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Tudo vigiado
Associações interessam-se cada vez mais pelo papel de autorreguladoras. O desafio é não pecar nem pelo excesso nem pela falta

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Foram semanas de trabalho em três turnos, reuniões frequentes com consultores jurídicos e debates com associados. Tudo para que a Associação dos Analistas e Profissionais de Investimentos do Mercado de Capitais (Apimec) conseguisse estar apta, em outubro de 2010, a assumir a função de credenciadora e supervisora dos analistas, conforme previsto pela Instrução 483 da Comissão de Valores Mobiliários (CVM). O desafio era criar uma estrutura capaz de dar conta da tarefa até então exercida pela autarquia, que inclui, dentre outras atividades, acompanhar o trabalho de pesquisa de 920 profissionais. A mudança confirmou a onda autorreguladora que se espalha pelo mercado de capitais brasileiro. Associações deixam de agir apenas como representantes de uma categoria para criar códigos de boas práticas e, em alguns casos, complementar a supervisão do regulador estatal.

Antes da regra 483, publicada em julho do ano passado, a Apimec era apenas a certificadora responsável pela prova obrigatória para o ingresso na carreira. Agora, ela vai muito além: analisa, por amostragem, a qualidade de 120 relatórios recebidos diariamente; investiga, julga e pune profissionais com má conduta; e realiza os exames de renovação, exigido de todos os analistas a cada cinco anos para comprovar que estão atualizados (substituível por 160 horas/aula de cursos de aperfeiçoamento). Quatro pessoas são responsáveis por ler os documentos enviados pelos analistas em busca de eventuais erros, como recomendação de investimento sem premissas adequadas, conflito de interesses ou plágio. Se constatada irregularidade, um inquérito é aberto e o profissional é julgado por nove conselheiros. Tanto a certificação como a fiscalização são custeadas pelas taxas de realização dos exames (R$ 900) e de fiscalização (R$ 150, por trimestre). A CVM cobrava R$ 165,74 por trimestre. “Nosso orçamento é bastante apertado, mas ainda conseguimos cobrar um preço menor”, diz Lucy Sousa, presidente nacional da associação.

Para manter a vigilância do próprio terreno e diminuir a intervenção do Estado, as organizações investem tempo e dinheiro. São horas de discussões com os associados sobre como serão elaborados os códigos e muitos recursos destinados à contratação de consultoria jurídica, desenvolvimento de softwares e formação de funcionários.

EM BUSCA DE RELEVÂNCIA — Existem três formatos de autorregulação do mercado financeiro: a obrigatória, imposta pela Lei 6.385, realizada atualmente apenas pela BM&FBovespa e a Cetip, que têm o dever de supervisionar os seus mercados; a voluntária, na qual a entidade cria regras de atuação sem imposição legal; e o convênio, em que a CVM dá a uma entidade o poder de supervisionar. O último modelo é seguido pela Apimec e também pela Associação Brasileira das Entidades dos Mercados Financeiro e de Capitais (Anbima), que controla o processo das emissões de debêntures, notas promissórias e BDRs de todas as empresas abertas, além das ofertas subsequentes de ações (follow-ons). Essa forma oferece mais relevância e liberdade às associações e economia para o órgão regulador: “Em vez de consumirmos nossos recursos humanos e financeiros nessa atividade, reconhecemos o trabalho de outra instituição mais próxima do setor regulado e assim podemos nos dedicar a questões nas quais somos mais eficientes”, explica Otávio Yazbek, diretor do colegiado da CVM.

A Abrasca está desenvolvendo um código de boas práticas com previsão de lançamento
em maio

A Anbima foi a primeira a trabalhar ao lado da autarquia, a partir da Instrução 471 de 2008. Exerce tanto a autorregulação voluntária, por meio de códigos próprios de conduta, quanto a estabelecida no convênio com a CVM. Somente as instituições que aderem aos códigos estão sujeitas aos mecanismos próprios de controle da Anbima, como a análise de prospectos e as visitas para supervisão do cumprimento das regras. Já a avaliação prévia das emissões previstas no convênio vale para todas as empresas. Nesses casos, a oferta só segue para a CVM depois de passar pelo crivo da Anbima. “A supervisão por uma associação privada fez bem para o mercado, deu mais agilidade”, acredita José Doherty, superintendente executivo de supervisão de mercado da Anbima. Ele considera a possibilidade de novos convênios e de ampliação do escopo de supervisão para incluir, por exemplo, as emissões de Certificados de Recebíveis Imobiliários (CRI).

É provável que, em breve, novos atores entrem na lista de apoio à CVM. A Associação Nacional das Corretoras e Distribuidoras de Títulos e Valores Mobiliários, Câmbio e Mercadorias (Ancord) está em negociação para ser a certificadora e reguladora dos agentes autônomos de investimentos. A entidade pretende estabelecer normas que especifiquem as regras gerais da CVM e zelar pelo cumprimento delas. “Hoje, os bons estão pagando pelos maus, porque falta essa regulação”, comenta Manoel Felix Cintra Neto, presidente da associação, em defesa da proposta, que é polêmica entre os agentes. Muitos deles discordam de Cintra Neto porque não gostariam de ser regulados e nem de pagar uma taxa por isso. Mas é possível que tenham de se acostumar com a ideia, pois a Ancord garante já ter tudo pronto para começar.

A BM&FBovespa, obrigada por lei a autorregular, também não se importa em adquirir novas atribuições. Deve, inclusive, ter um papel mais incisivo na prestação de contas dos clubes de investimento à CVM. “O regulador pode impor tarefas, mas, normalmente, isso é debatido conosco”, esclarece Luis Gustavo da Matta Machado, diretor de autorregulação da BM&FBovespa Supervisão de Mercados (BSM). Segundo ele, a autarquia está sempre informada sobre os processos e julgamentos realizados pela Bolsa de Valores e pode, inclusive, utilizá-los como base para seus próprios inquéritos. “É possível ser punido na Bolsa e na CVM se a infração for grave. Ainda assim, acredito que não haja sobreposição, e sim complementaridade de nossas funções. É comum o colegiado permitir o aproveitamento da pena estabelecida por nós.”

CONSTRUINDO CÓDIGOS — Enquanto algumas conquistam o aval da CVM para adquirir autonomia, outras dão os primeiros passos para a autorregulação. A Associação Brasileira das Companhias Abertas (Abrasca) está desenvolvendo um código de boas práticas com previsão de lançamento para maio. Seu selo de adesão deve ser voluntário e seguir o modelo de “comply or explain” (pratique ou explique), no qual os associados podem optar por não adotar certas normas, desde que expliquem o motivo. “É uma maneira de respeitar a individualidade das companhias e regular sem sufocar o livre mercado. Hoje, nossos associados representam 90% do valor de mercado da Bolsa, é natural haver diferenças de opiniões”, afirma Antônio Castro, presidente da associação. A previsão era lançar o código no início deste ano, mas as intensas discussões sobre o seu conteúdo levaram a um atraso, observa.

O Instituto Brasileiro de Relações com Investidores (Ibri) tem um código que precisa ser seguido por todos os associados, e seu plano é se tornar um certificador dos profissionais de RI. Por enquanto, discute se essa certificação será opcional ou obrigatória. A Associação Brasileira de Private Equity e Venture Capital (Abvcap), por sua vez, lançou este ano um código de melhores práticas em parceria com a Anbima.

FREIOS E CONTRAPESOS — Apesar de ser vista como uma maneira de dar agilidade e desburocratizar o controle dos mercados, a autorregulação não está imune a críticas, vindas de todos os lados: tanto os mais liberais como os mais intervencionistas têm algo para reclamar. Para os primeiros, o excesso de poderes das associações dificulta a atuação das empresas e cria reservas de mercado; os outros alegam que, quando o Estado se afasta da regulação, acaba deixando “a raposa tomar conta do galinheiro”. Não falta também quem veja um exagero nas duas posições e acredite, sim, em uma autorregulação eficiente e liberal.

O excesso de normas pode dificultar a entrada de novos atores, criando um obstáculo à concorrência

As diversas iniciativas de regulação geram desconfianças em alguns investidores. O excesso de normas, principalmente quando elas se tornam compulsórias, pode dificultar a entrada de novos atores, criando um obstáculo à concorrência. Outro risco é o indesejável aumento da burocracia: na tentativa de manter a imagem de eficiência e rigor, a entidade privada pode exigir comportamentos que o Estado — no caso, a CVM — não exigiria, como destaca um advogado da área de direito societário que preferiu não se identificar: “Durante o processo de emissão de debêntures de uma empresa, a Anbima exigiu várias mudanças, algumas delas desnecessárias, como mudar uma vírgula de lugar. E sempre com um prazo de poucas horas”. Questionada a respeito pela CAPITAL ABERTO, a associação disse que se limita a seguir os padrões e os prazos exigidos pela CVM, tentando evitar que o processo seja rejeitado pela reguladora.

Um investidor, que também preferiu não ter a identidade divulgada, relatou seu desconforto com o aumento de autorregulação. Para ele, o controle sobre certos fundos voltados para investidores qualificados (como os de private equity) já é realizado constantemente pelos clientes. “Mesmo quando os códigos são de adesão voluntária, pode-se acabar criando reservas no mercado a partir de certas exigências. O comply or explain é sempre melhor”, diz. O profissional reclamou também da exigência de formação continuada feita pela Apimec: “O primeiro exame é importante para garantir a capacidade do analista, mas os outros são excessivos. Se o profissional não estiver constantemente atualizado, o próprio mercado vai colocá-lo para fora”. Lucy Sousa contrapõe, argumentando que a renovação é característica de um mercado moderno. “Quem discorda está atrasado”, assegura.

Na visão de Julian Chediak, sócio do escritório de advocacia CLCMRA e presidente do conselho de autorregulação da Cetip, esse tipo de discussão é inerente à atividade. Definindo-se como um entusiasta do modelo, ele reconhece que existem dois conflitos de interesses muito claros: “Um deles é se alguém está realmente disposto a criar regras para si próprio; o outro é se o criador dessas regras pode beneficiar a si e prejudicar os concorrentes. O bom autorregulador sabe disso e cria os mecanismos para evitar”. Além disso, lembra Chediak, a vigilância do regulador estatal é fundamental. “A ideia de um mercado totalmente livre é ótima, mas utópica”, declara, defendendo a autorregulação como a forma de pôr menos grilhões no mundo dos negócios.

Para evitar abusos da parte dos autorreguladores, a CVM diz trabalhar o tempo todo com freios e contrapesos. “Quando vamos reconhecer alguma instituição como fiscalizadora ou normatizar a Bolsa e a Cetip, sempre exigimos mecanismos de independência como um orçamento próprio da área de supervisão e a não interferência de executivos nesse trabalho”, ressalta Yazbek.

A onda autorreguladora vem, portanto, acompanhada da visão de que também não seria uma boa ideia abraçá-la indiscriminadamente. Nessa seara, o equilíbrio é um aspecto essencial para a sustentabilidade do modelo e, ao mesmo tempo, um objetivo difícil de ser alcançado. Cabe aos atores da autorregulação cuidar para que ela não se torne mais autoritária do que o Estado tenderia a ser e nem tão frouxa a ponto de fechar os olhos aos tropeços dos associados.


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