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Um país sem limites
Em plena ditadura militar e à luz de uma economia em forte ascensão, nasce a lei do governo Geisel criada para financiar a indústria nacional

, Um país sem limites, Capital AbertoEram tempos de repressão política, mas também de esperança. No ano de nascimento da Lei das S.As vivia-se o orgulho das coisas do Brasil e a conquista de recordes que demorariam a ser quebrados. O atleta João do Pulo estabelecera uma nova marca mundial no salto triplo, de incríveis 17,89 metros, durante os Jogos Pan-Americanos do México. O filme “Dona Flor e seus dois maridos”, baseado no livro de Jorge Amado, atraía 11 milhões de expectadores, até hoje a maior platéia do cinema brasileiro. Com “O canto das três raças”, Clara Nunes tornava-se a cantora de maior vendagem no país, com 600 mil cópias, e só perdia para a trilha sonora da novela do momento, “Estúpido cupido”.

Na economia, os olhos estavam voltados para o crescimento da indústria nacional. Vinha-se do milagre econômico e esperava-se um crescimento do Produto Interno Bruto (PIB) que chegaria a quase 10% naquele ano de 1976 (depois de um pico de 14% em 1973). Embora esse vigor , Um país sem limites, Capital Abertoacontecesse às custas de um desequilíbrio crescente nas transações correntes e da explosão da dívida externa, essa não era ainda uma grande preocupação. A esperança do Brasil grandioso estava depositada no florescimento da grande empresa nacional, nos moldes das estatais Petrobras, Vale do Rio Doce, Banco do Brasil e Eletrobrás — as maiores então listadas em bolsa de valores.

O esplendor da economia americana e seu mercado de capitais não deixava dúvidas de que começava a era das empresas, que seriam a locomotiva do desenvolvimento dali para a frente. No Brasil, a economia crescia, mas faltavam infra-estrutura e capacidade de investimento. O governo militar comandava uma nova tentativa de organização do processo de desenvolvimento econômico, com os Planos Nacionais de Desenvolvimento (PNDs) elaborados pelo ministro do Planejamento João Paulo dos Reis Velloso. O primeiro teve como foco projetos de integração nacional, especialmente em transportes e telecomunicações. No segundo, sob a presidência de Ernesto Geisel (1974-1979), procurou-se criar as , Um país sem limites, Capital Abertobases para a indústria, com investimentos em siderurgia e petroquímica.

Havia consenso sobre a necessidade de aumento dos investimentos e da taxa de poupança interna. A expansão do mercado de capitais parecia o caminho mais acertado, mas era preciso retomar a sua credibilidade. A Bolsa de Valores do Rio passara por uma grave crise especulativa em 1971, quando muitas famílias perderam suas poupanças. O trauma ainda estava latente. “Como não havia uma base institucional, a crise foi profunda no momento em que o mercado deixou de ser comprador para ser vendedor”, recorda-se Roberto Teixeira da Costa, que era na época diretor do Unibanco e, mais tarde, assumiria o posto de primeiro presidente da Comissão de Valores Mobiliários (CVM). “Ficaram seqüelas, que precisavam ser tratadas.”

A lei societária de 1940 encontrava-se completamente defasada e haviam fracassado as , Um país sem limites, Capital Abertotentativas anteriores de estimular o mercado de capitais. Tanto a Lei 4.728 (Lei do Mercado de Capitais, de 1965) quanto a estratégia do governo federal de apelar para incentivos fiscais — que teve início em 1964 por meio de uma série de leis específicas e culminou com o Decreto-Lei 157, três anos depois — não surtiram os efeitos esperados. “A demanda por regulação era enorme. As Bolsas de Valores e a Associação Brasileira das Companhias Abertas (Abrasca) estavam muito interessadas numa legislação que desenvolvesse o mercado”, afirma Teixeira da Costa. “Com a crise de 71, houve uma fuga de investimentos para títulos de renda fixa e imóveis”, conta o advogado José Alexandre Tavares Guerreiro, professor de direito comercial na Universidade de São Paulo (USP). “Para fazer as pessoas resgatarem esse dinheiro dos fundos, que tinha correção monetária assegurada, era preciso fazer concessões aos minoritários. Não se pode esquecer que a inflação era elevada.”

Foi nesse contexto que começou a nascer a idéia de uma nova legislação para as sociedades por ações. A lei precisaria estruturar a grande empresa nacional, dar os instrumentos jurídicos para ela se desenvolver e, ao mesmo tempo, oferecer um arcabouço de proteção aos acionistas minoritários da companhia aberta. O economista Mário Henrique Simonsen já era um entusiasta do mercado de capitais quando assumiu o ministério da Fazenda, em 1974, a convite de Geisel. O entusiasmo vinha não só da teoria como da prática, pois havia sido consultor da Bolsa de Valores de São Paulo (Bovespa) e organizara um curso para advogados de empresas que fez sucesso na Fundação Getúlio Vargas. “Foi o Mário Henrique quem convenceu o Geisel da necessidade da Lei das S.As e da lei que criaria a CVM”, conta Teixeira da Costa.

O professor Alfredo Lamy Filho, da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUCRJ), e o advogado José Luiz Bulhões Pedreira, dois juristas renomados, receberam a encomenda de Simonsen. Conhecedores do Direito Comparado, eles analisaram o que havia de mais moderno na legislação americana e na européia. A elaboração do anteprojeto demorou quase dois anos, incluindo versões novas formuladas a partir de um pedido de críticas e sugestões a advogados renomados da época. “Houve cobranças pelos nossos atrasos”, lembra Lamy Filho.

Para compensar, o governo pôde lançar mão da pressão que o Executivo tinha sobre o Legislativo naquela época, exigindo que o projeto fosse analisado e votado pelo Congresso Nacional em apenas 90 dias. A restrição quanto ao período de tramitação, porém, não impediu uma ampla discussão sobre a nova lei que envolvesse vários segmentos da sociedade — algo raro na época da ditadura militar. O debate público havia começado com a iniciativa de se publicar, ainda em fevereiro de 1975, a primeira redação do anteprojeto, submetida ao grupo de advogados.

“Houve muito lobby, pressões exercidas abertamente de todas as partes”, diz o advogado Nelson Eizirik, que iniciava sua carreira. “Pressões da Bolsa de Valores, que queria dar a proteção aos minoritários, e das empresas, no sentido de dar menos responsabilidades aos controladores.” As discussões sobre os pontos mais polêmicos ganharam destaque nos jornais, que tentavam explicar aos leitores conceitos novos e complexos.

Nos bastidores do Congresso, a negociação era intensa entre o partido do governo, a Arena, e a oposição, representada pelo MDB. O consultor Luiz Machado Fracarolli, então procurador da Fazenda Nacional, conta que recebeu do procurador- geral, Francisco Dornelles, a incumbência de dar o melhor encaminhamento possível ao projeto do governo e, por isso, mudou-se para Brasília. “A orientação era de que não houvesse muitas alterações, para não desfigurar o projeto original”, conta Fracarolli. “Mas a matéria interessava muito ao empresariado, e por conta disso foram apresentadas centenas de emendas. Ficávamos o dia inteiro fazendo essa triagem.”

O advogado e deputado Tancredo Neves, do MDB, tornou-se o relator do projeto na Câmara e o fato de ser tio de Dornelles não chegou a facilitar tanto assim a vida do governo. Tancredo entendia do assunto, chamou autores e opositores para esclarecer seus pontos na Câmara, promoveu um debate democrático e, com a habilidade política que ainda seria evidenciada tantas vezes, deixou para o Senado a incumbência de derrubar as emendas que não agradavam ao governo. “Depois, o Senado conseguiu derrubar quase tudo”, lembra Fracarolli.

Mas foi no Senado que o projeto ganhou a sua emenda mais polêmica, apresentada pelo Senador Otto Cyrillo Lehmann, que instituiu como obrigatória a oferta pública para aquisição de ações na hipótese de alienação de controle da companhia aberta — hoje mais conhecida pelo termo em inglês “tag along”. A emenda resultou no artigo 254 da Lei 6.404/76, que acabou sancionado sem vetos pelo presidente Ernesto Geisel — apesar dos protestos dos autores à instituição deste dispositivo. A discussão precoce e intensa sobre o ainda hoje polêmico tag along — que não era assim chamado na época — parecia antever o quanto a Lei das S.As incorporava questões que seriam relevantes quando, enfim, o mercado de ações deslanchasse.


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