social. Não é verdade. O capital social está totalmente defendido na lei.

Como o senhor recebeu as críticas e as alterações feitas na lei?
Não se pode ameaçar o que é básico para a lei funcionar. Agora, por exemplo, estão ameaçando a limitação da responsabilidade na sociedade limitada. A lei do consumidor esticou a responsabilidade para dentro da sociedade e ninguém mais quer ser sócio de limitada. O mesmo acontece nas S.As. Se a lei criar dificuldades, ninguém vai ao mercado de capitais. Colocaram a obrigatoriedade da oferta pública no caso de venda do controle da empresa. Mas sociedade depende de controle. Toda grande sociedade nasceu da alma de um controlador. Ele tem que tomar uma decisão em cima da outra. Se não for bom, não tiver intuição, vai levar a empresa à falência. A lógica é uma só: se o controlador tem responsabilidades, então tem que ter uma vantagem, ou isso não compensa.

“Certa ocasião, estava fazendo uma palestra sobre a lei e fui interrompido: — Mas isso não existe em lugar nenhum do mundo. Eu concordei, era uma disciplina totalmente nova“

Como foi o processo para inclusão do tag along na lei?
Essa obrigatoriedade de oferta já tinha sido proposta anos antes, pelo deputado Herbert Levy, mas a sua emenda foi rejeitada na Câmara dos Deputados. Quando a Lei das S.As chegou ao Senado, na última hora, o senador Lehmann (Otto Cyrillo Lehmann) a apresentou novamente. Não percebiam que estavam mexendo em um sistema que regula um ser vivo, que é a sociedade por ações. Resultado: aprovaram a emenda. Eu fiquei danado da vida. Hoje olho para isso e percebo que não aconteceu o pânico previsto. Na época eu pensei: “Puxa, vai estragar a lei”. Mas não estragou. Mas muitas vezes se vende o controle por dez e se assina o contrato dizendo que é por cinco. Aí a oferta pública sai por cinco. Isso induz à fraude.

Houve reações a algumas inovações da lei inspiradas no mercado americano. Isso estava relacionado ao contexto político da época?
Totalmente. E ainda por cima eu era advogado da Light (multinacional americana controladora da concessionária de energia do Rio). As críticas mais apaixonadas vinham dos setores políticos. No mundo empresarial, a aceitação foi mais fácil. Recebemos ofensas graves, diziam que estávamos defendendo o capital estrangeiro, que queríamos desnacionalizar a economia. Era uma bobagem, mas soava bem em certos ouvidos, que estavam prontos para ouvir aquilo. Provar que algo vai ser bom é complicadíssimo. As pessoas perguntavam: “O que você está levando nisso?” Nessas horas, não adianta dizer que é por idealismo, que aquilo fazia parte das nossas carreiras. O capital estrangeiro não tinha interesse algum na história. Pelo contrário, se chateou com a lei. Eu mesmo fui procurado por uma companhia americana de combustíveis, que preferiu deixar de ser S.A e pular para o lado das limitadas. Ficaram com medo da responsabilidade do controlador.

Como essas novas responsabilidades foram recebidas pelos empresários na época?
Foi uma grande inovação. Em certa ocasião, estava fazendo uma palestra sobre isso e fui interrompido por alguém indignado: “Mas isso não existe em lugar nenhum do mundo”. Eu concordei, era uma disciplina totalmente nova. Por isso achávamos importante que não houvesse a oferta pública na venda do controle. Ficamos preocupados, porque a responsabilidade era uma inovação que estava entrando com um “rabo”. Tirava do controlador as vantagens pelo fato de estar ali, de arriscar.

O que o governo pediu exatamente, quando encomendou o anteprojeto?
A idéia da lei nasceu em 1972. Recebi uma encomenda do Reis Velloso (João Paulo dos Reis Velloso, que seria ministro do Planejamento em 1976), então presidente do Ipea (Instituto de Planejamento Econômico e Social), para elaborar o anteprojeto de reforma da lei. No meio do caminho, o Velloso me avisou que teria que suspender o pedido, porque o Reale (jurista Miguel Reale) tinha ligado para ele, argumentando que aquilo estava dentro do novo Código Civil. Fiz então um estudo sobre a necessidade da reforma, que foi publicado na revista Direito Mercantil. Aquilo repercutiu e foi realizado um seminário no Instituto de Advogados, em São Paulo. No ano seguinte, quando o Mário Henrique Simonsen assumiu o ministério da Fazenda, eu e o Bulhões fomos no- meados para fazer a lei. Na prática, houve um “gap” de mais de quatro anos entre o primeiro trabalho que eu fiz e a aprovação da lei.

Quais eram os objetivos da nova legislação?
A lei buscou abrir caminho para a expansão do mercado de capitais, que havia feito a grandeza da economia norte-americana. O objetivo era atrair capitais para aplicação em empresas, submetendo-os aos riscos do mercado devidamente policiado. Daí a criação simultânea da Comissão de Valores Mobiliários (CVM). Vivemos a era da sociedade por ações, a era da empresa, e para financiar o seu crescimento precisávamos de dinheiro. E não há melhor dinheiro que o do acionista. Ele não pode pedir de volta nem cobrar juros, porque está arriscando junto. É algo genial.


Esperava-se que a economia tivesse um salto de desenvolvimento?
A expectativa era abrir a porta para ver como a economia ia funcionar. Não adiantava simplesmente aprovar a Lei das S.As, porque no dia seguinte não iam brotar ações negociadas na bolsa. Era preciso dar um tempo, deixar a economia se acostumar. O mercado custou a se desenvolver e ainda não cresceu o suficiente.

Como foi a discussão no Congresso?
Na Câmara dos Deputados, tivemos uma sorte muito grande. O relator do projeto era o Tancredo Neves, uma pessoa inteligente e do setor (era advogado), que tinha uma vivência muito grande de empresa. Então foi ótimo. O relatório dele foi muito bem feito. Depois fomos chamados lá, fizemos um depoimento. Houve muitos debates. Evidentemente, algumas emendas eram procedentes, outras não.

É verdade que o presidente Ernesto Geisel acompanhou todo o processo?
O Geisel lia tudo. Depois de todas as discussões no Congresso, fomos chamados a uma reunião no Palácio Guanabara, antes da promulgação da lei. O presidente estava sentado numa ponta da mesa. Também estavam o Mário Henrique, o Severo Gomes (ministro da Indústria e Comércio) e outros ministros, que começaram a fazer perguntas. Aí o Severo Gomes questionou sobre uma questão delicada, relacionada às responsabilidades do administrador. Disse que não era possível a ação proposta pelo acionista contra os administradores. Ia continuar, quando o Geisel o interrompeu e disse: “Você não leu tudo; leia o parágrafo adiante”. Eu, que estava parado, fiquei olhando ele responder na minha frente. Fiquei perplexo, nunca imaginei que o presidente da República estivesse atento a esses detalhes.

Ele influenciou de alguma forma, pediu modificações?
Não, pelo contrário. Gostou de tudo. Só não fez o veto que a gente queria (a Emenda Lehmann).

E como foi a participação do ministro Mário Henrique Simonsen? Ele foi o mentor da lei?
Eu tinha trabalhado com o Mário antes dessa época. Fundamos juntos um curso do Ceped (Centro de Estudos e Pesquisas no Ensino do Direito, da Universidade do Estado do Rio de Janeiro) só para advogados de empresas, que era dado na Fundação Getúlio Vargas (Simonsen era diretor da pós-graduação). Por causa do curso, fomos aos Estados Unidos, para ver como é que se ensinava lá. O curso do Ceped foi um sucesso absoluto. Ensinávamos Direito comercial, Direito de sociedade por ações, Direito fiscal e Economia, que era ministrada pelo Simonsen. Ali, ele teve contato com as sociedades por ações e sentiu a sua importância. Era uma pessoa admirável, muito inteligente.

A lei já previa o que hoje são chamadas de boas práticas de governança corporativa?
A chave da governança corporativa é a comunicação, necessária para todos saberem o que está acontecendo na empresa. Uma vez o Ibrahim Sued (colunista) escreveu uma nota no jornal falando que o presidente do Banco do Brasil tinha recomendado as ações do banco para um empresário, porque a ação ia “dar filhotes”. Ninguém tinha noção do funcionamento do mercado naquele tempo. A lei foi que comprou essa briga. Governança, em primeiro lugar, é: seja honesto, divulgue para o mercado o que está ali. Se isso for cumprido honestamente, o resto é o risco da empresa. Claro que vão existir administradores melhores do que outros. Há quem defenda regras de governança, todo mundo agindo igualzinho. Eu não sei. Pode ser que funcione.

“O Geisel lia tudo…Fiquei perplexo, nunca imaginei que o presidente da República estivesse atento a esses detalhes”

Havia uma preocupação de a lei ser muito complexa para o empresário brasileiro. Como foi a adaptação à lei?
O empresário aprendeu tudo no dia seguinte. Aprendeu porque queria ganhar dinheiro. Diziam que a lei era difícil. Mas provou-se que era boa, porque pegou. Como deu certo, houve um interesse pelo nosso sistema. Depois, todo mundo mudou a sua lei: França, Alemanha, Portugal, Espanha.

Hoje estão surgindo empresas com capital pulverizado e existe uma tendência maior de ações ordinárias. As preferenciais são alvo de críticas desde a época do anteprojeto…
A Bolsa de Valores do Rio publicou um artigo enorme contra as ações preferenciais naquela época. Fizemos uma resposta, colocamos no nosso livro. Ações preferenciais existem no mundo todo. Se obrigássemos o tomador de ações a votar na assembléia, o que ele faria? Venderia as ações, porque não tem tempo para isso. O que ele quer da empresa? Que seja bem administrada, pague dividendos e que suas ações valorizem na bolsa. Essa questão do risco, da tentação, do jogo, é uma das chaves das S.As. Com essa mudança para ordinárias, os fundos de pensão estão cada vez mais controlando as empresas. A razão da ação preferencial continua existindo. É dada uma vantagem, um dividendo maior. Se amanhã não pagarem, o acionista adquire o direito de voto. São alternativas oferecidas ao investidor, como a opção de compra. Não é para ser contra ou a favor da existência da preferencial. É para ver como ela funciona. O acionista vai usar quando quiser.

Outro temor da época foi o dividendo obrigatório…
Para entender certas polêmicas é preciso lembrar que havia inflação. Era anunciado um dividendo de dez, que só era pago dali a seis meses, quando valia bem menos. Nenhuma empresa distribuía nada. Mas o acionista precisa sobreviver, não comprou a ação para vender dali a dez anos. Por isso criamos o dividendo obrigatório. Disseram que ia liquidar as empresas, mas não aconteceu nada disso.

O que o senhor achou das reformas feitas na lei?
Toda lei mercantil tem dinamismo, está sujeita a permanente revisão. Mas algumas dessas reformas deformaram a lei. Ela é um sistema; não se pode reformar um artigo sem o exame prévio e cuidadoso dos demais textos sobre os quais a alteração se refletirá. Todos estão em conexão. Infelizmente não houve essa prudência em certas alterações. Foi o caso do Conselho Fiscal. A mudança comprometeu o imprescindível equilíbrio “maioria X minoria”, essencial ao funcionamento de toda sociedade por ações.

Qual o futuro da Lei das S.As?
Não existe lei perfeita. O juiz Cardozo, da Suprema Corte Americana, disse uma vez: “Nenhuma lei mercantil é o ponto de repouso nessa jornada sem fim. Como o viajante, o abrigo da noite é apenas a preparação para a retomada da lida do amanhã.” Certamente a lei ainda passará por muitas alterações.


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