A CVM julgou pela primeira vez um caso1 de prática de layering, modalidade de manipulação de mercado que consiste na inserção de múltiplas ordens no livro de ofertas, sem a intenção de que sejam executadas, para exercer pressão (compradora ou vendedora) sobre determinado ativo e influenciar artificialmente a formação de seu preço em bolsa. O layering tem características similares às do spoofing, julgado de maneira inédita pela CVM em março de 20182. Assim como no caso do spoofing, o layering resultou na condenação de investidor pela prática de manipulação.
Com esses dois julgamentos, a CVM procura delinear parâmetros mais claros e objetivos para tipificação da conduta de manipulação de mercado à luz das inovações tecnológicas que alteraram a forma como os investidores negociam seus ativos nos mercados regulamentados3. Insere-se nesse contexto o uso de algoritmos automatizados de alta velocidade para envio de ordens, caso dos operadores de alta frequência (high frequency traders).
O caso ora julgado envolve pelo menos 8 mil operações realizadas por investidor pessoa física, entre 2013 e 2017, que totalizaram um benefício irregular de cerca de 1 milhão de reais obtido por layering, segundo a acusação. Por unanimidade, o colegiado condenou esse investidor por manipulação de mercado, na modalidade de manipulação de preços (letra “b” do item II da Instrução 8/79), seguindo na integralidade o voto do presidente da CVM e relator do processo, Marcelo Barbosa.
Antes de adentrar no mérito das condutas praticadas, o relator tece comentários gerais a respeito do caráter “aberto” das modalidades de manipulação de mercado contidas na Instrução 8/794.
Ainda que reconheça a crítica de participantes do mercado em relação a essa tipificação aberta da norma5, Barbosa considera que o caráter amplo das modalidades de manipulação é vantajoso, na medida em que permite que determinadas condutas não existentes à época da edição da norma sejam enquadradas como ilícitos administrativos, desde que preenchidos seus requisitos. Desse modo, o bem jurídico tutelado pela Instrução 8/79 (o funcionamento regular do mercado) restaria protegido, mesmo diante das transformações tecnológicas do mercado de capitais.
Feita essa consideração inicial, o relator procura destrinchar a conduta do investidor no caso em julgamento, de modo a demonstrar que ela se enquadra no tipo administrativo de manipulação de preços6.
Barbosa entende que as operações identificadas pela acusação como irregulares têm um mesmo padrão: há colocação de diversas ordens de compra ou de venda pelo investidor sem a intenção de executá-las (no lado do livro oposto ao qual ele pretende fechar a operação), com o único intuito de criar condições artificiais de oferta e demanda; os demais investidores reagem à manipulação do preço, adequando suas ofertas de compra ou de venda à situação de falsa liquidez; o investidor executa a operação desejada em condições mais vantajosas e decorrentes do ambiente artificial criado; logo após o fechamento da operação pretendida, as ofertas artificiais são canceladas.
A defesa do acusado sustenta que a inserção de operações em ambos os lados do livro e o cancelamento de ordens logo após serem efetuadas são condutas permitidas pela regulamentação do mercado de capitais. Nessa linha, a defesa sugere que, caso a tese da acusação venha a prevalecer, várias operações em bolsa nas quais uma ordem é inserida e posteriormente cancelada poderiam vir a ser caracterizadas como manipulação de preços.
Barbosa reconhece em seu voto que o argumento da defesa poderia ser considerado procedente, na medida em que as operações analisadas individualmente não configuram, por si só, um ilícito administrativo. No entanto, o relator observa que as condutas do acusado, quando observadas num contexto global, demonstram uma estratégia constante e reiterada de layering.
Um segundo argumento levantado pela defesa é que o recorte das operações analisadas pela CVM (originado da supervisão realizada pela BSM, entidade fiscalizadora das operações no ambiente de bolsa) não teria sido feito com base em critérios precisos, de modo que operações legitimamente canceladas estariam inseridas na lista de operações tidas como manipuladoras.
Barbosa também refuta essa argumentação. Na sua visão, o acusado falhou em demonstrar que as ofertas analisadas não eram anormais e não forneceu qualquer motivação legítima para a operação questionada, o que poderia levar à descaraterização da tese de acusação. Interessante notar, porém, que o voto do presidente reconhece, em abstrato, que a tese levantada pela defesa é relevante, podendo indicar eventuais caminhos para defesa de outros acusados em casos semelhantes.
A procedência dessa tese, no entanto, dependeria da demonstração clara de que não há um nexo causal entre a conduta do acusado (realização das operações nos dois lados do livro) e o resultado prejudicial à formação de preços no mercado de bolsa (bem jurídico tutelado), o que não restou demonstrado nesse caso.
Além da necessidade de desconstituir o nexo de causalidade, Barbosa salienta o imperativo de comprovação do caráter doloso da conduta para ensejar a condenação do acusado. Aqui, o relator faz referência a uma série de condutas do acusado que confirmariam seu dolo na realização das operações simuladas — dentre elas, o relator cita o fato de o acusado ter continuado a operar mesmo depois de ter sido alertado pelos intermediários que processaram suas operações e pela própria BSM a respeito do caráter irregular de suas operações.
Por fim, o relator salienta que essa condenação por layering não deve ser lida como uma interpretação inovadora e retroativa da Instrução 8/79 — ao contrário, afirma, trata-se do mesmo ilícito administrativo que vem sendo coibido pela CVM ao longo dos anos, diferindo apenas na forma inovadora como a manipulação de mercado é praticada (por meio de high frequency traders ou de sistemas automatizados para colocação de ordens no sistema da bolsa).
Consideramos que o presente caso de layering e a condenação por spoofing imposta pelo colegiado em 2018 conferem maior segurança jurídica aos participantes do mercado e consolidam o posicionamento da CVM no sentido de que essas novas formas de manipulação de mercado estão sim abarcadas pela regulamentação vigente. Assim, práticas semelhantes deverão ser objeto de procedimentos sancionadores por parte do regulador, desde que reste clara a caracterização do ilícito administrativo em questão.
*Por Leonardo Baptista Rodrigues Cruz ([email protected]), e Augusto Coutinho Filho ([email protected]), respectivamente sócio e associado pleno do escritório
Notas
1PAS CVM SEI nº 19957.006019/2018-26, julgado em 1º de outubro de 2019.
2PAS CVM nº RJ2016-7192 (SEI nº 19957.005977/2016-18), julgado em 13 de março de 2018.
3Nas palavras de Isac Silveira da Costa, as práticas de layering e spoofing são “espécies de estratégias do gênero momentum ignition, definido pela SEC como um artifício pelo qual, por meio de uma sequência de ofertas ou de negócios, é possível criar um movimento direcional de curto prazo no preço de determinado instrumento financeiro, movimento este que favorece o investidor que detinha uma posição prévia e que conseguiu efetivamente provocá-lo”. High frequency trading (HFT) em câmera lenta: compreender para regular, 2018, p. 215.
4Nos termos da Instrução 8/79, são modalidades de manipulação de mercado: a criação de condições artificiais de demanda, oferta ou preço; manipulação de preços; operação fraudulenta; e prática não equitativa.
5Em relação ao posicionamento crítico em relação à tipificação da Instrução CVM 08/79, v. Jota, Manipulação de mercado precisa de novas normas, diz juiz (setembro de 2017).
6Instrução 8/79, item II, letra “b”: “manipulação de preços no mercado de valores mobiliários: a utilização de qualquer processo ou artifício destinado, direta ou indiretamente, a elevar, manter ou baixar a cotação de um valor mobiliário, induzindo, terceiros à sua compra e venda”.
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